10 Outubro 2018
A poucos dias da canonização de Dom Romero, que ocorrerá no dia 14 de outubro, junto com a de Paulo VI, bem no meio do Sínodo sobre os jovens, o postulador da causa, o presidente da Pontifícia Academia para a Vida, Vincenzo Paglia, revela os bastidores do duro processo que a precedeu: “Os maiores obstáculos vieram da Cúria. Eu mesmo recebi ameaças dos cardeais”.
A reportagem é de Francesco Gnagni Porpora, publicada por Formiche, 08-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Os obstáculos à canonização de Dom Romero? Foram inúmeros. Os mais robustos e fortes vieram de dentro da Igreja, até da Cúria Romana. Era tão forte a oposição a essa causa que eu mesmo recebi ameaças dos cardeais, para que a deixasse onde estava”, afirmou Dom Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, grão-chanceler do Pontifício Instituto João Paulo II e conselheiro espiritual da Comunidade de Santo Egídio, durante uma entrevista à Rai News.
Ele fez isso mostrando a cruz peitoral de Dom Oscar Arnulfo Romero, arcebispo de San Salvador, que morreu “por ódio à fé”, assassinado em 1980, enquanto celebrava a missa no altar da capela interna de um hospital, pelas mãos de um atirador de elite da ditadura militar de El Salvador. Cruz que Dom Paglia, durante a entrevista, trazia em seu pescoço, a poucos dias da sua canonização, junto com Paulo VI, que ocorrerá no Vaticano no dia 14 de outubro, bem no meio do Sínodo dos Bispos sobre o tema dos jovens.
“Eu a recebi porque, em certo momento, o arcebispo de San Salvador me encarregou de ser o postulador da causa de Dom Romero. Uma causa que todos, obviamente, consideravam impossível”, diz Paglia.
“O Papa Francisco falou do martírio de Romero mesmo depois da morte. O martírio, disse o papa, também por parte dos seus coirmãos, de bispos, que também continuaram falando de forma brutal contra Romero, até para mim. Porque consideravam Romero um guerrilheiro muito perigoso, um defensor de uma esquerda política, não compreendendo, na realidade, que justamente o silêncio da Igreja sobre Romero levou, por assim dizer, a extrema esquerda a fazer dele a sua bandeira”, defendeu Paglia durante a entrevista.
“Para mim, foi uma experiência absolutamente única ver a sede de conhecimento de Romero ou, melhor, o fato de muitos que viam a mudança na história se ligarem à figura de Romero. Sem violência, mas com uma mudança real. Com a força da Palavra, do Evangelho, de uma justiça que ajude acima de tudo os mais pobres.”
A decisão final em favor da beatificação de Romero foi tomada pelo Papa Francisco no dia 6 de março, reconhecendo o milagre imprescindível para a canonização. “Há alguns meses, eu recebi uma indicação: trata-se de uma cura de uma mulher grávida que, de acordo com um primeiro exame, é inexplicável”, dizia o mesmo postulador Paglia à Radio In Blu, a rádio promovida pela Conferência Episcopal Italiana, poucos dias antes do pronunciamento final do pontífice. Entrevista em que o prelado desejava, justamente, o reconhecimento do milagre como “coincidência extraordinária, considerando-se que, neste ano, celebram-se os 100 anos de nascimento de Romero”, “às vésperas da sua canonização”.
O evento envolveu uma mulher na sua sétima gravidez, que, “de acordo com os dados clínicos, deveria ter morrido junto com o bebê”, mas que “inexplicavelmente se recuperou” e que, “do modo como ela conseguiu superar aquele momento trágico, alguns médicos que eu ouvi”, explicou Paglia, “consideraram a cura inexplicável”.
Ao mesmo tempo, explicou o prelado, “algumas pessoas tinham rezado justamente a Dom Romero pela cura da mulher”. Assim, o Tribunal Diocesano da Arquidiocese de San Salvador confirmou a hipótese, e o papa colocou o selo final sobre ela.
“Um pastor bom, cheio de amor de Deus e próximo dos seus irmãos, que, vivendo o dinamismo das bem-aventuranças, chegou até o dom da sua própria vida, de modo violento, enquanto celebrava a Eucaristia, sacrifício do amor supremo, selando com seu próprio sangue o Evangelho que anunciava”, descreveu Bergoglio antes de anunciar a canonização no consistório público de maio passado, descrevendo um martírio que “não ocorreu apenas no momento da sua morte”, mas que “foi um martírio-testemunho, sofrimento anterior, perseguição anterior, até a sua morte. Mas também posterior, porque, uma vez morto, ele foi difamado, caluniado, sujado. Ou seja, seu martírio continuou até pelas mãos de irmãos seus no sacerdócio e no episcopado”, acrescentou Francisco. “É bom vê-lo também assim: como um homem que continua sendo mártir”.
Antes do reconhecimento do martírio de Romero pelo Papa Francisco, foi João Paulo II quem citou o arcebispo salvadorenho durante o Jubileu do ano 2000, falando de um “serviço sacerdotal” que “teve o selo ao imolar a sua vida, enquanto oferecia a vítima eucarística”. Até a intervenção de Bento XVI em 2012, que levou ao desbloqueio da causa que parecia ter parado por longos anos.
Romero, um sacerdote dedicado à Igreja “pobre e para os pobres”, cujo eco chega até o pontificado de Bergoglio, pouco antes de seu assassinato, tinha lançado um apelo às Forças Armadas para que se recusassem a executar as ordens impostas pelo regime de repressão dos protestos durante os anos da sangrenta guerra civil em El Salvador.
Romero repetiu a mesma denúncia na homilia feita pouco antes da morte, ocorrida pelas mãos de um mercenário do líder do partido nacionalista conservador, que atirou na sua jugular, justamente no momento em que estava elevando a hóstia perante os fiéis. Disparo que depois também ocorreu durante o seu funeral, contra os participantes, fazendo um trágico massacre.
“Gostaria de fazer um chamado muito especial aos homens do Exército e, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis: irmãos, vocês são do nosso mesmo povo, matam seus próprios irmãos camponeses e, perante uma ordem de matar dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus que diz: ‘Não matar’. Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contra a lei de Deus. Em nome de Deus, pois, e em nome deste povo sofrido, cujos lamentos sobem até o céu, cada dia mais tumultuosos, eu lhes suplico, lhes rogo, lhes ordeno, em nome de Deus: cesse a repressão!”, foram as palavras proferidas por Dom Romero em seu apelo ao governo salvadorenho.
As críticas feitas contra Romero se centraram na acusação de desempenhar um papel, mais do que pastoral, principalmente de opositor do regime salvadorenho e das políticas pró-estadunidenses, que lembravam a excessiva politização de que era acusada a chamada Teologia da Libertação, à qual Romero, no entanto, opôs uma de suas pregações, depois renomeada como “salvação integral”.
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Fogo de ''Paglia'': quem não quer a canonização de Romero? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU