05 Mai 2016
“Ou o lulismo se reinventa completamente, ou dará lugar a alguma força política nova. À direita ou à esquerda. Obviamente, a direita está muito mais perto de substituir o lulismo do que a esquerda não petista. A questão que aparece é: quem se habilitará a ultrapassar o lulismo pela esquerda? É visível a dificuldade de renovação das lideranças no caso do PT, como se vê pela aposta na volta de Lula em 2018. A escolha de Dilma para sucedê-lo em 2010 mostrou esse mesmo problema: nada de colocar no poder uma nova geração de petistas com histórico de participação nas lutas internas do partido; ao contrário, uma decisão de cima para baixo deu a vaga de candidata do PT a uma ministra que era do PDT”, escreve Henrique Mogadouro da Cunha, editor do site ConjunturaEstrutura, e publicado por Outras Palavras, 04-05-2016.
Segundo ele, “não serão os quadros políticos e intelectuais da esquerda tradicional que protagonizarão a sucessão de Lula pela esquerda”.
Eis o artigo.
Uma crítica justa e responsável aos governos do PT precisa reconhecer que o maior erro do partido no governo foi não enfrentar os privilégios da classe dominante e, pior, por ter tentado instrumentalizar tais privilégios a serviço da construção de uma hegemonia sempre precária, ou mesmo falsa, porque a aliança (ou seria melhor dizer: a tolerância?) das grandes empresas e dos partidos de direita com o PT só dura enquanto esses setores não temem perder nada. Depois que acabou o ganha-ganha dos anos de crescimento econômico, que permitiram uma expansão constante das alianças políticas e dos investimentos do Estado, os mesmos aliados cobram que os cortes recaiam sobre as classes populares. Espremido entre a sua base social e sua “governabilidade” condicional, o PT não consegue apontar nenhuma direção.
Como escreveu Marcos Nobre, em seu livro sobre o pemedebismo, o governo Dilma é desde o início um governo de “ajuste para baixo”, em comparação com a expansão do arco de alianças que caracterizou os governos Lula. O “corte na carne” teria de acontecer, e seria negociado por uma presidenta bem menos afeita à conciliação do que o antecessor. Obviamente, os setores “aliados” não aceitam perder um único centímetro das generosas fatias do bolo do Estado que já possuem e que vinham crescendo. Pressionam por uma guinada ainda mais à direita, ou exigem a queda do governo, enquanto os movimentos populares que já salvaram a pele do PT nas últimas eleições continuam a exigir uma guinada à esquerda. É o fim do pacto de classes do lulismo, como descreveu Gilberto Maringoni.
A revelação de que o conflito entre Dilma e Eduardo Cunha teria começado com a troca da diretoria de Furnas é bem ilustrativa. Quando o governo se dispôs a enfrentar o interesse de algum de seus “aliados”, o fez sem mobilização social alguma, por meio de mecanismos burocráticos do Estado como trocar a diretoria de uma estatal. Igualmente, na eleição para presidência da Câmara, o PT lançou candidatura própria sem que houvesse qualquer mobilização da sua base social para eleger seu candidato em um movimento de resistência à agenda conservadora. Em suma, o lulismo nunca convocou sua base social para questionar os privilégios das elites. Fazer enfrentamento político de fato com os setores conservadores do país não foi o modo de operar do PT desde que chegou ao governo. Só era possível agradar a todos enquanto a economia ia bem e a arrecadação se expandia.
Apesar de não fazer enfrentamentos necessários com o conservadorismo e omitir-se diante de debates importantes, parecendo estar realmente desinteressado ou descrente de seu papel como partido de massas, houve um tempo em que o governo do PT conseguia distribuir o bolo para cima e para baixo simultaneamente. Isso apesar de todos os retrocessos em outros campos. Não há dúvida sobre quem ficava (e ainda fica) com a maior fatia. Mas um erro grave que a esquerda não petista vem cometendo é não entender o significado das “migalhas” que sobraram para os mais pobres. Quem pode afirmar se são ou não migalhas? A esquerda programática e ideológica, que ainda é dirigida majoritariamente por pessoas cheias de privilégios?
Fugir de enfrentamentos com o grande capital e o conservadorismo como um todo é lamentável, mas não muda a importância das “pequenas revoluções” na vida concreta de muitas pessoas. Não fui eu quem se beneficiou dos programas sociais e outras mudanças, que alguns vêem como migalhas. Posso criticar o fato de que esses benefícios não tiraram privilégios de ninguém, mas não sou eu quem pode dizer se essas transformações são migalhas ou não. As pessoas diretamente envolvidas sabem qual é a importância dessas transformações, e conhecem melhor que ninguém as contradições e as limitações desse projeto. Aqui, posso no máximo remeter aos inúmeros relatos de indivíduos que foram os primeiros de suas famílias a cursar o ensino superior, às histórias de mulheres que pela primeira vez tiveram renda própria e independente de seus maridos por meio do Bolsa Família, enfim, a relatos impressionantes de melhoria das condições de vida de boa parte da população. Isso não anula outros retrocessos, nem vice-versa. Qualquer tentativa de somar e subtrair avanços para se chegar a um “saldo” positivo ou negativo fracassa. O motivo é simples: os imensos retrocessos (por exemplo nos direitos dos povos indígenas) e os incontáveis avanços não são apenas de grandezas diferentes: são incomensuráveis. O saldo é a contradição.
Promover ascensão social e ao mesmo tempo proporcionar o maior lucro da história para os banqueiros não será mais possível. Ou o lulismo se reinventa completamente, ou dará lugar a alguma força política nova. À direita ou à esquerda. Obviamente, a direita está muito mais perto de substituir o lulismo do que a esquerda não petista. A questão que aparece é: quem se habilitará a ultrapassar o lulismo pela esquerda? É visível a dificuldade de renovação das lideranças no caso do PT, como se vê pela aposta na volta de Lula em 2018. A escolha de Dilma para sucedê-lo em 2010 mostrou esse mesmo problema: nada de colocar no poder uma nova geração de petistas com histórico de participação nas lutas internas do partido; ao contrário, uma decisão de cima para baixo deu a vaga de candidata do PT a uma ministra que era do PDT.
Mas outros partidos políticos de esquerda não chegam perto de construir lideranças com a mesma capacidade de articulação política de Lula. A pergunta, portanto, não é qual partido vai se habilitar a substituí-lo, mas sim quem serão os representantes dessa renovação no campo da esquerda. Em termos de história de vida, classe social, raça e gênero, quem nós podemos imaginar que serão as futuras lideranças da esquerda brasileira? A resposta me parece vir de um texto de Stephanie Ribeiro, em que ela critica uma esquerda que hesita em se posicionar contra a derrubada do atual governo. Não se trata de dizer que só é de esquerda quem é petista. Trata-se de reconhecer que não sou eu, homem branco de classe média, quem mais vai sofrer com o golpe. Também não serão os velhos quadros políticos do PT ou seus aliados. Seria ótimo poder dizer “bem feito Lula, bem feito Dilma, estão colhendo o que plantaram”. Mas quem mais vai perder com o golpe é quem começou a conquistar alguma coisa nesses últimos governos – pessoas para quem, apesar desses avanços, o “Estado Democrático de Direito” continua no papel.
Há uma leitura, bem representada por André Singer, que afirma que a ascensão social e a conquista de direitos leva a expectativas de mais ascensão e mais direitos. Nessa interpretação, a crescente mobilização de diversos setores da sociedade brasileira desde mais ou menos 2010, pelas mais diversas reivindicações, estaria relacionada aos ganhos do período anterior. Numa versão bastante mecânica, podemos resumir dizendo que conquistas, ainda que sem mobilização e sem enfrentamento político, levam a novas expectativas, e expectativas levam a mobilizações. Singer questiona, em seu livro sobre o lulismo, se o processo de ascensão social dos governos petistas poderia elevar a luta de classes brasileira a um novo patamar. Parece que sim. Vivemos um outro patamar, do ponto de vista do acirramento da luta de classes.
Portanto, voltando à pergunta sobre quem vai liderar ou hegemonizar a esquerda de agora em diante, seja por dentro ou por fora do PT, podemos imaginar que serão justamente as pessoas que conquistaram pela primeira vez algum espaço na sociedade brasileira. Pró-unistas, cotistas, beneficiárias do Bolsa Família e de outros programas, empregadas domésticas que passaram a ter direitos trabalhistas de fato, pessoas que percebem a valorização (e sentirão o arrocho) do salário mínimo no próprio bolso.
É evidente que entre esses setores pode haver gente de esquerda ou de direita, boas lideranças ou oportunistas. Não se trata de dizer que qualquer pessoa que tem origem na classe trabalhadora tenha uma vocação ontológica para liderar a esquerda. Mas dificilmente líderes com outras origens terão suficiente conhecimento de causa para articular as expectativas e as necessidades da nova classe trabalhadora, produzir um discurso e um programa político que dêem conta de mobilizar amplos setores da sociedade brasileira em direção à esquerda, para além dos desafios que o modelo lulista era capaz de enfrentar. Pessoas para quem o estado democrático de direito nunca existiu de fato, essas sim, sabem quais foram as contradições mais profundas dos governos do PT e sabem como ninguém o que falta ser feito.
Isso pode explicar a dificuldade dos setores da esquerda não petista em atingir o “povão”. Pode explicar por que tantas entidades do movimento negro e tantos coletivos da periferia se manifestaram de forma contundente contra o golpe, pode explicar a massiva presença de jovens da periferia na manifestação de 18 de março. Se existe consciência de classe, essa pode ser uma boa prova. Partidos como o PSOL e o PSTU, apesar de suas críticas bem colocadas ao PT, não chegam perto da capacidade de articulação lulista porque parecem continuar subestimando as conquistas da população pobre nos últimos governos.
Como já foi dito, não há dúvida sobre quem mais ganhou nesses governos: foram os ricos. Quem mais ganhou com o Pró-Uni foram os empresários da educação, quem mais ganhou com o acesso ao crédito foram as redes de varejo e a indústria, quem mais ganhou com a geração de empregos foram os empregadores, quem mais ganha com o “desenvolvimento” via PAC e megaeventos são as empreiteiras.
Mas uma esquerda que se opõe ao Pró-Uni, por exemplo, não conquistará a atual base eleitoral do lulismo. E não é mera dificuldade de se comunicar, como se a única habilidade de Lula fosse usar metáforas populares e falar uma língua que as pessoas entendem.
Por enquanto, as futuras lideranças da esquerda parecem orbitar em torno do PT. O que virá depois? Não sabemos até onde o golpe conseguirá chegar. A esquerda precisa seguir existindo, mesmo que o golpe seja plenamente consumado. Não sabemos se será por dentro ou por fora do PT, ou mesmo por fora de partidos institucionalizados, mas a liderança de Lula precisará ser superada por uma força política que dê conta não apenas de “atrair apoiadores” entre os setores populares e “dar respostas” aos seus anseios, mas de se abrir para que tais setores sejam de fato protagonistas de um novo movimento político. Mais do que as metáforas e o jeito espontâneo de falar, é a conexão de Lula com seu passado como migrante, operário e sindicalista que lhe dá tanta propriedade para dialogar com a população. Lula foi filho de um dos ciclos de modernização conservadora que o país viveu no século XX. No poder, ele proporcionou mais um desses ciclos, que deixa também milhões de “filhos”. Não serão os quadros políticos e intelectuais da esquerda tradicional que protagonizarão a sucessão de Lula pela esquerda.
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Haverá sucessão do lulismo pela esquerda? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU