Por: Patricia Fachin | 11 Setembro 2016
Duas são as alternativas para a esquerda sobreviver à "derrota abissal” que sofreu no campo político: uma consiste em “caminhar politicamente para o centro”, mantendo o mesmo caminho escolhido pelo PT nas últimas décadas, e outra, ao contrário, em “livrar as pautas de transformação social da armadura identitária da esquerda e conseguir disseminá-las no centro”, sugere Moysés Pinto Neto à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
A primeira possibilidade, afirma, “é exatamente o mesmo modelo que levou ao esgotamento a esquerda tradicional na Europa”, e a segunda propõe “convencer as pessoas comuns que certas questões, como a diminuição do sofrimento e a erradicação da pobreza, não dependem de convicções ideológicas de fundo”. A segunda opção, contudo, é recebida com críticas por parte da militância da esquerda. “Quando afirmo isso, normalmente o público da esquerda reclama. Considera que não podemos abandonar as construções da esquerda na altura do campeonato em que estamos, e que, portanto, precisamos reafirmar a identidade. Penso, ao contrário, que podemos abandonar uma série de marcos referenciais vermelhos e partir para novas experiências e novos discursos. Com isso, seríamos capazes de traduzir para a maioria temas importantes que precisam escapar do ‘esquerdês’”. E frisa: “A esquerda precisa abandonar a posição de superioridade moral a priori e estar aberta ao falibilismo. É um esforço gigante de desidentificação que para mim também é hercúleo”.
Tomando o exemplo da clássica disputa entre se a economia deve ser regulada pelo Estado ou determinada pelo mercado, Pinto Neto explica a aplicabilidade dessas duas possibilidades. “Quando a esquerda enuncia a privatização como catástrofe, está ideologizando uma questão que para o centrista é pragmática. O que funciona melhor? Acho que devemos abandonar essa atitude dogmática e pensar também dessa forma, mas tomando a sério as razões que levariam um centrista a concordar que é melhor uma coisa à outra, dependendo do caso concreto. Provavelmente a energia é uma matéria que convém manter sob o controle público. Por outro lado, não entendo qual é a ameaça de promover melhorias na infraestrutura com empresas privadas. O que o pragmático quer é uma estrutura que não seja burocracia pesada (Estado) nem exploração (mercado). O melhor equilíbrio deve ser pensado no caso concreto. Prefiro uma atitude mais falibilista, menos dogmática em torno dessas questões”, diz. E dispara: “O fato de a esquerda hoje não ter discurso algum que possa a tornar uma alternativa institucional ao neoliberalismo – e sente-se no mundo todo essa mesma crise – está ligado a essa falta de visão para o futuro”.
Moysés Pinto Neto | Foto: Acervo IHU
Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que esse momento de “derrota abissal”, como você o classificou ao se referir ao impeachment da ex-presidente Dilma, significa para a esquerda brasileira?
Moysés Pinto Neto - O processo atual é uma derrota abissal. Abissal porque, em primeiro lugar, a esquerda no governo definhou até a morte. Morreu por desidratação, não por confrontação. Não caiu por ter se voltado contra o sistema, mas simplesmente porque não foi mais útil para o gerir e, apesar de diversas tentativas (ajuste fiscal, acordos políticos etc.), não conseguiu convencer os “donos de poder” que deveria permanecer. Por essa razão, apesar das várias analogias (sobretudo pela atitude da elite e dos mesmos grupos), é equivocado comparar o golpe atual com o de 1964. Com João Goulart, a esquerda foi derrubada por forças adversárias que queriam impedir as necessárias reformas de base. O golpe foi uma inversão abrupta da ordem, uma derrubada por adversários políticos que precisaram destruir, pela força, o surgimento de uma nova ordem.
Nada disso aconteceu em 2016: tratou-se de uma estratégia equivocada que se aprofundou até a autodestruição. Não morreu por ter confrontado; minguou até não ter mais conteúdo, ninguém mais que a defendesse, tornou-se um castelo de cartas diante dos seus adversários. Foi um processo autoimune.
Mas o abismo está mesmo em outro lugar. Se a esquerda quer se definir como contraponto ao conservadorismo da direita, é preciso que, no mínimo, ela se defina pela abertura à crítica. Afinal, não sabemos bem o que está do outro lado que desejamos habitar, diferente do mundo aqui onde a direita se sente confortável. Portanto, sem o diálogo não há possibilidade desse outro mundo existir. Em que estado estamos hoje? No bloqueio da crítica. O golpe e uma falsa narrativa que o acompanha estão bloqueando a reflexão sobre como chegamos aqui. Pior que ter executado a “estratégia zumbi” é impedir que ela seja lembrada, que saibamos o que nos conduziu até aqui. A forma como se exerce essa censura é pela ameaça de julgamento do suposto Tribunal da História.
A história com “H” maiúsculo é um dispositivo de terror. Já conhecemos – e muitos de nós fomos formados por algumas referências que viveram isso (Derrida, Deleuze, Foucault, Lyotard etc.) – o clima que se instaura quando a esquerda se vê sob ameaça. Lembro dos pequenos comitês que os professores antigos formavam na França – Althusser entre eles – a fim de avaliar o perigo que os jovens representavam na crítica ao comunismo. Já em 1994, após a publicação de “Espectros de Marx” (na verdade, uma resposta a Fukuyama), de Jacques Derrida, houve marxista afirmando que ainda não era hora para o luto e, afinal, o que a crítica ao socialismo real teria produzido senão a afirmação do capitalismo?
O ambiente inquisitorial caracteriza um momento de acusações ralas, sem argumentos, substituindo a reflexão sobre os erros que caracterizam toda experimentação política. A chantagem que existe há muito tempo – é proibido criticar para não fortalecer a direita – agora finalmente está levando junto consigo muito mais gente que em 2013. Como se, não custa dizer, a falência do projeto tivesse vindo exatamente daqueles que apontaram que iria falir a qualquer momento, daqueles que sinalizaram o beco sem saída que a política de governabilidade estava gerando, de quem criticou o neodesenvolvimentismo como um erro grave, uma direção errada em face das possibilidades que o lulismo estava gestando.
A consequência do surgimento desse Tribunal da História e sua gestão do terror, atuando por meio da intimidação, é a psicologização da política. Os argumentos não importam mais, nem mesmo as relações materiais – importa apenas quem enuncia e que afetos estão por trás da enunciação. Tudo, assim, é mero epifenômeno do psicologismo: são traidores, ressentidos, irresponsáveis, cúmplices. Todas as categorias refletem o empobrecimento da política, reduzida ao psicológico, ao subjetivo. Há um clima de vigilância permanente, um policiamento geral das opiniões reduzidas à concordância ou discordância em relação a esse mesmo eixo autoritário.
Na verdade, se realmente levássemos a sério essa psicologização, é o polo ex-governista que hoje ocupa o lugar do ressentimento: como diz Nietzsche, ele precisa culpar o outro, recriminar aqueles que ousaram pensar e romper com um arranjo de forças que claramente não se sustentaria por muito tempo. Os críticos ao último período petista poderiam simplesmente dizer: “avisamos”, pois tudo foi previsto. Se vasculharmos os próprios arquivos do IHU, encontraremos previsões de todos os eventos que vieram a acontecer. O debate estava, contudo, bloqueado pelo adesismo cego dos intelectuais – um péssimo conselheiro para o governo. Nenhum se responsabiliza pelas suas análises espetacularmente erradas, pelo que foi a eleição de 2014 e o clima que ela instaurou. Hoje, o necessário diálogo dá lugar a essa agressividade reativa.
A contraparte da psicologização é a personalização da política. O PT, uma organização múltipla construída para aprofundamento da democracia e novos experimentos da política, transforma-se simplesmente no partido de Lula, dependente do personagem carismático de cabo a rabo. Dilma, depois de um governo medíocre e centenas de erros graves, passa a heroína da esquerda. Dilma pode não ter feito o pior governo de todos os tempos, mas recuou em diversos pontos sem necessidade, tomou decisões erradas, adotou soluções inefetivas e, quando governou com sua própria vontade, fez coisas como Belo Monte. É muito preocupante que haja um policiamento sobre a exposição desses problemas, uma destruição da memória em nome de uma unidade falsa. Esse bloqueio é a nossa maior derrota.
IHU On-Line - Diante dessa derrota, quais são as propostas das esquerdas para o Brasil no âmbito econômico, social e cultural? Em que aspectos as propostas da esquerda se distinguem das demais? Que projetos alternativos a esquerda ou as esquerdas têm para a economia e para o desenvolvimento de um projeto de país para o Brasil neste momento? O que seria uma saída à esquerda?
Moysés Pinto Neto - O caráter abissal da derrota tem bloqueado o luto pela perda que aconteceu. Por isso, o afeto dominante tem sido a melancolia. Melancolia paralisante, que se confirma no clima de terror absoluto diante do futuro nas redes sociais. É preciso afirmar que o que virá será pior que o regime militar. Estamos reduzidos a formigas esmagadas pelas botas dos poderosos. As derrotas serão acachapantes: teremos nossos direitos trabalhistas destruídos, o fascismo tomará conta, as escolas proibirão professores de esquerda de lecionar, o devido processo legal desaparecerá, enfim... É preciso afirmar o pior dos mundos de tal maneira que ele imobilize totalmente a ação, como costuma pensar o melancólico.
No entanto, o que estamos vendo – e o texto de Eliane Brum sobre o país que Temer recebe foi importante nisso – é um governo fraco, apoiado pela mídia e pelos setores que promoveram o golpe, é verdade, mas emparedado diante da sua ilegitimidade permanentemente lembrada. É um governo de direita e sabíamos que o risco existia. Um dia a direita iria retornar ao poder e promover seus gestos mais típicos, inclinados a fortalecer os poderosos e reprimir as dissidências. Quem não previa isso tem dificuldades com a democracia.
Todos os gestos políticos de Temer até agora, no entanto, mostraram que ele está fragilizado diante da crítica da esquerda. Ao contrário do que demandam alguns setores liberais que o colocaram lá, ele deixa claro que não irá tocar no FGTS e nas férias ou outros direitos trabalhistas. Por que não quer? Não, porque não pode. Não pode porque a organização, apesar de tudo, ainda é forte na resistência. Todas as nomeações polêmicas e mesmo a extinção dos ministérios foram revistas diante da pressão das redes sociais e das ocupações. Temer perdeu seu José Dirceu, o superministro Romero Jucá, diante do áudio que mostra os intestinos da estratégia golpista (livrar-se da Lava Jato). O presidente é, antes de tudo, um representante do peemedebismo e, por isso, do patrimonialismo. Não é um neoliberal como seria (e poderá vir a ser) Henrique Meirelles, caso presidente. Os peemedebistas são viciados no poder, oligarquias políticas que agem para se preservar. Por isso, vai recuar sempre que a resistência for forte, como já o fizeram nos anos 90 durante o período FHC.
O que gera a melancolia, em síntese, não é nossa fraqueza diante de um poder irresistível, mas sim o governismo decrépito, o atar-se a justificar um projeto que tomou decisões erradas e acabou golpeado pelos seus adversários. Esse dispositivo é que produz a sensação de total impotência. Reconhecer a ilegitimidade e ilegalidade do impeachment, repudiar a violação da soberania popular, criticar incessantemente as figuras tecnocráticas ou fisiológicas que tomaram o poder sem voto, rejeitar até a última letra o programa implementado sem apoio das urnas – tudo isso pode ser feito ao lado da memória sobre o que passou, sem necessidade de um apoio retrospectivo a um governo indefensável. Não sei como seria uma “saída à esquerda”, mas certamente temos que sair dessa melancolia paralisante sustentada por um discurso do terror.
IHU On-Line - Em artigo recente, você apresenta diferentes esquerdas que se dividem, em linhas gerais, em dois grandes grupos: aquela que defendeu a narrativa do golpe e aquela que se opôs. Quem são os representantes dessas esquerdas?
Moysés Pinto Neto - A divisão não é tão estrita assim. Muitos até me criticaram por não reconhecer o papel da oposição de esquerda nos atos contra o golpe. Mas está lá que são três ou quatro campos: ex-governismo, linha auxiliar, autonomistas e legalistas. São simplesmente figuras de linguagem para explicar como as forças se organizaram, não vamos ficar congelados nos rótulos.
Os ex-governistas eram aqueles que criavam uma narrativa de que vivíamos um governo de esquerda sob ataque da direita, representada especialmente pelo mercado financeiro e pela mídia. Trata-se de um fato verdadeiro: mídia e mercado financeiro voltaram-se realmente contra o governo. Mas esse campo nada diz sobre o projeto fracassado de aliança com a burguesia industrial, sobre apoio aos latifundiários como política do campo contra os camponeses e indígenas, entre outras decisões que tornariam o perfil do governo muito mais discutível. Em vez de pensar a estratégia política, prefere sempre culpar os outros pelos erros.
Chamo de linha auxiliar aquela esquerda que, apesar das críticas ao governo, nunca migrou para a oposição realmente. Ela prefere ocupar o lugar de superego do PT. Não se considera alinhada, mas passa o dia justificando os atos do governo. Em nenhum momento assume o custo da ruptura, temerosa de ser confundida com a direita.
Os autonomistas, por outro lado, assumem a oposição sem restrições. Em geral, são provenientes do ecossistema de 2013 e não colocam o PT como um partido distinto dos demais. Muitos deles, apesar disso, confluíram para os atos contra o golpe, entendendo – com toda razão, a meu ver – que o ato de deposição de Dilma foi muito grave. Recusam, contudo, a ideia de que seria um estado totalmente novo da democracia. Consideram o estado de exceção como uma permanência e o ato como mais um capítulo de uma democracia incompleta, precária e seletiva.
Finalmente, chamo de legalistas o grupo de juristas que se engajou fortemente no debate contra o golpe. Utilizam o direito como mecanismo de crítica, interpretando os direitos e garantias na sua potência máxima. Suscitam várias nulidades no processo e, embora saibam que a maioria delas corresponde a práticas usuais nos tribunais em relação à população pobre (ou seja, a quase totalidade dos atingidos pela justiça criminal), afirmam que esses vícios seriam prova do golpe de Estado.
É impossível não fazer juízos de valor, mas veja que nenhum desses campos é demarcável por uma linha reta. O PSOL, por exemplo, teve em Luciana Genro uma “autonomista”, ao reivindicar eleições gerais, e em Jean Willys uma “linha auxiliar”, ao defender incessantemente o governo nos últimos dois anos. E, no entanto, Jean Willys é um excelente parlamentar, importante nome para a esquerda. O PSTU foi a única organização institucionalizada que assumiu o discurso contra todos de modo irrestrito. Mas, se levarmos a sério a ideia de autonomismo, nada tem a ver com a concepção vertical que o partido tem da política. O PT teve alguns representantes que ficaram na linha entre o legalismo e a ruptura, como Tarso Genro e Paulo Paim, que defenderam novas eleições. Há juristas que faziam uma crítica irrestrita ao governo, mas engajaram-se no legalismo em defesa da Constituição de 1988. Em suma, não há como traçar simplesmente uma linha reta nessas categorias. Elas são marcadores contingentes.
O que está em disputa nisso tudo, no entanto, não é a palavra “golpe”, mas os efeitos discursivos que ela produz. Se ainda existe uma esquerda que resiste a usar o nome “golpe”, é porque não quer comprar junto o pacote com a narrativa ex-governista. Ela pode assumir que houve chicana e que o impeachment é irregular, mas não quer levar junto o universo de referências que circula em torno da imagem do golpe. Particularmente, não vejo problema algum em chamar de golpe. Houve golpe parlamentar, sim. Mas isso não me fará comprar junto um conjunto de afirmações falsas sobre o estado das coisas produzido apenas a fim de reforçar a esquerda que foi deposta.
IHU On-Line - Como as diferentes esquerdas saem desse processo pós-impeachment? As disputas e os rachas tendem a se aprofundar ou concorda com aqueles que afirmam que “a esquerda será somatória”?
Moysés Pinto Neto - Parece difícil, nesse momento, traçar um diagnóstico muito claro acerca disso. As peças ainda estão se movimentando, os campos de forças se aglutinando e as pautas iniciando a circular. Há diversas indefinições que trancam esse movimento somatório, como as que falei na pergunta anterior.
Não sei se haverá “unidade de esquerda” e nem se isso é desejável. Pode haver uma composição contingente, de oposição ao neoliberalismo e a todo recuo em pautas de transformação, de defesa dos programas sociais, dos direitos humanos, entre outras lutas típicas da esquerda. Mas existe uma esquerda que, para além da crítica ao neoliberalismo, critica também o desenvolvimentismo. Ambos seriam parte do aceleracionismo capitalista. Assim, não vejo como será possível – diante de projetos distintos – algum tipo de conciliação. Esse racha cedo ou tarde voltará a aparecer. Uma das incompreensões dos intelectuais mais antigos e de boa parte da militância petista nos últimos anos é que essa fissura não é gerada pelas concessões, mas pelo projeto. O crescimento exponencial, o fortalecimento da indústria e a integração em unidade nacional são pautas que não são mais consensuais. O problema não é mais apenas o que se concede na aliança pela governabilidade, mas o que se quer como meta. A questão indígena, por exemplo, foi um divisor de águas para muitos nos últimos anos.
Não sei, contudo, se não é melhor assim. Que possamos compor contra governos fortemente reacionários e disputar quando se trata do projeto. Há algum tempo, nas eleições de 2014, sustentei a necessidade de “extinguir o Vaticano Vermelho”. Em vez da disputa pela “verdadeira esquerda”, o reconhecimento de que existem múltiplas esquerdas. Com isso, abre-se inclusive a possibilidade de se precaver contra o governismo excessivo, admitindo que o poder possa se alternar sem que isso seja encarado necessariamente como uma catástrofe total.
IHU On-Line - O que significa estar “acima dos muros”? Existe de fato uma esquerda que está “acima dos muros” ou ela não quer nem admitir e se comprometer com a defesa do impeachment, nem defender e se comprometer com a tese do golpe? Independentemente da posição que se afirme, houve um fato: golpe ou não golpe. Como ficar acima do muro nesse caso?
Moysés Pinto Neto - Essa expressão foi usada pela Eliane Brum para intitular o texto em que entrevistou Bruno Torturra, Pablo Ortellado, Bruno Cava e eu. Na minha timeline apareceram alguns representantes da polícia de esquerda para criticar Eliane, cujas credenciais hoje são praticamente indiscutíveis. Dei isso como exemplo do nível de policiamento que estamos vivendo.
No entanto, o título é mais uma provocação que qualquer coisa. O muro, no caso, era entre “petralhas e coxinhas”, ou seja, entre dois estereótipos que prendiam o Brasil em uma falsa polarização. O problema não é ser neutro ou “isentão” – como a cretina manobra retórica denominava aqueles que se recusavam a entrar na polarização -, mas se posicionar a partir de outra polarização. Se não me identifico com nenhum dos dois projetos, nem com o desenvolvimentismo nem com o neoliberalismo, por que teria que me colocar de algum dos lados? É o tipo de atitude policialesca a que me refiro. Imagine uma pequena cidade do interior do RS, como existem muitas, em que a polarização se dá entre PMDB e PP. De que lado eu estaria? Por que essa polarização me diria respeito? A maior parte dos que eu vi serem nomeados como “isentões” não eram simplesmente “sabonetes” (esses sim, mereceriam o rótulo), mas pessoas que se posicionavam a partir de outro eixo.
Sobre a posição em relação ao golpe, o problema não é reconhecer que houve golpe, mas o pacote de afirmações falsas que costuma acompanhar a palavra e a respectiva polarização. Volto à resposta da questão anterior.
IHU On-Line - No final de semana pós-impeachment, ocorreram várias manifestações no país, diferente do que havia ocorrido na semana de conclusão do processo de impeachment, em que as ruas estavam vazias. O retorno das manifestações no final de semana é um sintoma de uma certa ressaca pós-impeachment ou é um indicativo de que as manifestações tendem a se ampliar, mais uma vez, em todo o país nos próximos dois anos do governo Temer?
Moysés Pinto Neto - Realmente não faço ideia. Desejo que se ampliem e possibilitem novas eleições diretas. Se não, que ao menos mantenham sob pressão o governo Temer a ponto de inviabilizar o tipo de reformas estruturais que ele, sem legitimidade, supostamente pretenderia realizar (atendendo aos desejos predatórios do mercado).
A ampliação das manifestações também pode ser a saída da melancolia que mencionei. Uma vez que o desastroso governo Dilma II saiu do baralho, agora as manifestações não precisam mais se comprometer com o #voltaquerida. Particularmente, por respeito às instituições, era favorável ao retorno de Dilma para terminar seu mandato até 2018, embora do ponto de vista da legitimidade política novas eleições me parecessem uma saída melhor para a crise política. Mas compreendo os que não se moveram para lutar por isso e agora, sem o fantasma do retorno, mobilizam-se.
IHU On-Line - Que linha de esquerda deverá ter mais força na cena política a partir de agora e como as esquerdas tendem a se reposicionar no cenário político? Nesse sentido, que possibilidades e perspectivas vislumbra para a esquerda brasileira?
Moysés Pinto Neto - Do ponto de vista da Realpolitik, imagino que o PT tentará voltar em 2018 com a figura de Lula, contrastando os “Anos Dourados” da primeira década com a recessão que está aí e continuará. A sigla terá se transformado, com isso, na reprodução daquilo que buscava evitar no seu início: uma organização fundada em liderança carismática, nos moldes do populismo latino-americano. O golpe mostrou bem que a oposição brasileira não tem timing algum: em 2005, quando decidiu “deixar sangrar”, criaram um político imbatível (a ponto de em 2010 falar-se de “pós-Lula”, não “antiLula”); agora, quando o sangramento teria mais chance de produzir uma “morte” temporária do PT, destituíram e com isso reforçaram o discurso do golpismo como última válvula de defesa. Sempre com medo de Lula em 2018, claro.
Lula é a figura mais relevante, ainda, do cenário político institucional. A direita age sempre com vistas a neutralizar a possibilidade de Lula voltar, o PT guarda-o como soldado de reserva e a oposição de esquerda não faz o realinhamento exatamente por causa dessa possibilidade. A crise foi acentuada quando Lula foi nomeado não apenas por causa do vazamento criminoso dos áudios pelo juiz Moro, mas também porque Lula voltava à cena e poderia gerar mais quatro anos à direita longe do poder. Lula é o nó invisível que ata os diversos polos da crise política.
Enquanto isso, imagino que veremos um bom crescimento do PSOL no cenário municipal e o fracasso momentâneo da Rede. Apesar de ter apoiado Marina Silva nas eleições, acredito que uma sucessão de decisões equivocadas tem provocado a erosão da Rede como alternativa substancial ligada aos movimentos sociais e ao novo ativismo, como o próprio partido se define. Parece-me óbvio que a composição com Erundina em SP, por exemplo, era o caminho a seguir. Em POA, apoiam o governista Sebastião Melo, ligado ao PMDB e ao continuísmo mais ralo. Enfim, um partido que veio com uma boa proposta, mas está se enredando no centro político e nas más decisões estratégicas. Se Marina não tivesse, por exemplo, concorrido em 2014 (como poderia ter feito quando o registro da Rede foi rejeitado) e se posicionado como uma liderança social independente, teria acumulado tanto capital político que estaria ainda mais forte em 2018. Esse tipo de decisão está fazendo a Rede perder boa parte da credibilidade. Apesar disso, Marina segue um nome fortíssimo para 2018.
Finalmente, Raiz e PartidA ainda não decolaram, são incógnitas. O PDT não existe mais enquanto partido trabalhista, apesar da corajosa decisão quanto ao impeachment. O quadro segue com o Centrão fisiológico: PMDB e PSB, mais fortes, e PP, PSD, PROS, PTB e outros, mais fracos, mas com poder de barganha. E a direita, com um PSDB mais conservador (conversando com a classe média mais ideologizada contra o PT), o DEM e o Novo (a novidade liberal). O quadro partidário não reflete a sociedade e, como sabemos desde 2013, a distância entre sistema político e sociedade só aumenta.
IHU On-Line - Você afirmou, em artigo recente, que “precisamos de um discurso de esquerda que nos aproxime do centro”. O que isso significa em termos de discurso?
Moysés Pinto Neto - Significa dizer que, apesar de a capilaridade social de certas lutas de esquerda ter crescido ao longo dos últimos 14 anos, a esquerda nunca esteve tão distante de convencer o indivíduo que se orienta pelo senso comum das suas proposições. Pode-se dizer que a esquerda é exatamente a desconstrução do senso comum, mas não creio que essa seja uma boa resposta, embora uma parte dos movimentos sociais - em uma estratégia distinta do governo - tenham se aproximado dela. O resultado é uma bolha que só incha por dentro, mas é cada vez mais impermeável ao que está do lado de fora. Não creio, contudo, que seja difícil convencer a absoluta maioria dos indivíduos, mesmo que sejam indiferentes à ideologia política, que o trabalho ininterrupto 24 horas por dia, 7 dias por semana, ou o colapso ecológico gerado pelas mudanças climáticas, não são boas alternativas de futuro. Considerar esses problemas, quando descritos em linguagem direta, não requer a adesão a uma ampla gama de crenças conexas que formam uma identidade coletiva.
Aliás, boa parte da estratégia que o governo adotou desde o lulismo foi afirmar a ascensão social da nova classe trabalhadora (o “precariado”), com sua militância ridicularizando a velha classe média (por exemplo, com o bordão “classe média sofre”). Acontece que boa parte dessa classe ascendente é mais ou menos indiferente à política, quando não apenas conservadora, e precisa de razões pragmáticas (como eram os programas sociais) para apoiar o governo X ou Y.
Essa percepção não é apenas um economicismo (a velha "it's the economy, stupid"), mas a postulação de que as redes complexas de crenças que envolvem a adesão a uma ideia de "esquerda", com todos os seus símbolos e referências, demandam uma operação muito maior que se está disposto a embarcar, um engajamento bastante exigente. Quando decisões pontuais precisam carregar junto um “pacote completo” cada vez mais macroscópico, é sinal que talvez estejam compostas de uma crosta dogmática excessiva e provavelmente saltando sobre problemas específicos que perturbam essa imagem panorâmica.
Aliás, Jessé Souza, hoje um dos principais intelectuais a defender o governo deposto quase sem ressalvas, traçou com sua equipe de pesquisadores um esplêndido mapa da classe ascendente no seu livro “Os batalhadores brasileiros”. Nele, Jessé mostra que no desmerecimento do voto popular das eleições de 2010 haveria a afirmação do privilégio da “visão desinteressada” da política pela classe média, em contraste com o voto interessado, dito “comprado”, pela parcela mais pobre da população. Ao mesmo tempo, Jessé mostra que a concepção econômico-cultural dos batalhadores envolve uma visão estreita do investimento, dada a formação do habitus para a subsistência, colocando-os em desvantagem em relação à classe média, cujo capital cultural permite antever um projeto de futuro que a instrumentaliza melhor na competição “meritocrática”. Tomando isso a sério, podemos perceber por que o discurso dos altos gastos públicos, apesar de parecer muito abstrato, pôde penetrar nas classes populares.
Lula sempre usou a metáfora da economia da casa conservadora – gerando o vínculo empático com seu programa econômico ortodoxo cumulativo aos programas sociais – para explicar sua posição. Em contraste, os prejuízos sentidos pelo aumento do desemprego, pela retração do investimento e aumento da inflação que caracterizaram o início do segundo mandato de Dilma minaram – mesmo com os programas sociais (que já passavam por vários cortes, como no FIES) – a confiança desse segmento estrategicamente decisivo para o projeto petista, mas que valoriza a estabilidade econômica. Curiosamente, Jessé não vê em Junho de 2013, composto substancialmente pelos batalhadores (no MPL, entre os jovens estudantes beneficiados pelo ProUni e inclusive com os black blocs revoltados com a violência policial nas periferias), uma linha de ruptura desperdiçada com o quadro que empurrava essa classe tendencialmente para um realinhamento conservador. A tendência desse realinhamento, como a maioria da esquerda apontava, era baseada na “inclusão pelo consumo”, sem levar em consideração outras dimensões da cidadania para além da renda, e a influência de algumas correntes neopentencostais e seus líderes políticos que combinavam teologia da prosperidade e neoconservadorismo cultural, repetindo as “guerras culturais” norte-americanas, como costuma falar Pablo Ortellado.
Não vejo, no entanto, um enraizamento irremovível no conservadorismo desse segmento. Trata-se muito mais de um centro pragmático, com alguma inclinação conservadora, que uma fração reacionária, como alguns políticos que capturam seus votos – Feliciano, Malafaia, Cunha – representam. O reacionarismo é circunstancial, reativo à radicalização dos movimentos sociais e em grande parte ocupa o espaço vazio deixado pela ausência de um projeto de cidadania do PT, preenchido apenas com a apologia ao consumismo.
Por outro lado, na medida em que optou por tentar um alinhamento entre a tradicional e a nova classe trabalhadora, o PT fomentou um discurso agressivo contra a classe média. Que, curiosamente, era parte da aliança com a classe trabalhadora das fábricas na formação do partido. Obviamente, não há como não pensar nas manifestações da filósofa Marilena Chaui nas quais trata a classe média como “abominação ética e cognitiva”, para o desespero do colega de mesa Luiz Inácio Lula da Silva, que se orgulhava de ter promovido milhões de brasileiros a esse segmento. A classe média, se é composta por um segmento raivoso, reacionário e truculento – do tipo que apoia Jair Bolsonaro ou tem a Revista Veja como referencial de mundo –, também tem uma grande potência crítica, em especial naquela fração que viveu ou nos herdeiros das revoluções contraculturais dos anos 60 e 70.
Existe também outro ponto nevrálgico – além do vácuo político e do insucesso econômico – que é o abandono do tema da corrupção pela esquerda. É verdade que existe uma tradição udenista na direita brasileira, porém o problema não pode ser simplesmente tido como inexistente, como um falso problema. Existe um desvio colossal de recursos para bolsos privados ou financiamento de campanhas que poderiam resultar em políticas públicas. Depois da superação do choque do Mensalão, o PT acreditou poder pairar acima da questão, contando inclusive com a cooperação do PMDB e PP (velhos conhecedores da matéria). A lacuna custou caro, porque a falta de um discurso sólido sobre o tema gera a antipatia com esse eleitor pragmático de centro. Considere-se, inclusive, que os “batalhadores” têm um código ético muito rígido, com a honestidade como seu principal diferencial em relação a um segmento envolvido com atividades ilícitas. A corrupção aparece então como um fiel da balança que foi subestimado e não por acaso reapareceu em 2013 entre as principais pautas demandadas, ao lado da educação, saúde e transporte coletivo.
IHU On-Line - Que pautas essa esquerda próxima do centro deve assumir?
Moysés Pinto Neto - Existem duas maneiras de pensar isso. Uma é: para conversar com o centro, é necessário caminhar politicamente para o centro. Esse foi o caminho que o PT traçou desde que começou a planejar a disputa pelo poder federal como sua prioridade (em contraste com o municipalismo que alimentou experiências descentralizadas e invenções democráticas como Porto Alegre e Diadema) e consolidou a partir do lulismo. Em vez de provocar o antagonismo, buscar uma conciliação de classes. No lugar de propor pautas que envolvem transformações pujantes, como a descriminalização das drogas ou a reforma agrária, fazer o bolo crescer para todos. Esse “realismo”, no entanto, tem claros limites.
Em primeiro lugar, porque é exatamente o mesmo modelo que levou ao esgotamento a esquerda tradicional na Europa, como o PSOE, na Espanha, e o PS, na França. É o modelo Clinton/Blair, justamente hoje passando pela sua maior crise ao não conseguir se apresentar como alternativa consistente à falta de perspectivas diferentes da repetição do neoliberalismo.
Em segundo lugar, porque esse projeto – mesmo que relativamente bem-sucedido, como é o caso do lulismo com seus programas sociais – emperrou na “fase 2”, quando a conciliação chegara ao limite e era necessário arriscar novamente, repropor o pacto político em novas bases. Se observarmos os textos publicados entre 2010 e 2013 por intelectuais como Vladimir Safatle, Ermínia Maricato e Ruy Braga, percebemos que havia um diagnóstico consensual que aquele arranjo estava em vias de colapsar, que não teria mais energia para prosseguir. A “fase 2” veio: foi o desenvolvimentismo (como uma estranha combinação entre trabalhismo getulista, nacional-desenvolvimentismo da ditadura e capitalismo asiático), e com ele o projeto naufragou.
Portanto, o problema da conciliação de centro sempre será, quando bem-sucedido o projeto, que saberemos como o filme irá terminar. Já conhecemos essa história de esgotamento e não é por estarmos “atrasados”, olhando com essa visão, que teremos a vantagem de ir implementando o que os outros já fizeram enquanto eles pensam o futuro por nós.
A outra alternativa eu chamaria de tradutora. Seria a possibilidade não de caminhar para o centro, mas de livrar as pautas de transformação social da armadura identitária da esquerda e conseguir disseminá-las no centro. Creio que Rorty, há algum tempo, afirmava que precisávamos “simplificar nosso vocabulário” a fim de convencer as pessoas comuns que certas questões, como a diminuição do sofrimento e a erradicação da pobreza, não dependem de convicções ideológicas de fundo. Quando afirmo isso, normalmente o público da esquerda reclama. Considera que não podemos abandonar as construções da esquerda na altura do campeonato em que estamos, e que, portanto, precisamos reafirmar a identidade.
Penso, ao contrário, que podemos abandonar uma série de marcos referenciais vermelhos e partir para novas experiências e novos discursos. Com isso, seríamos capazes de traduzir para a maioria temas importantes que precisam escapar do “esquerdês”. Mostrar a inconsistência de posições muito conservadoras não é tão difícil. Não podemos nos dar o luxo de não argumentar. A esquerda precisa abandonar a posição de superioridade moral a priori e estar aberta ao falibilismo. É um esforço gigante de desidentificação que para mim também é hercúleo.
Vou dar um exemplo polêmico: a disputa entre estado e mercado. Para o centrista, a questão em si mesma é irrelevante. O que importa é o tipo de serviço, a qualidade e o custo. Quando a esquerda enuncia a privatização como catástrofe, está ideologizando uma questão que para o centrista é pragmática. O que funciona melhor? Acho que devemos abandonar essa atitude dogmática e pensar também dessa forma, mas tomando a sério as razões que levariam um centrista a concordar que é melhor uma coisa à outra, dependendo do caso concreto. Provavelmente a energia é uma matéria que convém manter sob o controle público. Por outro lado, não entendo qual é a ameaça de promover melhorias na infraestrutura com empresas privadas. O que o pragmático quer é uma estrutura que não seja burocracia pesada (Estado) nem exploração (mercado). O melhor equilíbrio deve ser pensado no caso concreto. Prefiro uma atitude mais falibilista, menos dogmática em torno dessas questões.
Aqui está o ponto central do nó que não foi desatado em 2013. Na composição híbrida que caracterizou aquele momento, uma saída de esquerda pelo centro parecia o melhor caminho. As ruas não demandavam um aprofundamento da ideologia vermelha: nenhum partido de extrema esquerda conseguiu capitalizar 2013. Para os que precisam de referências, poderíamos chamar de “reformas de base” o que viria, aproveitando a simbologia de Jango. Aproveitar a conjuntura favorável para enfrentar as oligarquias corruptas e investir pesado em saúde e educação teria sido uma alternativa a promover as demandas das ruas sem precisar pagar o preço pelo excessivo identitarismo em relação ao grande público. Recuperar a escola pública, por exemplo, seria uma medida passível de atravessar o espectro político.
Essa foi uma das razões pelas quais eu e muitos outros e outras optamos por Marina Silva como uma saída para o impasse, dado que Dilma e seu governo não conseguiam dialogar com as ruas. Não o PSTU ou algum partido de extrema esquerda a demandar a revolução comunista, nem a retomada das ações diretas por parte de alguns movimentos sociais que resolveram voltar a Mao-Tsé Tung, mas uma saída pragmática que poderia, sem vestir vermelho, promover grandes mudanças embaladas pela conjuntura favorável. Porém esse momento acabou – pelo menos por ora. Em vez disso, muitos militantes preferiram defender a Copa...
IHU On-Line - Muitos têm apostado que a atuação da esquerda se dará via movimentos sociais descentralizados. Também aposta nessa via? Qual será seu peso político?
Moysés Pinto Neto - Também acredito nisso. O futuro que não seja o mundo cada vez mais consumista e acelerado dependerá de como será viável fazer essa composição. É um tema bem longo e complexo.
IHU On-Line - Por que você considera que o liberalismo cresceu entre os jovens? A maioria da esquerda acusa o governo Dilma de ter sido neoliberal e, de outro, lado, as ruas também já viam o governo como insustentável. Nesse sentido, se o liberalismo cresceu entre os jovens, isso significa que os jovens apoiam a gestão Dilma?
Moysés Pinto Neto - A estratégia econômica do governo Dilma não foi neoliberal. Ela pretendeu, pela primeira vez na Nova República, desafiar o consenso ortodoxo. Mas com o quê? O retorno ao nacional-desenvolvimentismo da Ditadura Militar com o acréscimo dos programas sociais e uma inspiração na Coreia do Sul e China. Apesar disso, jamais o governo assumiu explicitamente essa posição. Dilma pretendia manter uma estratégia ambivalente, resguardando os prêmios do neoliberalismo do governo Lula (por exemplo, o grau de investimento) a partir da maquiagem dos gastos públicos. O projeto nunca foi afirmado de maneira frontal. Confiava na aliança com o empresariado industrial e os sindicatos, possibilitando o desenvolvimento nacional nos moldes pensados pelo PT. Os fatos nunca se realizaram dessa forma.
O episódio neoliberal do ajuste foi uma confissão desastrada dos erros do governo. No risco de perder o poder para Marina, o PT teve que dobrar a aposta à esquerda nas eleições de 2014, como disse Cocco recentemente. Dessa maneira, comprometeu-se eleitoralmente a manter o desenvolvimentismo funcionando a pleno vapor, ignorando os sinais do mercado financeiro e dos empresários. Nada disso foi realizado: houve uma confissão da mentira na sequência, com o ajuste liberal assumido tanto por Joaquim Levy quanto por Nelson Barbosa. Nenhum economista alinhado ao governo hoje nega a necessidade do ajuste e os erros das políticas de isenção fiscal. Se partirmos das premissas desenvolvimentistas, como é possível imaginar o pacto político necessário nesse cenário em que os oligopólios supercampeões estão respondendo a processos criminais e o resto do grande empresariado se nega a investir? É a própria imagem da impotência.
Por outro lado, o fracasso do desenvolvimentismo e seu estadocentrismo acabaram possibilitando a eclosão do neoliberalismo na juventude. Nesse vácuo, o discurso radical pró-mercado acabou ganhando espaço, mesmo que no resto do mundo esteja fortemente deslegitimado (mesmo onde a direita tem chances, é pela perigosa via do fascismo que se apresenta). Sabemos que os “batalhadores” são geralmente microempreendedores que, embalados pelos programas sociais, conseguiram alavancar sua trajetória. Mas veem-se como self-made men. Na classe média também floresceu o espírito empreendedor, buscando abrir um campo de negócios inspirado no mundo do Vale do Silício e na “gourmetização” de serviços antigamente tidos como menores na sociedade brasileira. Existe, além disso, um certo setor da esquerda identificado com autores do aceleracionismo – como Nick Land e Manuel DeLanda – que, buscando fugir da visão estadista do socialismo, tem pensado os “livre mercados” como fora do espaço capitalista, entendendo este como um conglomerado de monopólios e oligopólios que bloqueiam a atividade econômica livre e anárquica. A paixão pela burocracia da esquerda é criticada em prol de um discurso mais stirneriano e próximo dos libertarians norte-americanos.
O debate sobre o crescimento econômico, tratado como prioridade na segunda década, acabou abrindo espaço para ideias mais comprometidas com a liberdade de mercado e a quebra da herança trabalhista do varguismo no Brasil. Intelectuais alinhados com a ortodoxia hoje tem bem mais espaço na mídia que quaisquer outros. A leitura do Brasil como uma competição individual e corporativa por privilégios em todas as classes (rent-seeking, diz Marcos Mendes), seria o principal obstáculo para o fortalecimento de uma mentalidade empreendedora capaz de promover o crescimento econômico e combater a desigualdade, melhorando a confiança do mercado. Para isso, seria necessário retirar toda uma blindagem protetiva de interesses particulares que se somaria em camadas no Brasil, dificultando os negócios, assim como refocalizar as políticas sociais e instituições estatais de modo que não sirvam apenas para beneficiar grupos sociais (por exemplo, as universidades públicas voltadas para elite e classe média). O neoliberalismo, por ora, está em alta no cenário brasileiro como alternativa ao patrimonialismo.
IHU On-Line - O que vislumbra em termos de futuro e de possibilidades para o Brasil daqui para frente?
Moysés Pinto Neto - O desafio da esquerda segue o mesmo do século XX: sair do capitalismo e substituir por algo mais justo, que diminua a exploração e libere as capacidades virtuais do ser humano para se viver alegremente. O problema agora é ainda mais grave porque, ao lado do sofrimento da exploração humana e dos outros animais, temos o equilíbrio do ecossistema ameaçado. O niilismo da Modernidade parece ter nos conduzido a um alçapão sem fundo, no qual mergulhamos cada vez mais profundamente no universo do consumo e do trabalho e fazemos essa roda girar de modo mais e mais acelerado sem que isso resulte em maior felicidade para todos e, pior, destruindo tudo ao redor sem razão. Esse é o mundo do Antropoceno, onde só cabe um mundo – os outros serão colonizados ou destruídos.
O fato de a esquerda hoje não ter discurso algum que possa a tornar uma alternativa institucional ao neoliberalismo – e sente-se no mundo todo essa mesma crise – está ligado a essa falta de visão para o futuro, como dizem Srnicek e Williams. Não adianta ficar tentando recuperar o Welfare State e o fordismo – ficar esperando o Roosevelt brasileiro – porque o tempo passou e o mundo mudou. Não é nada materialista ignorar as condições reais do mundo para substituir por um wishful thinking com olhos para os “anos dourados” do século passado.
A esquerda brasileira tem o exemplo das filosofias afro e ameríndias como alternativas socioambientais que podem mudar nossa forma de viver com o mundo para além desse regime atual. A proximidade nos favorece. Encarar um projeto radical nesses termos, sem fechar-se em um vocabulário intangível, é o complexo desafio que nos apresenta. Nesse mundo caberiam muitos outros mundos.
Por ora, a situação brasileira lembra bastante o final do século XX na Europa. Diante de 1968 (como em 2013), muitos intelectuais assumiram uma posição policialesca, os partidos não estiveram à altura das demandas e a juventude acabou desiludida. Formou-se, então, o “novo espírito do capitalismo”, como Boltanski e Chiapello descrevem, no vácuo entre a utopia das contraculturas, o colapso do modelo fordista e a queda do muro do Berlim. Apesar disso, a esquerda socialista não conseguiu estrangular as narrativas sobre a potência de 68 com sua eterna chantagem. Ali estava o tipo de demanda radical por outras formas de vida que extrapolam o mundo oco do capitalismo. Por mais que a direita tenha se imposto nas décadas seguintes, essa tensão entre as duas esquerdas permaneceu. Os revolucionários de 68 não aceitam ser etiquetados como massa de manobra da direita pelos adesistas do socialismo real. Eles visualizam nos seus sonhos uma potência que, mesmo sem tomar o poder, transformou o mundo.
Hoje, há novos problemas e novas ameaças, além dos reacionários que gostariam de retornar ao tempo anterior a todas as mudanças que as contraculturas promoveram. Visualizo a cena brasileira mais ou menos dessa maneira: a abertura do possível, a desconstrução, é sempre uma chance para o melhor ou para o pior. Insistir em manter essa porta fechada é atar-se ao conservadorismo e morrer abraçado a ele. Manter a fidelidade ao acontecimento, como em 1968 e 2013, ao contrário, é constantemente lembrar que esta fresta está ao nosso alcance, que o outro mundo que desejamos não é transcendente, mas este em que vivemos – o único que existe.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma saída pragmática, sem vestir vermelho, poderá promover grandes mudanças para a crise brasileira. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU