16 Novembro 2016
“É fato que na Igreja há pessoas muito religiosas, especialmente entre o clero, que não concordam com o Papa que temos. Não penso em analisar aqui esta questão complicada. O que pretendo, neste breve escrito, é simplesmente indicar por que a cada dia eu vejo mais claramente que, finalmente, temos na Igreja um Papa que crê no Evangelho de Jesus”, constata José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 13-11-2016. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O teólogo espanhol, autor de uma extensa e importante obra teológica, reflete sobre o discurso do Papa Francisco, proferido recentemente no 3º Encontro Mundial de Movimentos Populares, realizado em Roma.
Eis o artigo.
É fato que na Igreja há pessoas muito religiosas, especialmente entre o clero, que não concordam com o Papa que temos. Não penso em analisar aqui esta questão complicada. O que pretendo, neste breve escrito, é simplesmente indicar por que a cada dia eu vejo mais claramente que, finalmente, temos na Igreja um Papa que crê no Evangelho de Jesus.
Não estou dizendo de forma alguma que os Papas anteriores não creram no Evangelho. Claro que acreditavam. Quando falamos do Evangelho, o que acontece é que acreditar nele e viver como o Evangelho diz que devemos viver, não é a mesma coisa. Aqui tocamos no ponto crucial do problema. E esta é a ponto chave de todo esse assunto.
Eu li - e reli - o discurso que o Papa pronunciou em Roma, diante de mais de 3.000 participantes de 60 países, que representavam os movimentos populares de todo o mundo. Pois bem, o que mais me chamou a atenção ao ler este discurso papal, é que ele não fala de Teologia ou Exegese Bíblica, nem Doutrina Social da Igreja, nem de ciências políticas ou sociais, nem dos ensinamentos do Magistério Eclesiástico, nem da Soteriologia, Escatologia, Cristologia ou Eclesiologia, nem da Modernidade ou Pós-Modernidade, nem de qualquer uma dessas coisas com as quais a cabeça dos pensadores mais sisudos do saber cristão é aquecida, diariamente. Nada disso, aparentemente, interessa ao Papa Francisco.
Então, o que é que interessa a este Papa quando se vê diante daqueles que representam as pessoas mais necessitadas deste mundo? Bem, ou eu sou cego (ou não sei qual estranha paixão me cega), ou o que preocupa e angustia o Papa é exatamente, nem mais nem menos do que a mesma coisa que preocupou e apaixonou Jesus de Nazaré. Do que se trata? O que é isso?
Se há alguma coisa clara nos Evangelhos, é que o centro das preocupações de Jesus foi Deus. Mas o problema proposto pelos Evangelhos não está nisso. O problema está em como devemos buscar e encontrar Deus. Agora, está claro no Evangelho que Deus não é encontrado primordialmente na "observância da religião", mas na "luta contra o sofrimento humano."
Por isso o Papa não falou, com tanta veemência, das grandes temáticas teológicas e morais das quais vinham falando os outros Papas, desde Leão XIII até Bento XVI. Nada disso. O que Francisco fez, em seu discurso, foi tomar diretamente a mesma atitude que Jesus tomou. Assim que começou a anunciar o Reino de Deus, o que ele fez? Pôs-se a curar os doentes, a aliviar dores, acolhendo pessoas desamparadas, comendo com os famintos... sem levar em consideração se essas curas e refeições com pessoas desviadas e de má reputação, eram permitidas ou proibidas pela religião.
Sem dúvida alguma, a Igreja deve mudar. Mas está claro sobre o que a Igreja precisa mudar? O problema não é mudar os cargos e dicastérios (escritórios) da Cúria Romana. O problema não está sequer nas afirmações do Vaticano sobre a importância vital do Evangelho, coisa que já fez tantas outras vezes. Tudo isso pode ficar em um mero palavreado vazio. O problema central e decisivo da Igreja está em colocar seus impulsos vitais e sua presença na sociedade para viver como Jesus viveu.
A fórmula determinante foi formulada por Francisco com brevidade e precisão: "falamos sobre a necessidade de uma mudança para que a vida seja digna". A "dignidade da vida". É nisto que reside o centro da religiosidade, pelo qual a Igreja deve se dedicar e lutar. E sobre este projeto é que se deve re-fazer a Teologia. Uma Teologia menos interessada por problemas como o pecado ou a salvação eterna. Centrada, sobretudo, em:
1. Colocar a economia à serviço da população.
2. Construir a paz e a justiça.
3. Defender a Mãe Terra.
Só assim poderemos ter Bispos menos preocupados com problemas relacionados com a sexualidade e a homossexualidade. Bispos que, com tantos escândalos de abuso clerical à pessoas inocentes, começam a desviar o rosto. Assim teremos Bispos mais interessados e dedicados ao enfrentamento, se necessário, aos governantes que favorecem os ricos, ao mesmo tempo que esses governantes tão "piedosos" ditam leis que aumentam a distância entre os poderosos e os fracos. E, sobretudo, se isso for levado a sério, com todas as suas consequências, teremos uma igreja que não é voltada para o povo, mas que surge a partir do povo. Não para os pobres, mas a partir dos pobres. E será a Igreja que os ricos se destinarão, se é que eles têm a coragem de partilhar a sua vida com a dos pobres.
Nunca esquecendo uma questão que é decisiva. Somente uma Igreja assim estará capacitada para conhecer a Cristologia e, portanto, para inteirar-se de quem é Jesus, como se vive o cristianismo e como se anuncia o Evangelho. Por quê? Esta pergunta é respondida com uma outra questão, que é mais assustadora: como os primeiros discípulos conheceram Jesus? Eles não o conheceram estudando Cristologia, mas vivendo com ele e como ele. Este assunto tão decisivo, a Igreja, os seminários, os teólogos, os Bispos e Papas não se deram conta.
No dia em que essa questão realmente seja abordada, nesse dia a Igreja começará a fazer sentido e a dar sentido à vida das pessoas. E é justamente isso o que o atual Papa Francisco começou, com suas ocorrências "chamativas" e originalidades. Por esses motivos podemos dizer que temos um Papa que crê no Evangelho.
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Temos um Papa que crê no Evangelho". Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU