09 Setembro 2016
Nascido em 1939 na Áustria, Dom Erwin Kräutler é formado em filosofia e teologia, ganhador de 22 prêmios, inclusive o Nobel Alternativo, e bispo emérito da prelazia do Xingu. Foi presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) por 17 anos e é conhecido e admirado por sua luta contra a construção de Belo Monte e pela defesa dos direitos de indígenas, ribeirinhos, dos mais pobres e dos mais frágeis e dos extrativistas da Amazônia.
A entrevista é de Verônica Nunes de Holanda, publicada por Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 05-09-2016.
Eis a entrevista.
O senhor recebeu diversos prêmios durante toda a sua vida, inclusive o Prêmio Nobel Alternativo, por sua atuação em defesa das comunidades tradicionais, dos trabalhadores rurais etc. Como o senhor se sente com relação a essas premiações?
Quanto aos prêmios, eu os recebi sempre em nome de tantas pessoas com quem eu trabalhei ou que trabalharam comigo, porque nunca estive só, nunca me senti sozinho. Também nunca tomei iniciativas sozinho. Sempre me vi acompanhado de outras pessoas que talvez não se encontrem em alto relevo. Como bispo você automaticamente está um pouco mais na mídia. Então eu recebi esses prêmios nesse sentido, agradecendo em nome de tantas pessoas, mulheres e homens, do Cimi e de outras entidades com que eu trabalhei.
De outro lado, o senhor recebeu diversas ameaças e sofreu um atentado contra sua vida. Mas nunca se intimidou. O medo interferiu muito em sua jornada?
Quanto as ameaças, nunca as procurei. Quando você toma posição em favor de alguma causa, por exemplo, se coloca em favor dos povos indígenas, automaticamente está contrariando interesses de outros segmentos, como os madeireiros, os latifundiários, mineradoras, que procuram entrar nas áreas indígenas e não ficam nada satisfeitos quando alguém se opõe e defende o que está escrito na própria Constituição Federal. Então não é que a gente provoca, é que na hora em que você se coloca a favor de uma determinada causa você é contra os interesses e as vezes a ganância dos que a todo custo querem explorar as riquezas naturais do solo e subsolo de territórios indígenas.
O medo, claro. Todos defendemos nossa vida, e quando se é ameaçado e corre risco, não é uma coisa agradável de se lidar, mas eu praticamente sempre estive convicto de que esse caminho é meu, que tenho que continuar nele apesar de todas as ameaças e intimidações que recebi.
Como a sua fé o ajudou a enfrentar esses desafios?
Tenho fé em Deus e fé também nas pessoas que lutam por uma causa nobre, e assim nunca me afastei, nunca deixei me intimidar. Passei alguns momentos de crise, logo quando eu recebi a proteção da parte da Polícia Militar por decisão do governo, eu me senti um pouco acuado. Lembro-me muito bem de que estava com medo de entrar numa depressão ou qualquer coisa assim, porque de repente você não pode mais andar sozinho, está sempre acompanhado por duas pessoas, tudo o que você faz, onde você se encontra, ou para onde você vai, sempre há dois soldados juntos. Pedi que não andassem fardados, mas mesmo assim não se tem mais a liberdade de estar só. A liberdade exterior está cerceada, mas a interior ninguém me pode tirar. Continuei falando, dizendo aquilo que penso e defendendo as causas que acho necessário defender.
O MPF ingressou com mais uma ação contra a hidrelétrica de Belo Monte, por risco de colapso sanitário. Qual é a situação hoje do município de Altamira, no Pará?
Para dizer a verdade, a situação é caótica. Havia 40 condicionantes listadas pelo próprio Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e 23 condicionantes que eram listadas pela própria Fundação Nacional do Índio (Funai), 63 ao todo. Essas condicionantes deveriam ser cumpridas antes da instalação do canteiro de obras, e não foram cumpridas.
Quando se começa uma construção deste porte como Belo Monte, as consequências para o meio ambiente e para uma cidade ou várias cidades ou municípios são terríveis. As condicionantes seriam saneamento básico, educação, saúde, habitação, transporte, segurança pública, a demarcação de áreas indígenas ainda não demarcadas, um monte de coisa, e tudo isso não foi cumprido, então hoje estamos numa situação em que, se você vai lá em Altamira, você fica estarrecida diante dos fatos que aconteceram.
(Foto: CIMI)
Como foi a transferência das famílias para suas novas casas?
Primeiro, uma grande parte da população foi transferida compulsoriamente. Não vou dizer que essas famílias foram convidadas a se transferir para outro local, porque elas foram transferidas porque não havia outro jeito. Se fez uma série de casas, não sei quantas, casinhas em que cabe uma família talvez com quatro pessoas, e o pessoal que estava acostumado talvez com um ambiente mais amplo, mais largo, nessa situação. O primeiro impacto foi esse.
O segundo é que foram tiradas do seu meio, do seu convívio com outras pessoas. A gente não está vivendo só numa casa, está vivendo também na vizinhança. Não vivemos sós, nossa casa não é isolada. Temos vizinhos, temos parentes, compadres, e de repente você está sendo arrancado desse convívio e colocado no meio de gente que você não conhece. Esse é outro impacto que é terrível no meu modo de ver.
Qual a atual condição da população de Altamira?
A criminalidade aumentou de uma maneira assustadora. Nós temos, por cada fim de semana, dois, três, as vezes até mais homicídios, e chega ao ponto de a gente quase se conformar. Tem gente que, segunda-feira, pergunta quantos morreram nesse fim de semana, “apenas um”, já pensou? É desse jeito. “Ainda bem, só um, porque tinham outros fins de semana em que eram três, quatro”. E faz tempo que está desse jeito. Não é que a segurança pública não se esforce, mas que não tem condições.
Outra coisa, principalmente em relação à juventude: as drogas, nunca vi coisa igual. Há poucos dias, havia uma senhora comigo, professora que era diretora de uma escola. Ela não sabe mais o que fazer. Na escola, crianças ou adolescentes, doze, treze anos, as drogas correm soltas lá dentro.
E todas as consequências da prostituição infantil, de menores, é terrível, todos esses antros de prostituição, de perdição, terrível, terrível mesmo. Não estou exagerando nada, porque eu conheço Altamira. Estou ali há mais de 50 anos, conheci essa cidade que, quando cheguei era, naturalmente, de menor porte, sete ou oito mil habitantes. Agora tem 150 mil, mas é incomparável.
A convivência se tornou algo que não é mais de vizinhança, boa vizinhança, todo mundo se tranca. Em determinados horários que eram dedicados ao lazer, se você parar para observar, não tem ninguém em frente à casa. Antigamente Altamira era assim: o pessoal, à boca da noite, como se diz, estava sentado na frente da casa, as crianças brincando na calçada, esse tipo de coisa, o pessoal jogando conversa fora. Nada disso acontece mais, as casas são cercadas de muros altos, com cerca elétrica. Isso não é mais vida. Para mulheres na sua idade, ou um pouco mais, andar sozinha é um risco.
Qual foi o impacto da construção de Belo Monte na cultura local?
A cultura do povo paraense foi, no meu modo de ver, atingida no coração. Porque, só para explicar, o paraense tem uma cultura de hospitalidade. E certamente outras pessoas pelo Brasil afora são semelhantes, mas aqui no Sul são diferentes. Vejamos por exemplo, uma família que mora em Altamira. Os pais, parentes, tio, tia, avós, quem quer que sejam, amigos e amigas que moram no interior, quando chegam em Altamira para se tratar, fazer compras, automaticamente se hospedam na casa dos filhos, não se faz um telefonema ou qualquer coisa, “olha eu vou chegar” e tal, isso é coisa normal, normalíssima, dos filhos receberem seus pais, parentes, amigos, avós, quem quer que seja.
E de repente está numa casa que é tão diminuta, tão pequena, que mal cabe um casal com dois filhos, e de repente vem o pai, ou vem a mãe, ou vem os avós, e você vai ter que dizer na porta “aqui não tem lugar”. E isso é horrível, a agressão não é apenas que você foi transferido de uma casa para outra, é um agressão à cultura. Imagine dentro do coração de uma pessoa ter que negar hospedagem aos próprios pais. Não tem outro jeito, não cabe, simplesmente não cabe, as casas são mais gaiolas do que moradias.
O senhor considera que Belo Monte trouxe desenvolvimento para Altamira?
Para mim, isso não é progresso, não é desenvolvimento, gente falava que com Belo Monte viria o progresso para Altamira, mas que progresso é esse? A qualidade de vida piorou, diminuiu-se a qualidade de vida de uma maneira assustadora. É um retrocesso.
Em acordos envolvendo a operação Lava Jato, diretores de grandes empreiteiras reconheceram haver desvios de recursos envolvendo a construção de Belo Monte. Confirma-se, portanto, que eram outras as razões para se construir a usina?
Sem dúvidas. Eu não posso provar porque não tenho acesso a todos esses documentos, mas todos nós ficamos apreensivos, desde o início. Aí tem areia no meio, tem boi na linha, como se dizia antigamente. E de fato agora aos poucos está se descobrindo que tinha interesses escusos por trás. Além disso, eu sustento até hoje que Belo Monte é um golpe no coração da Amazônia. Um rio está sendo sacrificado, e a gente até hoje não sabe se vai funcionar. Porque o Xingu é um rio, como dizem os geólogos, em formação. O rio não está pronto de fato. Tem outros rios que têm o seu leito determinado, não mudam mais nada, mas o Xingu é diferente, então não conhecemos as verdadeiras consequências. Não sei se os cientistas que moram aqui em Brasília entendem realmente o que é a Amazônia e o que é o rio Xingu com seus afluentes e tudo o mais. Neste ponto não quero ser profeta apocalíptico, mas eu tenho medo, porque isso pode acarretar consequências imprevisíveis que ninguém sabe hoje determinar ou definir.
Por que o Brasil insiste em adotar fontes de energia que causam tantos danos ao meio ambiente e as populações tradicionais? Não está na hora de adotar outro modelo de desenvolvimento?
Exatamente, tem outras possibilidades de captar energia. Estou falando da energia solar, por exemplo, em nossa área do Pará nós temos sol das 6h às 18h, mesmo no inverno, o chamado inverno que é a época das chuvas, o sol em que amanhece o dia às 6h ou 6h30 e até as 18h ou 18h30 nós temos claridade, então por que não aproveitar essa dádiva divina que é o próprio sol? E nós temos cientistas de ponta em nossas universidades aqui, por que não se investe nesses cientistas para descobrir como aproveitar essa fonte que nunca termina que é o próprio sol?
Quanto a energia eólica eu tenho algumas reservas, mas também no litoral do Nordeste há áreas que não são habitadas, quer dizer, um parque eólico aí não estraga tanto a paisagem ou prejudica o turismo. E depois tem biomassa, tem outras fontes. Por que fazer uma hidrelétrica faraônica como essa de Belo Monte?
Poderia fazer algumas menores, aproveitando algum afluente do rio Xingu, por que não? Não ia ter tanto estrago, deixa o leito do rio como está, mas mesmo perto de Altamira tem várias afluentes que são igarapés, são córregos, diria quase que caudalosos, tem muita água, pode-se aproveitar. Eu não sou cientista nesse ponto, mas eu sempre fiquei pensando nisso, porque estragar um rio de dois mil quilômetros de comprimento, acabar com esse rio, com o meio ambiente, estragar uma cidade, um terço da cidade vai para o fundo, e por aí vai a história. Não entendo.
(Foto: CIMI)
Sabemos que o senhor ajudou na produção da encíclica Laudato Si. O que o senhor acha da atribuição de coautor que recebeu?
Que ajudei na produção parece um pouco exagerado, os jornalistas colocaram que eu era coautor. O fato é que eu estive lá com o Papa em 04 de abril de 2014, e eu sou secretário da Comissão Episcopal para a Amazônia, até tivemos uma reunião que terminou agora a pouco.
Estou há 50 anos na Amazônia, então de repente surgiu essa proposta de ir falar com o Papa sobre ela. O cardeal Dom Cláudio Hummes então agendou, conseguiu uma audiência para mim, e fui lá 04 de abril. Por um bom tempo falei com o Papa sobre a situação da Amazônia, sobre os povos indígenas, e outros assuntos. Quanto à Amazônia, falei da sua importância como habitat dos povos indígenas.
O Papa então me revelou que estava escrevendo uma encíclica, uma carta não só aos católicos, mas a todos os homens e mulheres de boa vontade, sobre a ecologia, e ele logo alertou dizendo que é a uma “ecologia humana” que ele quer se referir.
Então eu disse simplesmente assim “então a Amazônia não pode faltar, a Amazônia tem que entrar nessa encíclica porque ela tem um papel importante no planeta Terra, inclusive tem uma função reguladora do próprio clima planetário, e os povos indígenas também logicamente tem que ser lembrados porque estão ligados ao meio ambiente e a ecologia”.
E o Papa então me disse que ele tinha encarregado o presidente do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, o cardeal Peter Turkson, de fazer um esboço de como poderia se fazer esse trabalho, essa encíclica, e pediu que eu me dirigisse a ele. Eu disse a ele “olha isso eu já fiz ontem a noite, porque fomos jantar juntos e falamos sobre isso”. Ele pediu que eu desse minha contribuição. Que eu mandasse rapidamente, urgentemente, com urgência urgentíssima a minha contribuição, que eu fiz em 19 de junho de 2014, e a encíclica saiu um ano depois, 18 de junho de 2015.
Como foi o seu primeiro contato com o texto?
Para minha maior surpresa e felicidade, na hora em que a encíclica saiu eu estava na chácara do Cimi em Luziânia. Fui colocar a palavra Amazônia na referência de busca e apareceu. Depois coloquei indígena e não apareceu, fiquei meio assustado, mas o Papa usou a palavra aborígenes, porque na África e na Austrália não se usa a palavra indígenas. Então entrei e reconheci na hora esses artigos 38 e 146, reconheci que seria praticamente a minha contribuição, mas eu não posso ser coautor, eu dei minha contribuição, e apareceu então nesses artigos.
Qual a importância, na sua opinião, da encíclica?
Eu acho que que a encíclica tem um grande valor, porque você não precisa ter um estudo avançado, digamos assim, em teologia ou em outras ciências, qualquer leiga e leigo que tiver interesse pela ecologia pode ler e vai entender. O Papa se deixou assessorar por cientistas de grande valor, porque não tem nada aí dentro que se possa criticar “olha, isso é fantasia, é coisa romântica”. A encíclica neste ponto é intocável, o recado é dado, mais uma vez digo, não apenas ao mundo católico, mas a todas as pessoas, porque somos todos responsáveis por esse mundo que é o nosso e que é nossa casa.
O que temos a aprender com os povos indígenas? Que mensagem eles trazem para a construção de uma nova sociedade?
Tem muita coisa que podemos aprender, mas basicamente eu queria me referir a dois pontos específicos. A primeira coisa é, de fato, como os índios se relacionam com sua terra. Para os índios, a terra não é mercadoria. Para nós brancos, a terra se compra, se vende, quer dizer, nós estamos em um mundo em que a terra tem um valor econômico, de compra e venda, de repente você compra, depois você não se agrada mais, vende, compra enormes extensões de terras, se diz dono, tem título definitivo de terras etc. Para o índio é outra coisa. Para os povos indígenas a terra é, por assim dizer, mãe. Eles têm um relacionamento de filho–mãe. A terra é o chão de seus ritos, de seus mitos, onde estão enterrados seus ancestrais, a terra de suas danças, a terra faz parte de sua própria vida. Mais uma vez, para nós, lamentavelmente, a terra é artigo de compra e venda, é mercadoria.
E a segunda coisa que sempre me admirei, eu me lembro, quando era bispo novo, mais novo que agora, eu fui uma vez para uma aldeia, lá no Xingu, e vi um bananal. Perguntei a um índio “quem plantou esse bananal?”. O índio respondia na hora, na língua dele, “nós Kayapó todos o fizemos”. Eles têm essa ideia de “nós”, “nosso”.
Ora, nós brasileiros, quando tem jogo, quando o Brasil está jogando contra o Chile ou contra a França ou a Itália ou o que quer que seja, nós estamos assistindo, nós estamos nos sentindo brasileiros, será que não nos sentimos brasileiros também quando se trata da defesa da nossa pátria? Os índios nos ensinam exatamente essa ideia do “nós”, esse “nós” significa que nós dois não somos apenas duas pessoas, você tem outros pais diferentes dos meus, mas os índios se entendem como parentes, quer dizer, você para mim é uma parente, uma pessoa que está ligada, e eu estou ligado a você por um laço de amizade, de fraternidade que ninguém pode cortar. Isso eu acho bonito.
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“Por que fazer uma hidrelétrica faraônica como essa de Belo Monte?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU