Ao longo da história, a desigualdade se perpetua como uma das marcas da sociedade brasileira. Em tempos pandêmicos, pela agudização desse cenário, a qualidade de vida despenca e a alegria de um povo parece se converter em tristeza
Os dados mais recentes do Índice de Gini, que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos, indicam novamente um crescimento recorde do aumento da desigualdade no Brasil. Num contexto de crise sanitária, desemprego, aumento da informalidade e também da fome, nem a recente expansão do PIB conseguiu atingir as atividades geradoras de emprego, aprofundando a crise social.
Enquanto muitas análises indicam a necessidade de uma renda mínima, o atual governo parece estar mais preocupado em angariar recursos para manter o Auxílio Emergencial que, embora seja algo para quem não tem nada, não resolve o drama da fome e tampouco o do empobrecimento congênito da população. Mas, não é à toa, pois já é evidente que o presidente Jair Bolsonaro opera essa como mais uma forma de assegurar uma reeleição. É por isso, também, que o governo vibra com um PIB de 1,2% que sequer faz diferença para os mais pobres. Segundo o economista André Calixtre, “a hipótese da ‘Recuperação em K’ está cada vez mais clara para o Brasil”.
Na breve entrevista a seguir, concedida por e-mail ao IHU, analisando esse aumento da desigualdade a partir das pesquisas da FGV Social, ele explica que esse padrão de recuperação em K “é dado pela concentração de capital, fusão e aquisição das grandes empresas e falência de pequenos negócios, melhorias da rentabilidade e lucratividade do capital e até mesmo aumento da produtividade”. Assim, “os frutos desse progresso não são mais nem parcialmente apropriados pelas populações pobres ou mesmo pela classe média, gerando um fenômeno contraditório de crescimento econômico com diminuição do bem-estar”.
Waldir Quadros, outro economista provocado pelo IHU para uma rápida análise em entrevista por e-mail, também insiste que esse ‘pibinho’ não chega nas “atividades geradoras de emprego, particularmente comércio e serviços”. Ele ainda acrescenta que “o agravamento da crise social sempre tem reflexos políticos” e que, ainda em vista da pandemia, o cenário é desfavorável a uma reeleição [de Jair Bolsonaro]. “Cenário esse que se tornou ainda mais problemático com o retorno do ex-presidente Lula ao páreo eleitoral. As camadas populares conservam vivas na memória as muito melhores condições de vida vigentes em seus governos. Tudo isso se reflete no comportamento das várias pesquisas de opinião. Porém, são muito preocupantes as constantes ameaças à lisura das eleições e ao acatamento dos seus resultados”, analisa.
Para o economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Róber Iturriet Avila, “a elevação da desigualdade não é uma surpresa”. “A economia brasileira está em uma fase de estagnação e crise desde 2015. Há uma desestruturação das políticas públicas em todos os níveis de governo, precarização do mercado de trabalho e redução de direitos trabalhistas”, avalia. E por isso recomenda que se veja essa pequena recuperação com cautela.
Para Róber, o que é evidente é que “a crise atual tem abalado as concepções de política fiscal” e com isso “as principais economias do mundo saíram na frente com proteção social ampla, investimentos públicos maciços, tributação sobre os mais ricos e sobre grandes empresas”. Já o Brasil ainda ‘patina’ nesse quesito. “Mais do que nunca, para sairmos do quadro atual, precisaremos de um Estado atuante: na proteção social, nos investimentos contracíclicos, na oferta de crédito e na ampliação de bens públicos”, conclui.
A psiquiatra Vera Garcia da Silva reitera a tese de que os mais pobres “já sofriam com a "epidemia do descaso", com o "vírus da indiferença e do preconceito'', e “entregues à própria sorte”. A partir dessa mesma provocação feita aos economistas pelo IHU, ela analisa que “o sentimento de desamparo e não pertencimento ao establishment os obriga a criar mecanismos próprios de sobrevivência, tanto do ponto de vista social como individual”. Ou seja, a questão passa a ser muito mais de sobrevivência, e a felicidade passa a ser algo muito distante, o que não quer dizer que falte afeto. “Muitas dessas pessoas residem agrupadas em família, em moradias precárias e pequenas, onde às vezes falta comida, mas sobra afeto para protegê-las contra os impactos da pandemia”, acrescenta.
Rosa Ângela Chieza destaca que a desiguale no Brasil está se ampliando desde 2017 em decorrência da adoção de políticas de corte do gasto público e, em contrapartida, o país é o sétimo do mundo com o maior número de bilionários. "Em 2021, são 65 pessoas no país, 11 a mais do que em 2020, com fortunas individuais superiores a 1 bilhão de dólares. Além disso, estes 65 bilionários brasileiros aumentaram a sua riqueza, durante pandemia, em quase R$ 500 bilhões. No conjunto, a fortuna estimada deste seleto grupo é de aproximadamente US$ 212 bilhões. Além destes 65 bilionários, o país tem 1,1 milhão de contribuintes com renda média mensal de R$ 135 mil e patrimônio médio declarado de R$ 7 milhões. Estes dados demonstram que a crise da Covid-19 impacta de forma distinta a sociedade ampliando a desigualdade de renda, de patrimônio e, ao fim e ao cabo, a desigualdade social. De outro lado, um quarto da população brasileira, ou seja, 52,7 milhões de pessoas, vive em situação de pobreza ou extrema pobreza", informa.
André Bojikian Calixtre é graduado em Ciências Econômicas e mestre em Economia Social e do Trabalho e doutorando em Economia pela Universidade de Brasília - UNB. Atualmente é técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea.
Waldir Quadros é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.
Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Também foi analista pesquisador da Fundação de Economia e Estatística, onde assessorou a direção.
Vera Garcia da Silva é médica especialista em Psiquiatra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, possui MBA de gestão em saúde pela FGV e observership no Jackson Mental Health Hospital, da Universidade de Miami.
Rosa Angela Chieza é graduada em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, mestra e doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente leciona na UFRGS.
IHU On-Line - Segundo pesquisa da FGV Social, o índice de Gini, que mede a desigualdade, cresceu para 0,674 no primeiro trimestre, contra 0,642 do ano passado, registrando novo recorde histórico de aumento das desigualdades no Brasil. O que isso significa no atual contexto e para a realidade concreta das pessoas que vivem nessa situação?
André Calixtre – Primeiramente, esse oportuno estudo publicado pelo professor Marcelo Neri mostra apenas a dimensão da desigualdade das rendas do trabalho, portanto, não estamos tratando ainda do impacto das transferências diretas na renda total percebida pelos indivíduos durante a pandemia, especialmente o Auxílio Emergencial. Essa ausência é perfeitamente justificada pela indisponibilidade de dados sobre as outras fontes de renda que o brasileiro recebeu em 2020 e 2021, cuja publicação compete ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE em seus cadernos anuais da Pnad Contínua.
André Calixtre (Foto: Arquivo pessoal)
De todo modo, a pesquisa lança luz sobre um fenômeno que temos observado no mercado de trabalho na pandemia: o seu brutal encolhimento, representado pela saída de milhões de trabalhadores informais da atividade econômica. As variáveis estão muito confusas na pandemia, pois, paradoxalmente, houve aumento da formalização da população ocupada em conjunto com o aumento da população desempregada e da população fora do mercado de trabalho. Esse fenômeno, característico de 2020, explica tanto as melhorias das condições aparentes do mercado de trabalho que sobreviveu à pandemia, mas também o imenso desastre que a ausência de políticas públicas efetivas para o controle da pandemia provocou nos postos informais de trabalho. Como o setor formalizado da economia conseguiu se proteger mais do que o setor informal, às custas de um forte processo de quebra das empresas pequenas e médias em favor das grandes, a distribuição salarial da renda piorou muito, pois estamos assistindo ao ocaso da economia popular montada nas últimas décadas, logo uma forte pauperização das rendas do trabalho dos estratos mais baixos da distribuição.
Esse processo já estava em curso antes da pandemia, desde a reforma trabalhista e a emenda do teto de gastos implementadas pelo governo Temer, mas a desorganização pandêmica acelerou a expulsão do setor popular do mercado de trabalho para a inatividade. Provisoriamente, esse contingente populacional imenso pôde sobreviver graças ao Auxílio Emergencial, especialmente quando este estava no valor de R$ 600,00 do início da pandemia. No entanto, o governo Bolsonaro não conseguiu proteger estruturalmente o setor de serviços, impactado pelo atraso na vacinação e nos sinais trocados emitidos contra um fechamento profundo, mas curto, das atividades, deixando esse setor vulnerável ao "abre e fecha" das ondas de contaminação descontroladas. Essa população de trabalhadores, informal, precarizada, mas que teve aumento real da renda do trabalho nas últimas décadas, está fora do jogo do novo padrão de crescimento que está se abrindo com o controle tardio da pandemia. Estamos assistindo à construção de um padrão de crescimento econômico profundamente excludente e gerador de desigualdades.
Waldir Quadros (Foto: Unicamp)
Waldir Quadros - O crescimento do índice de Gini reflete o comportamento dos rendimentos e a piora das condições sociais, particularmente no que diz respeito às camadas populares, as quais, sem dúvida, são as mais afetadas pela pandemia e seus impactos econômicos sobre uma situação que já era bastante problemática.
Avançam o desemprego, a informalidade, as carências alimentares e a fome, o aumento da população desabrigada, entre outras mazelas. Além, é claro, da brutal mortandade provocada pelo criminoso descaso governamental em relação à Covid-19.
Róber Iturriet Avila (Foto: Arquivo IHU)
Róber Iturriet Avila – A elevação da desigualdade não é uma surpresa. A economia brasileira está em uma fase de estagnação e crise desde 2015. Há uma desestruturação das políticas públicas em todos os níveis de governo, precarização do mercado de trabalho e redução de direitos trabalhistas. Além disso, o corte de gastos públicos tem efeitos recessivos e é, portanto, desempregador.
Agravando esse cenário, houve a crise econômica de 2020, provocada pelo choque da pandemia, que é sistêmica, em todas as escalas e multifacetada, sendo todas graves. Redução da atividade econômica, paralisia temporária de alguns setores, elevação da taxa de desemprego, saída de trabalhadores do mercado, aumento do desalento, crise nos principais parceiros comerciais do Brasil, incertezas diversas sobre o futuro imediato, etc.
Na prática, isso representa uma redução expressiva do salário real para as fatias mais pobres da população. Seja pela taxa de desemprego, seja pela elevação de preços de produtos básicos. Há, ainda, aumento da informalidade, barateamento de serviços intensivos em mão de obra não qualificada, subutilização da força de trabalho, precarização e pauperização.
O cenário regional espelha em grande medida o que ocorre nacionalmente. Os dados existentes nos trazem um quadro mais específico sobre as regiões metropolitanas. No caso da região metropolitana de Porto Alegre, a retração de renda esteve entre as mais intensas do Brasil, assim como a perda de empregos, sendo mais significativos para os estratos inferiores de renda.
Vera da Silva (Foto: Arquivo pessoal)
Vera Garcia da Silva - A pandemia da Covid-19 veio aprofundar as condições de desigualdade social que já existiam. A crise econômica gerada pela necessidade de isolamento social e a falta de políticas públicas eficazes de distribuição de renda, de segurança, de saúde, de educação de qualidade e de moradia popular agravaram problemas sociais crônicos de violência, fome, desemprego e doenças.
Rosa Ângela Chieza - A desigualdade no Brasil está se ampliando desde 2017. No Brasil, a redução da desigualdade resulta, segundo a CEPAL (2015) da adoção de políticas do gasto público, em especial em educação e saúde, pois a tributação no Brasil, como é regressiva, cobra proporcionalmente mais de quem ganha menos e não contribui para a redução da desigualdade.
Rosa Chieza (Foto: Comunicação FCE)
Assim, a Emenda Constitucional 95/2016, do teto de gastos, que limitou o gasto público primário, ou seja, saúde, educação, saneamento e outros gastos (exceto os gastos com juros), trouxe, como esperado, o aumento da desigualdade. Além disso, outras medidas, como a reforma trabalhista, também contribuíram para ampliar a desigualdade. No entanto, a crise de Covid-19 e o enfrentamento da crise sanitária, econômica e social, de forma errática e descoordenada, contribuíram para piorar ainda mais o aumento da desigualdade, a despeito de Parlamento Federal ter aprovada a renda emergencial de 600 reais em 2020, o que evitou, um quadro ainda mais alarmante. O Estado tem a função de estabilizador, isto é, deve adotar política macroeconômica para a promoção do emprego. No entanto, no Brasil, o ministro da economia não diferencia Estado de empresa. Este é um equívoco intencional, pois esta diferença é ensinada no primeiro semestre dos cursos de economia.
Segundo a Forbes (2021), o Brasil é o sétimo país do mundo com maior número de bilionários. Em 2021, são 65 pessoas no país, 11 a mais do que em 2020, com fortunas individuais superiores a 1 bilhão de dólares. Além disso, estes 65 bilionários brasileiros aumentaram a sua riqueza, durante pandemia, em quase R$ 500 bilhões. No conjunto, a fortuna estimada deste seleto grupo é de aproximadamente US$ 212 bilhões. Além destes 65 bilionários, o país (Brasil, 2020b), tem 1,1 milhão de contribuintes com renda média mensal de R$ 135 mil e patrimônio médio declarado de R$ 7 milhões. Estes dados demonstram que a crise da Covid-19 impacta de forma distinta a sociedade ampliando a desigualdade de renda, de patrimônio e, ao fim e ao cabo, a desigualdade social. De outro lado, um quarto da população brasileira, ou seja, 52,7 milhões de pessoas, vive em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Neste cenário, se o Estado brasileiro não adotar políticas anticíclicas, a exemplo do que a Europa e os EUA estão fazendo, e também de orientações do Fundo Monetário Internacional – FMI, como a tributação dos super ricos, a retomada do crescimento econômico será “um voo de galinha” e termos sérios riscos sociais. Um quadro insustentável. Em nenhum lugar do mundo, o mercado solucionou as crises. Este é papel do Estado.
Enquanto usa-se como política de combate à pandemia a cloroquina, mente-se, oficialmente, sobre o tamanho do déficit da Previdência dos militares, usa-se orçamento secreto/paralelo para beneficiar grupos que já são os beneficiados na sociedade, e a desigualdade cresce. A desigualdade é nociva, tanto do ponto de vista político, quanto econômico. Político porque fragiliza a democracia, pois o 1% mais rico impõe, pelo poder econômico, o que deve ser aprovado no parlamento, a despeito de ter havido eleições. E econômico, porque fragiliza a retomada do crescimento econômico.
Há várias alternativas, dentre as quais, a tributação sobre os 1% mais rico (os quais historicamente são subtributados). Isso garantiria, segundo estudos do grupo de estudos Macroeconomia e Desigualdade da USP, “a transferência de R$125,00 mensais para os 30% mais pobres” e elevaria o multiplicador da economia, tornando mais expansionista qualquer nova injeção de demanda, com impacto positivo de 2,4% no PIB.
IHU On-Line - Em contrapartida, no cenário nacional, comemora-se um aumento do PIB. O que o crescimento do PIB representa em termos de redução das desigualdades? De que modo ele impacta a vida dos pobres e miseráveis?
André Calixtre – A hipótese da "Recuperação em K" está cada vez mais clara para o Brasil. Esse padrão é dado pela concentração de capital, fusão e aquisição das grandes empresas e falência de pequenos negócios, melhorias da rentabilidade e lucratividade do capital e até mesmo aumento da produtividade. No entanto, os frutos desse progresso não são mais nem parcialmente apropriados pelas populações pobres ou mesmo pela classe média, gerando um fenômeno contraditório de crescimento econômico com diminuição do bem-estar.
Evidentemente que este padrão é politicamente determinado, tanto pela estrutura institucional que foi erguida após o golpe de 2016 e continuada pelo ultraliberalismo do governo atual, quanto pelas escolhas político-sanitárias adotadas na pandemia, que privilegiou sistemas individuais de acesso à renda emergencial em detrimento de todo o sistema de assistência social disponível. Não é mera coincidência ver as filas de pessoas desesperadas nos bancos públicos em busca da validação de seu cadastro em um aplicativo de celular para receber o Auxílio Emergencial, que representa a sua sobrevivência exclusiva em uma sociedade que simplesmente destruiu seus postos de trabalho. Essa imagem do cidadão individualizado e refém de um aplicativo demonstra claramente o desenho de política social dado pelo golpe de 2016, que é o oposto dos princípios da humanização, da busca ativa do cidadão desamparado e, portanto, de uma política social que buscava estar presente na realidade concreta da pessoa detentora de direitos.
No fundo, quero dizer que o que estamos assistindo com a pandemia não se trata de um fenômeno passageiro, emergencial e, sim, da aceleração do novo modo de organização da sociedade ultraliberal. Os impactos desse novo modelo serão profundos para a vida dos pobres, ao ponto de excluí-los das oportunidades de ascensão social pela via do trabalho e da imposição de um regime de transferência de renda que, quando antes estava associada complementarmente ao mundo do trabalho, agora seria o único meio de vida e, por isso, nunca estaria a par da subsistência mínima proporcionada pela sociedade do trabalho. Esse é um ponto crucial para se pensar novos modelos de desenvolvimento que rompam com a lógica predatória do indivíduo e ofereçam novamente a oportunidade ao cidadão comum de ascender pela via do trabalho com políticas sociais eficientes e que o auxiliem nessa jornada.
Waldir Quadros - A recente expansão do PIB não atingiu as atividades geradoras de emprego, particularmente comércio e serviços. Assim, embora o crescimento econômico sempre seja desejável, ele ainda não contribuiu para minorar a gravidade da crise social.
Róber Iturriet Avila – Crescimento econômico é algo positivo, é claro. Porém, é preciso ter cautela nas comemorações. O nível de renda per capita continua bastante abaixo do patamar de 2013. Parte da recuperação está relacionada com o tombo anterior. Além disso, do ponto de vista setorial, o destaque está no setor primário, que é bastante impactado pela demanda externa e pela variação cambial.
A agroexportação é relevante para nossas contas externas, mas com impactos restritos sobre o nível de emprego. Já setores mais empregadores e com maiores encadeamentos produtivos têm uma retomada ainda modesta, são eles: serviços, construção civil, indústria de transformação e indústria geral.
Dessa maneira, o dinamismo tem sido mais do setor externo, com baixa repercussão sobre o nível de empregos, sobretudo aos menos qualificados. Parte do sucesso externo está relacionado à desvalorização pretérita da moeda nacional, que voltou a valorizar-se recentemente, e parte é puxada pelos países que estão com ousadas políticas de gasto público e retomada consistente, particularmente Estados Unidos e China.
Vera Garcia da Silva - O aumento do PIB não diminui o problema estrutural da desigualdade social brasileira porque o desemprego e a alta da inflação, especialmente com aumento de preços dos alimentos, afetam principalmente os mais pobres. O valor do Auxílio Emergencial não é suficiente para suprir as reais necessidades da população carente.
Rosa Ângela Chieza - A retomada do crescimento econômico é muito importante. No entanto, além deste crescimento ser pífio, ele parte de uma base muita baixa, pois, em 2020, a queda do PIB foi de 4,1%. Como não há adoção de política macroeconômica favorável ao crescimento econômico, ao contrário, o discurso do presidente amplia a insegurança jurídica, e não há perspectiva de aumento de demanda agregada da economia. Qual empresa vai produzir se não há a expectativa de vender seu produto e obter ganhos?
Estamos vendo grandes empresas saírem do Brasil e até mesmo empresas localizadas na Zona Franca de Manaus. Outro resultado da política do teto de gastos, que é outra falácia, está no sucateamento das universidades, resultando num êxodo de profissionais aqui formados com recursos públicos e durante muito tempo. Estamos indo em direção oposta a países como os EUA e os da Europa, dentre outros. É muito preocupante. Os países estão estatizando e nós estamos indo na direção oposta, com discurso e concepção de economia bastante atrasado.
IHU On-Line - Quais os efeitos psicológicos dessa realidade, particularmente para aqueles que haviam melhorado de vida e se veem mergulhados novamente na pobreza ou em uma situação de vulnerabilidade social e econômica?
Vera Garcia da Silva - Os brasileiros de maior vulnerabilidade social e econômica já sofriam com a "epidemia do descaso", com o "vírus da indiferença e do preconceito'', e entregues à própria sorte. O sentimento de desamparo e não pertencimento ao establishment os obriga a criar mecanismos próprios de sobrevivência, tanto do ponto de vista social como individual. Muitas dessas pessoas residem agrupadas em família, em moradias precárias e pequenas, onde às vezes falta comida, mas sobra afeto para protegê-las contra os impactos da pandemia.
Por outro lado, estudos revelaram que mulheres, geralmente sobrecarregadas com multitarefas, pessoas sem filhos e portadores de doenças crônicas prévias tendem a perceber a pandemia de forma mais drástica e são mais suscetíveis à depressão, ansiedade e abuso de drogas lícitas e ilícitas, compulsão por comida e estresse acentuado.
IHU On-Line - Como o aumento da pobreza e das desigualdades pode repercutir nas eleições de 2022?
André Calixtre – Não tenho ainda clareza sobre o cenário de 2022. É preciso vencer as condições dadas pelo ano presente, que não garantem nem mesmo o crescimento econômico desejado pelo grande capital.
É preciso lembrar que estamos no início da terceira onda de contaminações, que espero seja menos letal em razão da vacinação da população de maior risco, ainda que em atraso. E há o risco real de racionamento energético, que pode impactar duramente a capacidade de recuperação econômica em si. Ademais, temos que considerar a maior taxa de desemprego da história, aumento das desigualdades salariais, o retorno da fome e da pobreza extrema, especialmente se o Auxílio Emergencial não prosseguir até o final da pandemia. Desde a pandemia, mais da metade da população em idade ativa estava ou fora do mercado de trabalho ou desempregada; há, portanto, um contingente inédito de pessoas que se encontram apartadas do regime de crescimento econômico, seja ele qual for, e isso é, por si mesmo, um problema estrutural e inescapável para ser enfrentado por qualquer tipo de governo, mesmo o mais negacionista.
Waldir Quadros - O agravamento da crise social sempre tem reflexos políticos. Junto com a catástrofe da pandemia, o cenário é altamente desfavorável para o governo e a reeleição do atual presidente. Cenário esse que se tornou ainda mais problemático com o retorno do ex-presidente Lula ao páreo eleitoral. As camadas populares conservam vivas na memória as muito melhores condições de vida vigentes em seus governos. Tudo isso se reflete no comportamento das várias pesquisas de opinião. Porém, são muito preocupantes as constantes ameaças à lisura das eleições e ao acatamento dos seus resultados.
Róber Iturriet Avila – A situação social e de emprego será bastante determinada pelo quadro sanitário. Caso a vacinação diminua o volume de mortes nos próximos meses, a economia tende a reagir, com capacidade de melhorar alguns indicadores. Adicionalmente, o governo tem prometido ampliar em valor e em quantidade o Programa Bolsa Família, o que pode favorecê-lo eleitoralmente. Caso não haja elevação de investimento público e nem ampliação de políticas assistenciais, o governo federal atual deve ter um desempenho eleitoral desfavorável nas camadas sociais mais vulneráveis.
Vera Garcia da Silva - Eu sou fascinada por política, pelo seu dinamismo e complexidade, características que a tornam um espelho da condição humana. Muitas vezes, conseguimos juntar todos os elementos para concretizarmos um determinado projeto e, aos 45 minutos do segundo tempo, surge um fato inesperado que muda tudo.
Acho que quando pensamos em eleições, especialmente na era digital, apesar de projetarmos alguns desfechos, temos que estar atentos porque uma simples fake news lançada na mídia no último minuto, pode mudar o resultado final e afetar negativamente nossas vidas por muitos anos.
Rosa Ângela Chieza - O aumento do caos social deixa esta população mais sujeita ao risco de ser cooptada pelo populismo bolsonarista. Veja, o ministro da economia teve a ousadia de ofertar restos de comida e alimentos vencidos para às pessoas pobres, como se bastasse ampliar o prazo de vencimento dos alimentos para enfrentar a fome e o desemprego. O consumo de alimentos depende da renda e renda depende de emprego. E os empregos não virão com a ausência de políticas macroeconômica anticíclica e com o discurso diário do presidente, que amplia a insegurança jurídica no país.
Por isso, a educação é fundamental para esclarecer e formar esta cidadania. Isso parece óbvio, mas quando ouve-se na TV que “o orçamento público deve ser gestado como o orçamento doméstico”, estamos no fundo do poço também na formação cidadã. Isso só é verdadeiro, se, por exemplo, a dona de casa tivesse um banco central, emitisse moeda e definisse a taxa de juros dos empréstimos que fizer. Você conhece alguma?
Esta estratégia, apesar de ser de fácil compreensão pelo cidadão, revela uma mentira, pois o orçamento público tem dinâmica oposta ao orçamento doméstico. Então, o que está embutido na difusão do mito do “orçamento público como se fosse o orçamento doméstico” é o mito da austeridade, o corte de gastos em saúde, educação, assistência social, segurança etc., enquanto, este mesmo orçamento, que corta políticas públicas em áreas fundamentais, garante as demandas do 1% mais rico. Veja, com o mesmo argumento do mito da austeridade, o presidente Bolsonaro vetou o acesso à internet para milhões de crianças e jovens brasileiros que estão fora da escola em função da pandemia. Esta perda é de longa e de difícil recuperação, mas é uma estratégia que reproduz e amplia as desigualdades, neste caso, na área educacional. Então parece que este é o objetivo do governo e da política econômica: favorecer o topo. E, eventualmente, distribuir alguma “migalha” como alimentos deteriorados, mas com o “prazo de validade no vencimento”.
Se seguirmos com a política de corte de gastos e não implementarmos uma reforma tributária que leve em conta a capacidade de pagamento do contribuinte, a desigualdade tende a seguir se ampliando com as consequências econômicas e políticas perversas, que apontei na resposta da questão acima.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Róber Iturriet Avila – A crise atual tem abalado as concepções de política fiscal. As principais economias do mundo saíram na frente com proteção social ampla, investimentos públicos maciços, tributação sobre os mais ricos e sobre grandes empresas. No Brasil, estamos defasados. Há um teto de gastos que asfixia a economia como um todo. Desde sua implementação, a dívida cresceu, o PIB não. Houve fuga de capitais do Brasil, ampliação da taxa de desemprego, redução de gastos nas áreas de educação, e, antes da pandemia, também na saúde pública.
Podemos dizer que o insucesso é retumbante. Mais do que nunca, para sairmos do quadro atual, precisaremos de um Estado atuante: na proteção social, nos investimentos contracíclicos, na oferta de crédito e na ampliação de bens públicos.
Texto: João Vitor Santos
Quando Pedro II foi elevado ao trono, em 18 de julho de 1841, o primeiro chefe de Estado nascido no Brasil encontrou dificuldade para se desvencilhar de uma elite, então caracterizada pela corte, que parecia ter seus projetos próprios de Brasil, misturando-se a interesses pessoais. Na prática, enquanto o jovem imperador sonhava com a imagem de uma nação de brasileiros, sua claque parecia estar mais preocupada em assegurar a vida boa a partir do trabalho de uma população ainda escravizada (de fato e de direito) e mais pobre. Talvez essa não seja a origem da desigualdade no Brasil, mas desde então parece estar nos subterrâneos dos inúmeros projetos de nação, passando pelas duas fases da República, pela ditadura e rasgando o período conhecido como redemocratização, chegando forte nos dias de hoje.
“O Brasil não é desigual por acidente. Ser [um país] desigual como o Brasil requer muito esforço. Nenhuma medida isolada vai resolver o problema, nem transformar o Brasil na França em um par de décadas. E olha que a França nem é o país mais igualitário do mundo, mas é um país razoável”. A frase bem poderia ser de Pedro II, apaixonado pela missão francesa e as tintas que usam para pensar o Brasil desde a chegada de sua família, mas é bem mais atual. É do economista Pedro Herculano de Souza, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, que, em 2016, analisou a desigualdade brasileira desde o recorte de renda, na série histórica que vai de 1926 a 2013, em uma análise reproduzida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Esse foi um período em que a economia parecia despertar para as desigualdades a partir da obra do economista francês Thomas Piketty, O capital no Século XXI (São Paulo: Intrínseca, 2014). No IHU, muitos especialistas apontam que o caminho seria mesmo tributar as fortunas para tentar estreitar esse fosso das desigualdades no Brasil, uma das teses centrais do economista. “Piketty deixa a mensagem de que a sociedade precisa ser mais forte que a economia que a sustenta. O que acontece no século XXI não é a luta de classes, o operariado na fábrica. É mais perverso: é a luta de 1% (mais rico) contra todo o resto”, apontou o professor Flavio Comim, em 2015, quando refletia sobre as desigualdades do Brasil a partir do livro de Piketty.
No entanto, o tempo passou, a realidade política e econômica mudou e só o que permaneceu foram as desigualdades. Pesquisa divulgada nesta semana pela FGV Social revela que o índice de Gini no Brasil, indicador que serve para medir a concentração de renda, no primeiro trimestre de 2020 estava em 0,642 e no primeiro trimestre deste ano alcançou a marca de 0,674, a maior da série analisada desde 2019. Embora muitos possam considerar que isso é apenas um dos efeitos da pandemia, o economista Marcelo Neri, que coordena esses estudos, aponta que na verdade a Covid-19 agudiza um cenário que já vinha ruim. “A pandemia veio em um momento de fragilidade trabalhista. O resultado é pior do que uma década perdida. Andamos para trás. O bolo de renda diminuiu, e diminuiu mais para os mais pobres”, observa em entrevista à Folha de São Paulo, com trechos reproduzidos pelo IHU.
Falar da desigualdade não se trata somente de falar de renda, de quem ganha mais e quem ganha menos. É falar sobre empobrecimento, não ter o que comer e não saber quando será a próxima refeição. São essas as preocupações de muitos brasileiros hoje, enquanto uma fatia bem pequena da população segue no mantra de que para a crise é preciso criatividade, que no caso desses significa pensar outras formas de ganhar ainda mais.
Para Maria Emília Lisboa Pacheco, assessora da ONG Fase - Solidariedade e Educação, que há muito tempo trabalha com segurança alimentar, não há como ter meias-palavras: o retorno da fome no Brasil está no centro dos interesses políticos e econômicos. “A sociedade e o Estado têm uma dívida histórica com camponeses pobres, indígenas, ex-escravos. A concentração fundiária é um problema social, político e econômico que passa por toda a nossa história desde a Colônia. Não realizamos uma verdadeira Reforma Agrária no país”, aponta, em entrevista recente ao IHU em que coloca a Lei de Terras, assinada por Pedro II, como uma das causas da desigualdade e, logo, do empobrecimento e da fome.
Diante da fome real e presente e de uma história de desigualdades, é possível ser feliz? Segundo a pesquisa da FGV Social, coordenada por Marcelo Neri, não. Para o professor, temos vivido os versos de Lupicínio Rodrigues em “Felicidade foi-se embora”. “Começamos com medida geral de felicidade dada por uma nota de avaliação de satisfação com a vida numa escala 0 a 10. Pegando os dados da pesquisa ‘Como Vai a Vida?’, lançada pela FGV Social, observamos na pandemia queda sobre queda, pois a nota de felicidade tupiniquim já tinha tido a terceira maior piora entre 130 países nos quatro anos anteriores, de 2014 a 2018. Depois recupera 0,3 pontos em 2019 e tem uma queda de 0,4 pontos em 2020, chegando a 6,1 em 2020, o menor ponto da série histórica desde 2006”, detalha Neri, no texto de divulgação da pesquisa.
Na sua canção sobre a felicidade que se desfaz, Lupicínio Rodrigues fala de uma saudade, talvez saudade de uma terra lá do interior. Terra essa que talvez nunca foi sua, mas que parece claro agora que esse personagem não pode viver mais lá e vem para a cidade, onde a “falsidade vigora”. A falsidade da cidade grande pode mesmo deixar triste, mas sem ter onde descansar a cabeça depois de um dia inteiro, ainda sem a certeza da próxima refeição, pode ser uma dor ainda maior daquele matungo do interior que é jogado na cidade. História que não é nova e que o Brasil acompanhou concomitantemente com o crescimento de suas metrópoles, de empreiteiros que ganham com grandes arranha-céus e retirantes operários que viravam favelados depois da obra pronta.
Essa é mais uma face da desigualdade, que se nutre também do individualismo. É nesse sentido que vai o Papa Francisco em sua mensagem para o V Dia Mundial dos Pobres, divulgada no último fim de semana e reproduzida pelo IHU, quando defende que “um estilo de vida individualista é cúmplice na geração da pobreza e, muitas vezes, descarrega sobre os pobres toda a responsabilidade da sua condição”. É por isso que o pontífice defende que é preciso superar essa ideia fatalista de que o destino de uns é ser pobre e de outros é ser rico, como se fosse natural. “A pobreza não é fruto do destino; é consequência do egoísmo. Portanto é decisivo dar vida a processos de desenvolvimento onde se valorizem as capacidades de todos”, dispara, nessa mesma mensagem em que revela inúmeras formas de pobreza, como a violência contra as mulheres.
Na mensagem deste ano, Francisco ainda lança um desafio, ao considerar que “impõe-se, pois, uma abordagem diferente da pobreza. É um desafio que os governos e as instituições mundiais precisam de perfilar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo e marcarão de maneira decisiva as próximas décadas. Se os pobres são colocados à margem, como se fossem os culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social”. Ou seja, é trazendo o pobre ao centro que se pode pensar sobre sua condição e como se pode lutar contra ela.
Esse desafio ainda é ressaltado na mensagem em vídeo que o pontífice enviou aos participantes da 109ª Conferência Internacional do Trabalho, que se realiza em Genebra, na Suíça, nesta quinta-feira (17/06). Promovido pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, o evento reúne representantes de Governos, organizações de empresários e trabalhadores.
Para Francisco, "esta conferência foi convocada num momento crucial da história social e econômica, que apresenta desafios sérios e abrangentes para o mundo inteiro. Nos últimos meses, a Organização Internacional do Trabalho, através de seus relatórios regulares realizou um trabalho louvável ao dedicar atenção especial a nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis".
No vídeo, o Papa ainda convida a Igreja e os governantes a darem uma resposta incisiva àqueles que se encontram "à margem do mundo do trabalho", esmagados pelas consequências dramáticas da Covid-19. “Muitos migrantes e trabalhadores vulneráveis e suas famílias são geralmente excluídos do acesso a programas nacionais de promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento e assistência, bem como dos planos de proteção financeira e serviços psicossociais”, diz.
Já destacamos no Instituto Humanitas Unisinos - IHU várias análises que dizem que a situação piorou com a pandemia e que a chamada 4ª Revolução Industrial, a qual vinha reconfigurando as formas de trabalho ao ponto de que cada vez um número menor de pessoas conseguem se manter num emprego atualmente, tem agido com mais força sobre esse empobrecimento. Então, como romper com essa ideia de que a maioria está destinada à pobreza? Quem sabe, esse modelo global de enfrentamento da pobreza que o Papa propõe não passa por um antigo debate que a pandemia também trouxe à pauta: a renda mínima universal.
Para José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc, a experiência do Auxílio Emergencial e do Bolsa Família e o contexto da pandemia provam que essa é uma defesa que tem de passar a ser feita e deve estar na agenda política já no médio prazo. “Nós já temos um ‘embrião’ de renda mínima que é o Bolsa Família. Esse programa deve servir como base, assim como o Auxílio, para uma política de renda mínima”, sugere, em entrevista concedida ao IHU.