06 Setembro 2016
“O que dizer de quem se nega a aplicar leis que amparam princípios básicos do Estado de Direito – como o princípio da presunção da inocência – orientado apenas pela vontade moral de lutar contra a corrupção” (a seu modo) e dirigindo a sua luta apenas, contra uma parte do espectro político? O que se pode dizer, no mínimo, é que o resultado das suas decisões voluntaristas, que lhes dão prestígio junto à turba fascista hipnotizada pelo oligopólio da mídia, já está se tornando violência contra pessoas “selecionadas”, que amanhã ou depois, pode se tornar violência coletiva, de parte à parte, transformando a democracia num imenso palco de simulações e ódios”, escreve Tarso Genro, ex-Governador do Estado do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21, 05-09-2016.
Eis o artigo.
“Ainda há juízes em Berlim”, é a frase, que teria sido proferida por um moleiro alemão, em resposta ao Imperador “Frederico O Grande”, que queria forçá-lo a vender o seu modesto moinho, para permitir a expansão do seu Palácio de Verão. Ela foi integrada na cultura política do ocidente como um tributo de respeito e fé numa Justiça composta por Juízes independentes e comprometidos com a Justiça e a Lei. O moleiro, naquele momento, ensinava ao déspota esclarecido que outros tempos ainda viriam.
O juiz Carlos Alberto Simões de Tomaz, da 17ª Vara da Justiça Federal de Belo Horizonte – segundo foi divulgado nas redes sociais – proferiu o seguinte despacho de soltura de um custodiado, ao entender que não havia justa causa para a manutenção da sua prisão, na data de 27 de agosto de 2016: “Determino a imediata soltura de José Cleuton de Oliveira, porque não há causa justa para a manutenção da sua prisão. Efetivamente, o custodiado está a ganhar o seu pão, enquanto que os bandidos deste país, que deveriam estar presos, estão soltos dando golpe na democracia”.
Recentemente, num colóquio de juristas promovido pelo Instituto Novos Paradigmas, em São Paulo, no qual se discutia a “judicialização da política”, ao lado do ex-ministro Gilson Dipp, dos professores Carlos Maria Cárcova, Deisy Ventura e Joaquim Falcão -todos juristas de primeira grandeza – debatemos temas que preocupam os que se dedicam a estudar o percurso da Constituição de 88 e a defender as reformas no Estado, necessárias para dar “efetividade” aos direito fundamentais. Num dado momento da sua intervenção, no referido painel, o professor Joaquim Falcão fez uma afirmação lapidar, para orientar o debate: “Hoje, no país, temos onze Supremos Tribunais Federais, não um”.
Referia o professor, Falcão, sem faltar com o devido respeito aos ministros do nosso STF, que as falas públicas de juízes do Supremo, por vezes adiantando posições jurídicas sobre temas que vão julgar, interpretando pela imprensa leis e fatos presumidamente delituosos (cujos processos irão para sua decisão), outras vezes manifestando preferências político-partidárias ou dando tratamento desigual a investigados e denunciados – aquelas falas públicas – ajudam a criar um clima de fragmentação jurídico-política, extremamente danoso para o Estado de Direito. O Supremo, agrego eu, já corre o risco de deixar de ser visto como a instância formalmente neutra, destinada a vocalizar a Constituição nas decisões sob sua jurisdição, para passar a ser visto como pura instância de luta política, em prejuízo da eficácia da própria Constituição.
Esta decisão do juiz Carlos Alberto mostra que temos juízes no Brasil. E não serão poucos. Ela revela a inconformidade de parte do Poder Judiciário, sobre a manipulação midiática – ainda em vigência – que deu respaldo à subversão da soberania popular, que bloqueou a governabilidade de um Governo eleito (porque era “ruim” segundo os seus adversários), substituindo-o por um outro pior, eleito indiretamente. O processo colocou no poder a aliança da parte mais suspeita do Governo Dilma, com a parte mais investigada e denunciada da Oposição. Acredito que este não era o propósito inicial do juiz Moro, da maioria do Supremo que permitiu as suas decisões de exceção, nem dos jovens promotores de Curitiba, que agora já pressionam para reformas na legislação processual penal, visando validar provas obtidas mediante ações ilegais. Nesta hipótese, a exceção não declarada tornar-se-ia normalidade totalitária e as intenções primárias destas pessoas se tornariam irrelevantes.
Que este novo Governo é produto, também, destas deformações do Poder Judiciário, não há mais nenhuma dúvida, embora reste saber se a crise política vai se tornar crise de Estado ou se ela será superada por alguma forma de relegitimação do poder político, já instabilizado. A situação atual, como se viu, já suscita reações dentro da comunidade dos juízes e do próprio Ministério Público, como aquela, contida no desabafo do juiz Carlos Alberto: ele protesta também contra as partes deste Poder, que ajudaram a eleição indireta de um Governo de Investigados e Denunciados. Governo que, pelas suas características, não só não tem interesse de investigar a corrupção, mas também quer travar as operações em andamento, para “pacificar” o país. Na verdade, os danos que foram infringidos, através da exceção não declarada – criticável a todos os títulos – deve é inspirar a supremacia da Lei, nas investigações e nos inquéritos, não o bloqueio ou a supressão dos mesmos.
A transgressão da esfera da política pela distorção na administração da Justiça pode, circunstancialmente, agradar um dos lados, nas contendas políticas de curto prazo, mas, no médio prazo, esta transgressão pode contaminar toda a ordem jurídica, tornando-se normalidade arbitrária. Nesta hipótese, os prolatores de decisões ilegais – os promotores da “exceção”, na qual se manipulam as categorias centrais do Direito democrático – podem ser atingidos pelos mesmos remédios ilegais que administram hoje: delações forçadas por prisões permanentes, cumprimentos de penas sem trânsito em julgado, vazamentos que vulneram o direito de defesa.
Gustav Radbruch, na sua clássica discussão sobre “Leis que não são direito e o Direito por cima das Leis”, lembra um processo penal, ocorrido em Nordhausen, na Turingia. Nele foi condenado à prisão perpétua o funcionário judicial Puttfarken, porque havia provocado – durante o reinado do nazismo – a execução de um homem de negócios chamado Göttig, por tê-lo denunciado como autor de uma inscrição subversiva contra Hitler, num banheiro, que assim estava redigida: “Hitler é um assassino do povo e o culpado pela guerra”. Puttfarken defendeu-se dizendo que fizera a denúncia orientado pelas suas convicções nacional-socialistas, dentro da “legalidade vigente” à época, mas o Tribunal de Turíngia entendeu que o réu, na verdade, sabia que estava entregando Göttig à sanha assassina dos juízes nazistas, não a um procedimento judicial minimamente de acordo com o que se pode compreender como Direito.
Aqui, trata-se de caso do reconhecimento da superioridade do Direito, como abstração civilizatória em defesa do que é humano e racional, sobre as leis sem direito, que podem existir em todos os ordenamentos, mas que se tornam predominantes nos regimes totalitários. Nestes, elas conformam uma ordem, uma disciplina social forçada, mecanismos técnicos de funcionamento racional do Estado, mas que não são Direito. E não podem reconhecidos como tal, mesmo que tenham tido vigência plena por um determinado período.
O que dizer, porém, das decisões de “exceção”, que estão ocorrendo em alguns Juizados ou Tribunais do país, pelas quais se vulneram – não garantias abstratas recolhidas de princípios – mas garantias consagradas no direito positivo, como o direito à ampla defesa? Deixa-se de lado, nestes casos, o direito positivo escrito na Constituição e nas leis, para substituí-lo pelo comando “moral”, subjetivo, de “limpeza” contra a corrupção, que vai só até o ponto de atingir os já escolhidos pela grande imprensa, previamente como criminosos. Os demais, mesmo que as evidências da sua delinquência sejam muitas, tem a missão de fazer o “ajuste”, por isso não devem ser tocados.
Depois do final da 2ª Guerra (1946), Radbruch que amarrara a sua obra “Filosofia do Direito” (1932) na doutrina da superioridade do bom Direito em abstrato, sobre o direito positivo (quando se compreendia o mesmo como injusto) passa a defender que só é possível negar a lei positiva, no Estado de Direito Democrático, quando “a (sua) oposição à justiça” alcança um grau intolerável, evidenciando que a lei – enquanto direito defeituoso- deve a ceder perante ela.
O que dizer, porém, de quem se nega a aplicar leis que amparam princípios básicos do Estado de Direito – como o princípio da presunção da inocência – orientado apenas pela vontade moral de lutar contra a corrupção” (a seu modo) e dirigindo a sua luta apenas, contra uma parte do espectro político?
O que se pode dizer, no mínimo, é que o resultado das suas decisões voluntaristas, que lhes dão prestígio junto à turba fascista hipnotizada pelo oligopólio da mídia, já está se tornando violência contra pessoas “selecionadas”, que amanhã ou depois, pode se tornar violência coletiva, de parte à parte, transformando a democracia num imenso palco de simulações e ódios.
Na Itália, o resultado de tudo isso não foi o fim da corrupção, mas Berlusconi. Aqui também não será o fim da corrupção, mas talvez a mudança dos seus atores coadjuvantes. A Confederação de Investigados e Denunciados, tendo à testa o Presidente da República, vai querer cavar trincheiras muitos fortes para permanecer no Estado por muito tempo e o seu passaporte é o ajuste, a venda do pré-sal e o esmagamento dos direitos sociais, para a tranquilidade dos nossos credores da dívida pública. Exigir plebiscito ou eleições – recuperar a soberania popular – são os antídotos verdadeiros contra a doença da crise, já tornada ódio de classe, que se dissemina no cotidiano e pode transladar-se para a História. Ainda bem que ainda há juízes fora de Berlim.
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A execução de Göttig e o alerta: existem juízes fora de Berlim! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU