11 Março 2014
O Madeira é um rio poderoso. Maior afluente do Amazonas, quando os dois se encontram, próximo a Itacoatiara, sua carga sedimentar é, em algumas épocas do ano, comparável à do grande rio. Esse poder não vem de graça, mas sim, literalmente, dos céus: os formadores do Madeira – rios Madre de Dios, Beni e Mamoré – nascem todos nos altiplanos da Cordilheira dos Andes, de onde despencam rapidamente de mais de quatro mil metros de altura até a planície Amazônica.
A reportagem é de Eduardo Góes Neves, publicada no sítio Amazônia Real, 10-03-2014.
Peço desculpas às leitoras e leitores desta coluna pelas semanas de silêncio, devidas a merecidas férias, o trabalho em um manuscrito e também a uma etapa de campo escavando um sambaqui fluvial na Reserva Biológica (ReBio) do Guaporé, em Rondônia, uma área maravilhosa, sobre a qual escreverei no futuro.
Da ReBio Guaporé a Porto Velho a viagem é longa: muitas horas de barco, rio Guaporé abaixo, seguidas por outras tantas horas de ônibus pelas BRs 429 e 364 de Costa Marques a Porto Velho.
Fevereiro é época de chuva em boa parte da Amazônia, pelo menos na Amazônia abaixo da linha do Equador, e assim o estava sendo enquanto trabalhávamos em relativo isolamento no Guaporé. Era possível ver como o nível do rio subia rapidamente, embora no rio Branco, afluente no qual se situa o sítio que escavávamos, se notava até um repique com uma ligeira baixa no nível das águas. Na BR-429, no caminho de volta a Porto Velho o ônibus teve que fazer um longo desvio devido à cheia do rio São Miguel, próximo a São Miguel do Guaporé. Nada de excepcional para um típico inverno amazônico.
Chegamos a Porto Velho debaixo de um temporal. Eu já sabia que estava chovendo bastante por lá e havia ouvido notícias de que o rio Madeira havia transbordado, chegando até ao impedimento do acesso de Porto Velho a Rio Branco pela BR-364. Com alguns amigos que lá vivem fomos até o Mirante para verificar o nível da cheia. Para quem não conhece Porto Velho, Mirante é o nome de uma série de bares e restaurantes localizados no alto de uma barranca alta, de onde se tem uma bela vista do rio Madeira, incluindo também o centro da cidade e os antigos galpões da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que são tombados como patrimônio histórico da União. O local onde ficam – ou melhor, ficavam – os Mirantes é um dos mais aprazíveis de Porto Velho: as ruas são largas e arborizadas e há uma brisa que acompanha o peixe frito e a cerveja gelada que ali se apreciam. Há também, adjacente a um dos bares, uma pitoresca capelinha, cuja presença abençoa os boêmios que os frequentavam.
Essas lembranças dos Mirantes são hoje só reminiscências sentimentais: já há algum tempo, todos eles, menos um, estão fechados. A capelinha está também interditada, devido à erosão causada pelos banzeiros cada vez mais fortes do rio Madeira. Por uma estranha coincidência, a força dos banzeiros parece ter aumentado depois do término da construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio, cuja barragem – um grande muro de terra e pedra, de aspecto feio e mal-acabado, construído sobre o local da antiga cachoeira de Santo Antônio -, também se avista do Mirante remanescente.
O Madeira é um rio poderoso. Maior afluente do Amazonas, quando os dois se encontram, próximo a Itacoatiara, sua carga sedimentar é, em algumas épocas do ano, comparável à do grande rio. Esse poder não vem de graça, mas sim, literalmente, dos céus: os formadores do Madeira – rios Madre de Dios, Beni e Mamoré – nascem todos nos altiplanos da Cordilheira dos Andes, de onde despencam rapidamente de mais de quatro mil metros de altura até a planície Amazônica. Por um capricho da geografia, quase todos esses rios se juntam em uma área relativamente pequena – primeiramente o Madre de Dios e o Beni, depois o Mamoré e o Beni – para formar o rio Madeira na fronteira entre a Bolívia e o Brasil no município de Nova Mamoré, em Rondônia.
O velho e belo “Mapa de matas e campos do Brasil”, publicado em 1911 pelo Serviço Geológico e Mineralógico do Estado de São Paulo, cuja edição fac-similar guardo com orgulho emoldurada na parede da sala da minha casa, já mostrava, há mais de cem anos, isso.
O único dos grandes formadores do alto Madeira que não nasce nos Andes é o rio Guaporé, que é um afluente do Mamoré, mas sua contribuição sedimentar para a bacia é relativamente pequena se comparada à dos rios que vêm da Bolívia.
Essas características hidrográficas fazem com que o alto Madeira funcione como uma espécie de funil: seus formadores vêm dos Andes em forma de leque, mas a quantidade de água e sedimento que trazem é tão grande que não conseguem ter vazão na planície relativamente estreita do alto curso do rio.
Por essa razão, há pelo menos mil e quinhentos anos, centenas de milhares de quilômetros quadrados são naturalmente inundados todos os anos no lado boliviano, formando uma extensa planície de campos alagáveis, os Llanos de Mojos, onde os povos que ali habitaram no passado construíram estruturas como diques, canais e aterros, obras sofisticadas de engenharia hidráulica, para lidar com um ambiente tão complexo e de sazonalidade tão marcada. É bom também lembrar que, a montante de Porto Velho a margem direita do Madeira é acompanhada pelas terras altas do final da serra dos Pacaás-Novas, que não é nada mais que a extensão mais setentrional do Planalto Central do Brasil.
Peço desculpas aos leitores por essa aula-relâmpago de geografia, mas até um não especialista no assunto como eu – não sou geógrafo, muito menos hidrólogo – pode perceber as particularidades físicas da bacia do alto Madeira: todo ano as planícies de seus formadores são alagadas porque a vazão de água e sedimento é muito maior que a capacidade do rio em transportá-lo.
No Brasil, principalmente no sudeste e sul, a maioria dos rios já foi barrada para a construção de usinas hidrelétricas. A exceção honrosa e heroica, ao menos em São Paulo, é a do rio Ribeira de Iguape. Os rios do sul e sudeste são todos rios de planalto, cujas cabeceiras se encontram em terrenos geologicamente antigos, como as serras do Mar e da Mantiqueira, ou nas vertentes meridionais das escarpas do Planalto Central.
Trata-se de áreas que, devido a sua antiguidade, são relativamente baixas, com cerca de 1.000 metros de altitude. Por serem locais que sofrem erosão há milhões de anos, os rios que ali nascem têm uma carga sedimentar infinitamente inferior à dos rios amazônicos que nascem nos Andes, como é o caso do Madeira e do próprio Amazonas. O Amazonas, por exemplo, despeja no Oceano Atlântico quase um quinto de toda a água doce não subterrânea do todo o planeta. O Madeira tem uma contribuição caudalosa para essa carga. Antes da construção de Santo Antônio e Jirau jamais se havia construído no Brasil usinas hidrelétricas em rios de origem andina como o Madeira.
De Porto Velho a Itacoatiara (AM) o Madeira tem uma larga planície aluvial que ele alagava anualmente com os férteis sedimentos que transporta. Geologicamente a formação da Cordilheira dos Andes é um processo recente que se concluiu há cerca de seis milhões de anos, quando nossos ancestrais mais antigos já começavam a descer das árvores na savana africana.
O soerguimento dos Andes resultou da lenta colisão de placas tectônicas, processo que ainda ocorre e que explica a grande frequência de terremotos em países como Equador, Peru e Colômbia.
Com a colisão das placas, depósitos sedimentares férteis que estavam no fundo do mar foram elevados ao topo da cordilheira para ser posteriormente carregados todos os anos rio abaixo.
Isso ocorre com os chamados “rios de água branca” da Amazônia, como o próprio Amazonas, o Japurá e o Madeira. Por essas razões, esses rios carregam milhões de metros cúbicos de sedimento. Isso quer dizer que as usinas de Santo Antônio e Jirau podem ter uma vida útil curta, resultado do assoreamento dos lagos e entupimento das barragens provocados pela sedimentação intensa. Em outras palavras, faltou combinar com os Andes.
De Porto Velho rio acima até Guajará-Mirim os rios Madeira e Mamoré atravessam dezenas de corredeiras. O volume da água e as próprias dimensões dessas corredeiras sempre foram um obstáculo à navegação e é por essa razão que se construiu, com um alto custo de vidas humanas, a estrada de ferro Madeira-Mamoré. A região dos formadores do Madeira é rica em seringueiras e a estrada de ferro proveria um caminho para o escoamento da borracha boliviana. A estrada de ferro, como se sabe, está já algumas décadas abandonada e as partes remanescentes devem estar agora em baixo d´água devido à cheia do rio.
O antigo pátio de manobras no centro de Porto Velho está agora alagado. As cachoeiras eram também famosas por sua piscosidade: Teotônio, por exemplo, hoje totalmente afogada era conhecida pela grande quantidade de bagres que se podia ali pescar.
As pesquisas arqueológicas associadas ao licenciamento da usina de Santo Antônio mostram que a ocupação humana na região chega a quase nove mil anos de antiguidade, provavelmente por causa da produtividade natural da área.
Apesar de ser um obstáculo à navegação, as cachoeiras funcionavam como degraus que atenuavam a alta velocidade da correnteza do Madeira. Com a construção das barragens esse efeito se anulou e é possível que a velocidade da correnteza tenha aumentado, já que é fato que a água sai hoje com velocidade maior dos vertedouros das barragens. No caso de Santo Antônio, que fica poucos quilômetros rio acima de Porto Velho, os moradores ribeirinhos da cidade, inclusive a área onde se encontram os Mirantes, têm sofrido bastante com a erosão, que aumentou desde o início da operação da barragem.
Com a cheia deste ano temos o pior dos dois mundos: para aliviar os efeitos da inundação a montante da barragem, que alagou a BR-364, o Operador Nacional do Sistema Elétrico determinou, no dia 21/02, que 11 das 17 turbinas em atividade na usina fossem desligadas, o que levou ao aumento ainda maior do ritmo da cheia e da força dos banzeiros a jusante. Temos então uma usina que funciona com força reduzida justamente na época do ano onde a geração de energia deveria ser maior. Para complicar ainda mais, pode ser que Santo Antônio jamais possa funcionar a carga plena, porque isso aumentaria o nível da água do lago, comprometendo a capacidade de geração de energia da usina de Jirau, que teria parte suas instalações inundadas. Literalmente, um show de horrores. Enquanto isso, brigam os dois consórcios responsáveis pelas usinas e sofre a população da região.
Na estória infame das usinas do rio Madeira todo mundo tem sua responsabilidade: é bom lembrar que, no caso de Jirau, o consórcio vencedor do leilão para construção da usina e venda da energia produzida simplesmente mudou em cerca de 9 km o local de construção da barragem, sob a alegação da diminuição de custos da obra, sem que houvesse qualquer novo licenciamento! Ainda em Jirau, as más condições de trabalho levaram a uma revolta dos trabalhadores, ocorrida em março de 2011, que praticamente destruiu o canteiro de obras e levou ao êxodo de milhares de trabalhadores pelas que vagaram por dias pelas ruas de Porto Velho e BR-364.
Não é possível ainda afirmar que a construção das barragens tenha uma relação com as cheias e o aumento da erosão do rio Madeira, mas, dadas as características hidrológicas do rio, é bem possível que se verifique essa correlação. O que é inegável, a essa altura, é o abandono em que se encontra a cidade de Porto Velho: esqueletos de viadutos, prédios inacabados, ruas esburacadas. Aparentemente o legado das usinas tem sido a criação de ruínas, além do aumento da violência e, agora, esta inundação.
Antes do início das obras, era grande a esperança de mudanças na economia local, mas isso se esvaiu nas águas do rio. Espero estar enganado, mas temo pelo futuro das usinas do Madeira, em uma região que tem uma tradição centenária na construção de obras faraônicas precocemente abandonadas: a já mencionada Madeira-Mamoré e, mais antiga ainda, o forte Príncipe da Beira, construído no século XVIII às margens do Guaporé. As cachoeiras de Santo Antônio e Jirau, de qualquer modo, não voltam mais: foram bombardeadas, viraram pó, não existem mais.
O Brasil tem uma grande demanda energética e precisa supri-la. O que se avista do Mirante mostra que o modelo de Santo Antônio e Jirau não é o melhor caminho para fazê-lo.
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O rio Madeira visto do Mirante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU