08 Abril 2022
O entusiasmo pela paz cedeu lugar ao entusiasmo pela guerra. A preocupação dos intelectuais católicos em justificar a guerra é, a partir desse ponto de vista, significativa. A guerra entre Rússia e Ucrânia é um fato trágico, pelo qual Putin tem uma enorme responsabilidade. Mas o Ocidente não tem a tarefa de atiçar o fogo, mas sim de apagá-lo, e isso em prol da própria Ucrânia.
A opinião é de Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, na Itália, autor em português de “Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual” (Vozes, 2018).
O artigo foi publicado por Vita, 04-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Grande parte da discussão sobre paz e guerra, sobre putinianos ou antiputinianos, que ocupa o espaço midiático na Itália parece nauseante, inútil, ideológica. Na verdade, a questão não diz respeito ao direito da Ucrânia de resistir ou de adquirir armas diante da invasão russa, mas sim de como se chegar à paz.
Esse é o verdadeiro nó e é a pergunta que deve ser feita, e não aquela, totalmente abstrata, sobre se a Ucrânia tem o dever de se defender ou não. E, em vez desta última questão, fala-se de uma polêmica insistente e fora de lugar, especialmente por parte da intelligentsia católica, contra o Papa Francisco, acusado de ser “pacifista” e “neutralista”, de não tomar uma posição aberta em favor da Ucrânia e do Ocidente.
Neste caso, a história se repete também graças à amnésia do passado. Em 2003, o presidente Bush declarou guerra ao Iraque de Saddam Hussein. João Paulo II, absolutamente contrário ao conflito, tentou de todas as formas fazer com que o presidente estadunidense desistisse da sua decisão. Não foi ouvido. O resultado: centenas de milhares de mortos, a devastação do Iraque, o êxodo de milhões de cristãos por medo de represálias, a desestabilização radical da região.
Também naquela época, na Itália e nos Estados Unidos, uma grande ala de católicos se aliou aos Estados Unidos contra o papa, acusado de ser “irrealista”, utópico, pacifista. Trata-se das mesmas acusações que retornam agora contra o Papa Francisco.
Ele é criticado por não citar o nome de Putin ao condenar a guerra, como faz o National Catholic Reporter; porque estaria renovando os “silêncios” de Pio XII sobre os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, como afirma o New York Times. Na Itália, ele é acusado de insensibilidade.
“Como o Papa Francisco pode mostrar tanta indiferença por aqueles que morrem, verdadeiramente, pela sua pátria? É verdade que o ‘morrer pela pátria’ foi desgastado pela intelligentsia, como no desprezo exemplar de Umberto Eco pelos pequenos heróis do livro ‘Cuore’, de Edmondo De Amicis. Mas, muito mais do que o assentimento à guerra, a incapacidade de pensar o heroísmo e o sacrifício de quem combate é hoje desumana, é índice de cinismo intelectual e moral. Devemos ainda cultivar, com a intelligentsia internacional, essa idealidade do imbele, apesar de sabermos desde sempre, e agora vem a confirmação, de que o poderoso se aproveitará disso? É isso que a Igreja Católica deve fazer? Como batizado e crente dentro da tradição católica, nunca me envergonharei de quem combate em defesa da sua pátria agredida. Feliz é a nação que encontra heróis quando deles precisa.”
Assim escreve Pietro De Marco, que eu conheço pessoalmente, no blog de Sandro Magister: “Morrer pela pátria. Aqueles heróis que inquietam o papa” (Settimo Cielo, 01-04-2022). Para o autor:
“Percebe-se e aprecia-se que o Papa Francisco visa a induzir sentimentos de culpa e vontade de conversão no agressor, sem acusá-lo explicitamente. Mas essa também é uma estratégia espiritual que não leva em conta o dever, para a Igreja, de um julgamento público segundo a justiça. A Igreja de Bergoglio já não distingue mais entre foro interno e foro externo. A profunda página sobre a alegria de Deus em levantar da terra e perdoar o filho pródigo é dirigida às nossas consciências, com a bela e até arriscada ênfase de que, no centro da ‘confessio peccati’, não há o pecado, mas a misericórdia. Mas, no âmbito do foro externo, do ‘forum ecclesiae publicum’, é o caso do pecado que mais importa. O crime é público, a sua condenação é válida diante de todos.”
Aqui, De Marco segue à risca a teologia política de Carl Schmitt, da qual é admirador, para a qual a Igreja só pode pedir para amar os inimigos em sentido amplo (inimicos), mas não os inimigos públicos (hostes). Em um artigo anterior, também no mesmo blog, De Marco escreveu, criticando os pacifistas:
“Agora os ‘pacíficos’, diante da história dos povos, não podem se esconder atrás do véu do seu horror ao ódio e ao sangue, nem mesmo sob o de uma caridade que prescinde de tudo. Nessa ordem de realidade que é o conflito em curso, deve dominar a menos gratificante virtude da justiça. Menos gratificante porque a justiça, nas relações entre os povos, se é feita, deve ser justiciável: a sua sentença deverá ter consequências. E estas serão, ou melhor, já o são, coerentes com a mecânica da guerra, pois lhe dizem respeito: armas e meios fornecidos à parte fraca para combater, sanções contra o agressor para feri-lo em vários níveis e certamente criar sofrimento, ameaças simétricas para intimidar. Com isso, no fim, o inevitável ato de sucumbir (ou de ceder terreno com danos) de uma parte. Se as palavras de paz não veem essa concatenação de fatos necessários, voltados realisticamente a frear o conflito, se o consideram um mal não digno de exame ‘iuxta propria principia’, elas se condenam a ser abstratas” (“A guerra na Ucrânia e a Igreja. De Marco: ‘A verdadeira paz exige justiça’, 09-03-2022).
Para De Marco, “a oração, a mais intensa e teologicamente mais consciente, é necessária e, sem dúvida, agradável a Deus, mas se enquadra no desígnio insondável da Sua vontade. Ou somos tentados como Igreja a assumir a oração como ‘truque’ para não tomar uma posição e não operar nesta e sobre esta guerra? Não cairíamos nessa tentação se tivéssemos conservado a capacidade de pensar os eventos em termos de teologia da história. Em vez disso, as teologias dominantes são antitéticas a Paulo, hostis a Agostinho, zombariam de Bossuet ou De Maistre. Elas flertam com as filosofias, mas são estranhas à herética, mas altíssima, teologia da história de Hegel. Pensam pequeno ou utopicamente, e a utopia é o produto lendário das éticas do sentimento”.
A bondade de fachada e o sentimentalismo falsificariam o realismo católico, um realismo que singularmente termina em Hegel, não propriamente um defensor do pensamento católico.
Citei longamente a posição do Prof. De Marco porque, na minha opinião, ela é emblemática da crítica que hoje subjaz ao ocidentalismo católico, uma posição transversal à direita e à esquerda. No seu artigo, De Marco cita, aliás, como conclusão, um autor sui generis que emerge dos quadros descritos acima.
“Vivi com muita atenção – escreve – os anos distantes da ação política internacional de Giorgio La Pira (crise em Cuba, Vietnã), talvez desprovida de resultados maiores, mas portadora de razão, de análise, capaz de influência.”
Não é essa também, perguntamos, a posição do papa, que, não por acaso, no seu belíssimo discurso em Malta no sábado passado recordou precisamente a figura de Giorgio La Pira?
“Há mais de 60 anos – disse Francisco –, a um mundo ameaçado pela destruição, no qual quem ditava a lei eram as contraposições ideológicas e a lógica férrea dos alinhamentos, a partir da bacia mediterrânea levantou-se uma voz contracorrente, que contrapôs, à exaltação da própria parte, um salto profético em nome da fraternidade universal. Era a voz de Giorgio La Pira, que disse: ‘A conjuntura histórica que vivemos, o confronto de interesses e de ideologias que abalam a humanidade nas garras de um incrível infantilismo, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir de novo as normas de uma Medida em que o homem abandonado ao delírio e aos excessos possa se reconhecer’ (Discurso no Congresso Mediterrâneo da Cultura, 19 de fevereiro de 1960). São palavras atuais; podemos repeti-las porque têm uma grande atualidade. Como precisamos de uma ‘medida humana’ diante da agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, diante do risco de uma ‘guerra fria ampliada’ que pode sufocar a vida de povos e gerações inteiros! Aquele ‘infantilismo’, infelizmente, não desapareceu. Ressurge prepotentemente nas seduções de autocracia, nos novos imperialismos, na agressividade generalizada, na incapacidade de lançar pontes e de começar pelos mais pobres. Hoje é tão difícil pensar com a lógica da paz. Habituamo-nos a pensar com a lógica da guerra. A partir daí começa a soprar o vento gélido da guerra, que também desta vez foi alimentado ao longo dos anos. Sim, a guerra vem sendo preparada há tempos, com grandes investimentos e comércios de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, se enfraqueceu nas últimas décadas, assim como o caminho da comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria, à procura de espaços e zonas de influência.”
O entusiasmo pela paz cedeu lugar ao entusiasmo pela guerra. Não se trata de uma questão marginal. A preocupação dos intelectuais católicos em justificar a guerra é, a partir desse ponto de vista, significativa. A guerra entre Rússia e Ucrânia é um fato trágico pelo qual Putin tem uma enorme responsabilidade. O Ocidente, porém, não tem a tarefa de atiçar o fogo, mas sim de apagá-lo, e isso em prol da própria Ucrânia. É a esse nível que deve ser levada a reflexão, e não à inútil disputa sobre a guerra ou a não guerra.
O Ocidente quer que a Ucrânia chegue à paz ou explora o corpo martirizado do país para enfraquecer Vladimir Putin? Essa é a questão, o resto é neblina. Se o Ocidente quer buscar a paz para a Ucrânia, então deverá manter um canal aberto com a Rússia e, em segundo lugar, deverá avaliar até que ponto a resistência militar ao invasor deverá ser levada em frente.
Além de um certo limite – um limite que talvez já tenhamos alcançado – o conflito corre o risco de degenerar, de sobrecarregar as partes, de levar a genocídios do lado russo, de provocar uma intervenção reativa da Otan. Depois disso, há a terceira guerra mundial.
É isso que se quer? Os defensores da guerra “justa” querem isso? A destruição da Ucrânia e do mundo?
Sobre esse ponto, a Europa começa a fazer as contas e a compreender, após o infeliz discurso de Biden em Varsóvia, que o Ocidente está realmente dividido, que os interesses da Europa não coincidem com a política agressiva levada em frente pelos Estados Unidos. Como escreve Domenico Quirico:
“A distância que separa os estadunidenses e os europeus na guerra na Ucrânia se ampliou, como era previsível, em outro ponto perigoso. Em Washington, com o envio ao governo de Kiev de armas mais sofisticadas e letais, armas de ataque, a fragilíssima negociação foi sabotada pela enésima vez (uma perspectiva que os estadunidenses consideram uma derrota), e se começa a sonhar até com uma reversão do resultado da guerra: não mais os russos enfraquecidos, atolados, mas em fuga, e os ucranianos que reconquistam não só as áreas invadidas há um mês, mas também o Donbass e, por que não?, a Crimeia. Putin, portanto, humilhado e, como os regimes nunca sobrevivem às derrotas, liquidado pela História e pelos pesadelos do século XXI. Depois de Saddam, Milosevic, Gaddafi, Bin Laden, os Califas, outra carta do encorpado baralho dos diabos modernos descartada do jogo. Os europeus estão mais conscientes, pela proximidade das maléficas consequências, do infernal poder destrutivo que Putin pode desencadear por vingança ou para retomar o controle das operações. Os estadunidenses pensam na vitória, os europeus (nem todos) pensam na paz que se seguirá. Agora, terão que tomar rapidamente uma decisão complicada: alinhar-se de novo com a estratégia de Washington ou seguir um caminho diferente. Em suma: é preciso colocar-se no centro da arena, entrando, como dizem os toureiros, ‘no berço dos chifres’. Será preciso que um dia se discuta com Putin, ou com os seus herdeiros, mesmo que apenas pelos nossos interesses. Deverão ser retomadas relações suportáveis e humanas com essa parte da Europa. Uma bela ferida aberta, clara, cicatriza. Mas não a envenenem!” (“Tratar com o inimigo para derrotar os demônios”, La Stampa, 04-04-2022).
Se essa é a perspectiva, se os interesses entre os estadunidenses e os europeus não coincidem necessariamente, se Biden pressiona pela continuação da guerra, e a Europa tem todo o interesse de chegar à paz, então evocar continuamente o fantasma de Munique e retratar Putin como um novo Hitler não ajuda. Assim, desculpe dizer, de nada serve a reedição do livro de Emmanuel Mounier intitulado “Os cristãos e a paz” [...].
O Mounier de 1939, que desconfiava de Munique e convidada a resistir com a força ao poder avassalador de Hitler na Europa, não pode ser invocado como o intérprete da situação atual. Sobretudo, não pode ser invocado como a expressão autêntica do realismo cristão contra o utopismo pacifista do Papa Francisco. Digo isso como aluno personalista de Armando Rigobello, o mestre que introduziu o studio de Mounier na Itália.
Por outro lado, também não é suficiente, como faz o amigo Giorgio Tonini na sua resenha do livro de Mounier, contrapor, no conflito presente, Kant e Hobbes. Não é suficiente para os católicos. Os teocons de Bush também queriam, em 2003, exportar a democracia liberal ocidental (kantiana) para o Iraque atrasado, mas o resultado foi desastroso.
A democracia deve buscar a paz, e a força deve ser proporcional a esse fim. Por isso, em um momento como este, a figura mais atual é oferecida por Giorgio La Pira, não por Mounier, nem mesmo por Kant.
O realismo exigido não é aquele que visa a redesenhar a geografia política do mundo, mas sim aquele que, dentro da tragédia do presente, explora todas as aberturas possíveis para se chegar à paz. É isso que o papa, o verdadeiro realista, deseja e pede com insistência.
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Os católicos e a guerra. Silenciar o papa? Artigo de Massimo Borghesi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU