06 Setembro 2016
"O lulismo parece esgotado, apesar de sua enorme importância histórica. Um novo projeto exige relançar reformas estruturais e fugir do eleitoralismo", escreve Antonio Martins, jornalista, em artigo publicado por Outras Palavras, 04-09-2016.
Segundo ele, "Paradoxalmente, a chegada de Lula ao governo, cinco anos depois, paralisaria este esforço de criação programática, quando deveria tê-lo tornado mais profundo e intenso que nunca. Em grande medida, porque, a esta primeira insuficiência – a resistência a lutar pelas reformas estruturais – sobrepôs-se uma outra, gêmea. Bem acomodados na máquina do Estado, o PT e o lulismo seriam tragados por ela. Esqueceriam tanto suas origens rebeldes quanto as experiências extremamente originais que lançaram quando, tendo conquistado algumas prefeituras e governos de Estado, ainda mantinham o vínculo principal com as mobilizações sociais. O Orçamento Participativo – sepultado a partir de 2003 – é o caso mais típico"
Eis o artigo.
À primeira vista, pode parecer inapropriado e cruel examinar as insuficiências da lulismo no momento em que ele é arrancado do governo por um conluio das elites, e em que o próprio Lula está ameaçado de prisão arbitrária e injusta. Mas a impressão é falsa. Primeiro, porque a crítica é a melhor homenagem que se presta aos processos de transformação aos quais nos sentimos ligados, intelectual ou afetivamente. Enxergar seus erros, superá-los, é permitir que estes processos não se percam no tempo, mas passem o bastão e re-existam, no bojo do novo que precisa surgir – e também receberá, um dia, a merecida crítica.
Segundo, porque uma visão dialética do golpe implica ir além da denúncia das elites. Elas sempre buscarão derrubar governos que ameaçam sua dominação. Cabe investigar por que foram capazes; que debilidades exploraram; como evitar que tais elas se repitam.
O objetivo deste breve artigo não é, evidentemente, fazer um balanço do lulismo – mas jogar luz sobre duas de suas características: a) a recusa às reformas estruturais, a tentativa permanente de abrir espaço e conquistar vantagens para as massas populares no interior do status quo; e b) a preferência pelos acordos institucionais, pelos arranjos da velha política, diante das novas formas de mobilização horizontal e pela base, cada vez mais presentes e efetivas. Colocar o foco sobre estas duas opções não é fortuito. É a partir da crítica a elas que podem surgir, de imediato, a compreensão sobre por que nos tornamos tão vulneráveis e os caminhos para enfrentar com eficácia as ameaças impĺícitas no golpe; no médio e longo prazo, visões sobre um novo projeto de superação do capitalismo.
A recusa às reformas estruturais – primeiro tópico – não é uma característica exclusiva do lulismo. Relaciona-se a uma característica peculiar da ordem neoliberal: ela exige submissão completa dos governos a seu programa; mas esta essência totalitária é disfarçada por uma aparente rotatividade no poder. Em países como França, Itália, Espanha e Portugal, a agenda de ataque aos direitos sociais foi protagonizada por partidos “socialistas”. Em outros, como Estados Unidos e Inglaterra, os conservadores (Ronald Reagan e Margareth Thatcher) iniciaram as contra-reformas; mas elas foram alegremente continuadas por governantes supostamente à esquerda (Bill Clinton e Tony Blair). No plano geopolítico, a diluição das diferenças é ainda mais perfeita. Na virada do século, Blair foi o grande aliado de George W. Bush, na tentativa de impor uma ordem imperial que desconhecia a própria ONU. Hoje, o “socialista” francês François Hollande chega às vezes a ser mais agressivo que Barack Obama, nos esforços de destruição de Estados nacionais, em nome da “guerra ao terror”.
Neste cenário de devastação – tantas vezes esquecido nas análises feitas no Brasil – o lulismo manteve, até, alguma ousadia. Embora tímidas, as políticas de redistribuição de renda (expressas pelo Bolsa Família, pela ampliação dos direitos previdenciários e pelo aumento real do salário-mínimo) foram praticadas na contramão de um mundo que ampliava aceleradamente as desigualdades. A política externa voltada para a América do Sul e os países emergentes rompeu um cacoete de submissão aos Estados Unidos e favoreceu a criação dos BRICS, talvez a novidade geopolítica mais importante das últimas décadas.
Mas estas audácias, tão sintônicas com a alma inquieta e criativa de Lula, jamais foram acompanhadas por reformas que tornassem duradouras as mudanças. O poder das elites manteve-se intacto: no controle exercido pelos bancos sobre as finanças públicas; no sistema político caquético e estruturalmente corrupto; nas comunicações de massa dominadas por um oligopólio arcaico; nos Orçamentos da União, Estados e Municípios colonizados pelas grandes empreiteiras; na acomodação à letargia de um empresariado decadente e na ausência de um esforço de reindustrialização planejada; num modelo agrícola sempre baseado na devastação social e ambiental do agronegócio.
Estas ausências emparedaram e terminaram condenando o lulismo. Em 2013, quando rompeu-se o antigo consenso e uma parcela expressiva da opinião pública mobilizou-se por serviços públicos, ele não teve forças e ou vontade para ampliar os investimentos sociais e em infraestrutura urbana. Em 2014, quando a crise internacional agravou-se, ele viu-se refém de uma elite empresarial que embolsava as isenções fiscais sem nada devolver. Em 2015, quando o cerco se fechou e surgiu o pretexto do impeachment, ele tinha as mãos amarradas tanto por uma mídia em pressão total para derrubá-lo quanto pelo desconcerto de sua antiga base de apoio – que se viu traída pelo “ajuste fiscal” de Dilma.
Compreender esta insuficiência não será necessário apenas no futuro, quando a força do golpe se esgotar e surgirem novas oportunidades para um governo de esquerda. É preciso recuperar, desde agora, o exercício esquecido de refletir sobre as estruturas do país e sobre os caminhos para transformá-las. Uma nova cultura de esquerda precisa retomar o esforço e prazer de projetar futuros comuns – tão esquecido, nos últimos treze anos, em nome do pragmatismo, do cálculo eleitoral e dos acertos de cúpula.
É hora de voltar a fazer perguntas incomuns. Como construir uma Educação pública excelente e pós-industrial – capaz de qualificar a potência típica dos brasileiros inclusive para a produção imaterial? Que projeto permitirá enfrentar a segregação urbana, assegurando nas periferias infraestrutura de esgotos, arruamento, urbanização e mobilidade rápida? Como reestruturar o Sistema Único de Saúde (SUS), valorizando a conquista da universalidade e os grandes avanços alcançados na prevenção, mas potencializando o sistema hospitalar (ao invés de continuar subsidiando os planos de saúde privados)? Quais os caminhos para transformar nossa matriz energética, recuperando o longo atraso na utilização das fontes limpas e estimulando a autogeração? Como preservar a Amazônia, permitindo aos 30 milhões de brasileiros que lá vivem formas de convívio não-predatório com a floresta e os rios? Que sistema de tributos ajudará a redistribuir riquezas, eliminar privilégios e financiar a construção de um país para todos? Etc etc etc.
Tantas questões, tão desafiadoras da ordem quanto fascinantes. A perda da capacidade de formulá-las foi um dos retrocessos trágicos relacionados à institucionalização da esquerda. Não fora assim, nas duas décadas e meia que se estenderam entre 1977 (quando recomeçaram as manifestações de rua contra a ditadura) e 2002 (quando Lula foi pela primeira vez eleito). O exame profundo do projeto dos militares, que caracterizou a imprensa alternativa e alguns centros de investigação teórica, mesmo no período mais sombrio da repressão, desembocou, em seguida, num labor intenso de formulação de alternativas, por parte de múltiplos movimentos sociais.
O caso do SUS é emblemático, inclusive por sua repercussão internacional. As origens de sua concepção remontam ao período ditadura – o I Seminário sobre Política Nacional de Saúde, promovido em 1979 pelo governo do general João Baptista Figueiredo, teve porém amplo predomínio das teses de reforma formuladas pelo movimento sanitarista. Os princípios que o embasam foram formulados em detalhes na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, no governo Sarney. As bases de seu financiamento e os recursos necessários para mantê-lo foram definidos na Constituição de 1988, sob forte pressão dos movimentos sociais. E é de 1990 – em pleno governo Collor de Mello – a lei que finalmente o instituiu. O breve histórico revela como não há um paralelismo automático entre a presença da esquerda no poder e conquistas sociais importantes. Em certas condições, a depender da consciência e mobilização populares, elas podem ser alcançadas mesmo sob governos conservadores.
Mas o esforço de formulação de um novo projeto para o Brasil cresceria, em muito, com a perspectiva da eleição de Lula, em 1989. Sua candidatura foi simbiótica com os movimentos sociais. Atraiu seu apoio generalizado. Em contrapartida, formulou, como proposta de governo, o Programa dos Treze Pontos – uma espécie de síntese das alternativas construídas nas lutas populares. Nos primeiros anos do neoliberalismo, abertos com a eleição de Collor, seriam uma referência de país alternativo. Este trabalho serviu, por vários anos, como referência de projeto alternativo.
Embora com menor repercussão, a construção de um conjunto coerente de saídas à esquerda seria retomada uma década depois, em pleno período neoliberal. Em 1997, cerca de trezentos delegados, vinculados a múltiplos movimentos sociais, reuniram-se em Itaici (SP) numa autodenominada Consulta Popular, que faria um diagnóstico das mudanças operadas no país pelos governos Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – assim como um novo esboço de projeto alternativo. Ele assumiria, um ano depois, a forma de um livro, A Opção Brasileira, que mantém certa atualidade.
Paradoxalmente, a chegada de Lula ao governo, cinco anos depois, paralisaria este esforço de criação programática, quando deveria tê-lo tornado mais profundo e intenso que nunca. Em grande medida, porque, a esta primeira insuficiência – a resistência a lutar pelas reformas estruturais – sobrepôs-se uma outra, gêmea. Bem acomodados na máquina do Estado, o PT e o lulismo seriam tragados por ela. Esqueceriam tanto suas origens rebeldes quanto as experiências extremamente originais que lançaram quando, tendo conquistado algumas prefeituras e governos de Estado, ainda mantinham o vínculo principal com as mobilizações sociais. O Orçamento Participativo – sepultado a partir de 2003 – é o caso mais típico.
As insuficiências gêmeas retroalimentam-se reciprocamente. Como pensar reformas estruturais, se elas exigiriam desmontar a estrutura de poder em que se está, afinal, instalado? Como enfrentar os obstáculos impostos por um sistema político ultraconservador, quando se abriu mão de sacudir as estruturas arcaicas do país, a quem o Legislativo e o Judiciário servem?
A segunda insuficiência será examinada em detalhes, no próximo texto. Vale notar, por enquanto uma contradição desconcertante. No Brasil, à medida em que se tornou cada vez mais pragmático, o o lulismo inviabilizou-se como alternativa de governo. É como se a elite tivesse conseguido, primeiro, tirar-lhe as garras, prometendo-lhe aceitação; e, em seguida, vendo-o indefeso, decidisse sacrificá-lo. Em diversos países do mundo – Estados Unidos e Inglaterra, para ficar em dois exemplos – os velhos partidos de centro-esquerda têm sido reanimados por políticos (Bernie Sanders e Jeremy Corbyn) que os tiram da letargia ao propor que enfrentem, resolutamente, a ordem social injusta.
Que terá mudado nas velhas lógicas que premiavam a moderação e o igualamento das políticas? O que esta mudança pode inspirar no Brasil?
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O Brasil sob o golpe: seis hipóteses polêmicas (II) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU