28 Abril 2021
Ao longo dos anos 1980, centenas de milhares de radiouvintes chilenos, em sua grande maioria opositores ao regime de Augusto Pinochet, acompanharam todas as manhãs as alternativas do Jornal da Cooperativa. Claro, antes que surgisse a voz de Sergio Campos e o característico fundo musical, uma voz radiofônica muito solene advertia: “Você tem o direito de saber a verdade... e a verdade está nos fatos”.
Naquele momento, a afirmação fazia todo o sentido e a coerência imagináveis: há uma realidade observável e há métodos de verificação para estabelecer se o que se afirma acerca dessa realidade é verdadeiro ou é falso, uma questão válida nas ruas e nos ambientes universitários, balizadores e guardiões do método científico.
No entanto, naquela mesma época, em certos núcleos acadêmicos dos Estados Unidos e da Europa, ganhava volume o questionamento cético do conhecimento tal como o conhecíamos. Alguns destes questionadores chamavam a si mesmos – ou foram chamados por outros – de pós-modernos. Disseram que o que sabemos da realidade não são mais do que narrativas, nenhuma intrinsecamente mais válida do que a outra; que no conhecimento não existem coisas como a autoridade ou a objetividade; que a linguagem cria, literalmente, a realidade (um de seus lemas mais populares até hoje); que a ciência é uma prática social conto tantas outras e que, como não temos acesso à realidade, não há fatos, só interpretações, e o que chamamos de “verdade” é uma questão de perspectiva.
Décadas mais tarde, certo senso comum parece ter assumido a noção de que cada um tem a “sua verdade”. E aquelas que em outra época foram reconhecidas como mentiras da política, foram reivindicadas e rebatizadas pela administração Trump. Foram chamadas, sem a menor vergonha, de “verdades alternativas”. Ou verdades, somente, embora não mude muita coisa.
Parte do exposto faz parte das pesquisas e das reflexões de Maurizio Ferraris (Turim, 1956). Aluno “rebelde” de Gianni Vattimo e discípulo de Jacques Derrida, presidente do LabOnt (Laboratório de Ontologia) da Universidade de Turim, é autor de cerca de cinquenta livros, entre eles: Introducción al Nuevo Realismo (2014) e “La imbecilidad es cosa seria” (2018). E em sua produção editorial recente aparecem Metafísica de la web (2020) e Posverdad y otros enigmas (2019). Neste último, afirma que é “difícil não ver na pós-verdade o resultado de uma veia conservadora que encontrou no pós-moderno sua legitimação filosófica e no populismo sua difusão política”.
A entrevista é de Pablo Marín, publicada por La Tercera, 24-04-2021. A tradução é do Cepat.
Qual você diria que é o status da verdade, hoje?
Na Academia essa era uma pergunta compreensível, e parecia justo argumentar que aqueles que são chamados loucos em uma época, são considerados inspirados pelos deuses em outra. Ou que a verdade nada mais é do que uma velha mentira que acabou esquecendo sua própria origem, ou que não existem fatos, só interpretações. Mas os próprios acadêmicos que antecipam estas advertências críticas contra o conceito ingênuo da verdade sabem muito bem que existem critérios de objetividade. E aqueles que dizem que não há fatos, mas interpretações, não hesitariam em processar um colega que ganha uma posição acadêmica competindo com um livro que é um plágio.
O mundo extra-acadêmico é diferente. Por um lado, existem padrões de verdade mais flexíveis, precisamente porque não se é um profissional da verdade, motivo pelo qual é mais fácil, por exemplo, incorrer em falácias de argumentação. Pensemos em uma ideia que circulou no início da propagação do vírus: que este era um resultado da globalização, como se não tivesse existido epidemias muito mais mortíferas antes da globalização e, sobretudo, como se impedir a globalização, transformando por exemplo a Terra de redonda em plana, pudesse ser a profilaxia adequada contra a covid-19.
Agora, é verdade que estas ideias circulam até mesmo nos círculos acadêmicos, mas sempre existe alguém que contestará: “o que você está dizendo? Considera que essa é uma avaliação adequada?”. Ao contrário, no mare magnum da web é mais fácil criar uma câmara de eco que reúna todos os que estão convencidos de que o vírus surgiu por causa da globalização, e ninguém os refutará.
Há um jogo de interesses muito mais forte. Ainda que felizmente a Itália não teve desde o fascismo um regime autoritário como o de Pinochet, tivemos um primeiro-ministro, Berlusconi, que para distanciar as suspeitas de exploração da prostituição e de abuso de menores, afirmou que uma jovem com quem havia exercido o comércio sexual precisava ser libertada pela polícia porque era sobrinha do então presidente egípcio [Hosni] Mubarak.
Esta versão foi apoiada por uma votação parlamentar convocada essencialmente para se pronunciar sobre se esta menina era sobrinha de Mubarak. E como Berlusconi tinha a maioria, resultou que era a sobrinha de Mubarak, sendo assim um exemplo de estabelecimento consensual da verdade que deliciaria um pós-moderno.
A ideia de que não podemos alcançar o conhecimento da verdade é bastante antiga. Qual você considera que foi a contribuição dos filósofos do século XX a esse respeito?
Do ponto de vista teórico, os filósofos do século XX acrescentam muito pouco, exceto a ideia de que a dificuldade ou impossibilidade de acessar a verdade não é uma limitação cognitiva, mas uma possibilidade política de emancipação. Mas algo assim já existia em Nietzsche. As novidades não provêm da filosofia, mas da tecnologia e da sociedade.
No século XIX, as ideias geradas na universidade permaneciam na universidade, que, além disso, era frequentada por muito poucas pessoas, em um mundo composto majoritariamente por analfabetos. O fato, louvável em si mesmo, de que hoje o mundo esteja amplamente alfabetizado, de que se tenha ampliado o acesso à universidade e ao conhecimento, e de que existam sistemas técnicos de difusão das opiniões acessíveis a qualquer um, fez com que as ideias das elites, minoritárias e inofensivas, tenham se tornado majoritárias e prejudiciais.
Kellyanne Conway, a assessora de Trump que tornou famosas as “verdades alternativas”, certamente escutou alguma conversa foucaultiana-nietzschiana na universidade. O problema se deu quando isto se tornou uma arma, não nas mãos de um professor impotente e socialmente irrelevante, mas do presidente dos Estados Unidos, que tuitou e retuitou a seus seguidores até convencê-los da verdade alternativa, segundo a qual haviam roubado a sua reeleição. E é obviamente neste nível que surgem os problemas graves.
Em ‘Posverdad y otros enigmas”, você afirma: “A democracia em que se admitisse como verdadeira, por respeito aos convencimentos individuais, a teoria de que as vacinas causam autismo, não seria uma democracia”. Que relação estabelece entre democracia, ciência e verdade?
Uma monarquia absoluta é a que afirma que o rei governa por direito divino, e o primeiro passo de uma democracia consiste em dizer que o direito divino não existe, porque não consta que Deus tenha se expressado em assuntos temporais, e o sangue do rei é vermelho, como o de todos os outros. Este primeiro passo consiste, pois, em dizer que há algo verdadeiro (todos os humanos têm sangue vermelho) e algo falso (o direito divino não existe). E a ameaça à democracia, que sempre é possível, consiste em dizer, por exemplo, que uma conhecida de Berlusconi é sobrinha de Mubarak, mesmo que seja falso.
A ideia de minimizar a importância da verdade no acontecimento soa brilhante (o que tem a ver 2+2 = 4 com a democracia?), mas não nos leva muito longe, porque se 2+2 não são necessariamente 4, mas, conforme a vontade, 3 ou 5, seria possível concluir que Trump não errou ao afirmar que roubaram a sua vitória.
Ivan Karamázov disse [em Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski]: “Se Deus está morto, tudo é possível”. E essa é uma afirmação descaradamente falsa: os pactos se cumprem em um país predominantemente ateu, como o Reino Unido, e em um predominantemente religioso, como os Estados Unidos. Mas se a verdade tivesse morrido, então tudo seria possível e, por exemplo, eu poderia dizer sem problemas que a Polônia invadiu a Alemanha em 1939, e ninguém poderia objetar.
Como avalia o avanço das “verdades alternativas” e da pós-verdade, após o início das vacinações contra a covid-19?
Parece-me um fenômeno secundário que, como sempre, vem da conspiração e do desejo, humano, mas danoso, de ter razão e de saber mais que os outros, de conhecer o pano de fundo das coisas, etc. Pessoalmente, acredito que é mais significativo que, assim que o vírus apareceu, tenha começado a busca pela vacina (e uma vacina eficaz, não uma vacina alternativa) e, ao menos na Itália, os não-vax tenham deixado de pontificar, embora eu saiba que em outros lugares as coisas foram diferentes.
Em uma paráfrase irônica dos que defendem a pós-verdade, você escreve: “Temos que dizer adeus ao culto, afinal supersticioso, à verdade, e vê-la como um ouropel supérfluo, como um tapinha nas costas dado a uma proposição, e buscar promover o diálogo e o acordo social”...
A comparação entre o tapinha nas costas e a verdade, que parece irônica, foi tomada de forma não irônica, mas apenas para gerar uma imagem expressiva, de [Richard] Rorty, em seu diálogo com Pascal Engel (À quoi bon la vérité, 2005).
Que compatibilidade ou incompatibilidade enxerga entre a verdade e a justiça social?
Acima, disse já algo sobre a incompatibilidade entre o relativismo e a justiça social, mas o ponto merece ser retomado. Suponhamos que desenho um sistema de bem-estar, com intervenções em apoio aos mais necessitados. Mas se, considerando que não há fatos, só interpretações, intervenho a favor dos mais ricos, minha ação política dificilmente poderia ser marcada pela justiça.
Mesmo as iniciativas que deliberadamente, e com razão, se comprometeram com a coexistência e a reconciliação, como a Comissão da Verdade e a Reconciliação criada na África do Sul, não puderam prescindir da verdade para conseguir a reconciliação. Tomando um exemplo hipotético, é imaginável que uma reconciliação entre a Alemanha e Israel fosse concebida assim: “A melhor maneira de se reconciliar com os israelenses é ignorar o Holocausto, para que não tenham nada para nos reprovar”?
Não é possível ser solidário, nem justo, sem a verdade, tendo presente que a história e a geografia estão cheias de sociedades solidárias, mas não justas: a solidariedade entre aristocratas para manter a escravidão (a história estadunidense conhece algo disso), a solidariedade entre mafiosos (a história italiana conhece algo disso, mas também a dos Estados Unidos, pois a máfia é uma mercadoria que se exporta). Ou o Tribunal do Povo chamado a julgar, não em nome da verdade, mas da solidariedade nacional, os responsáveis, reais e sobretudo os supostos (o que importa, se não há fatos, só interpretações?), pela tentativa de assassinato de Hitler, em julho de 1944.
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“Não é possível ser solidário, nem justo, sem a verdade”. Entrevista com Maurizio Ferraris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU