12 Agosto 2021
“A questão das vacinas toca na concepção da liberdade, da autoridade e da soberania. E a reação de algumas elites – tanto à direita quanto à esquerda – às normativas antipandêmicas evidencia a incapacidade de uma verdadeira compreensão da relação entre liberdade e autoridade.”
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 11-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes, somos capazes de sair dos modelos que prejudicam os nossos julgamentos sobre as coisas e as pessoas. Lendo hoje aquilo que escreve aquele homem inteligente que é Pietro De Marco [professor de Sociologia da Religião na Universidade de Florença], com quem escrevemos livros e tivemos sonoras discussões também em rede, encontro-me em grande parte de acordo com ele, embora com algumas distinções necessárias.
Não estou surpreso com a sua abordagem: o seu texto, que foi publicado no blog de Sandro Magister com o título “Apocalípticos e libertários: o rebeldismo suicida dos católicos antivacina” [disponível em italiano aqui] toca em um ponto delicado e sensível do debate atual, que permeia, por tabela, todo o âmbito cultural.
Ao mesmo tempo, tanto no front “de esquerda” quanto no front “de direita”, aparecem reações singularmente duras e pesadas contra as “políticas sanitárias”. Giorgio Agamben, Massimo Cacciari e ambientes do tradicionalismo católico estadunidense e italiano dizem coisas muito semelhantes.
E tudo está subordinado a uma “releitura” do real que corre o risco de não o considerar na sua seriedade. Tudo se reduz a um pretexto, e resta apenas um firme protesto. O que acontece?
A análise de De Marco coloca o dedo na ferida: a questão das vacinas toca na concepção da liberdade, da autoridade e da soberania. E a reação de algumas elites – tanto à direita quanto à esquerda – às normativas antipandêmicas evidencia a incapacidade de uma verdadeira compreensão da relação entre liberdade e autoridade.
A absolutização da liberdade, de fato, torna impossível uma verdadeira luta contra a pandemia, porque não consegue sair da evidência invasiva do “próprio particular”.
Nesta análise, Pietro De Marco relê poderosamente o desenvolvimento do pensamento político moderno, do qual ele assume a tendência “libertária” quase como intrínseca ao liberalismo. A isso, ele opõe fortemente um “pensamento cristão”, que seria o único capaz de frear essa “dissolução libertária” de toda autoridade.
Em transparência, é evidente que o texto de De Marco tem como seu interlocutor pelo menos um duplo fronte: por um lado, o tradicionalismo católico, que seria vítima de um “erro de discernimento” bastante grave. Por outro, o próprio pensamento libertário, que alimentaria esse “esgotamento do humano” na corrida por direitos sempre novos. Os tradicionalistas, assim, teriam assumido indiretamente nas suas palavras a linguagem do Anticristo!
Para além dos tons últimos e dessa leitura apocalíptica do desenvolvimento tardo-moderno, o texto de De Marco me parece muito útil para focar um duplo processo, no qual se entrelaçam duas histórias diferentes, que a pandemia teve a força de unificar e quase de confundir. Tento indicá-las aqui.
Por um lado, devemos reconhecer que a redução da tradição a tradicionalismo é um fenômeno da modernidade tardia. Não é de se estranhar que não só para contestar a necessidade da vacina, mas também para obstaculizar o uso do novo rito da missa, os tradicionalistas usem “argumentos anárquicos”: como deixar de notar que, no coração do motu proprio Summorum pontificum, o documento de 2007 com o qual Bento XVI abria à possibilidade de um “uso extraordinário” do rito romano, havia uma absolutização do “direito subjetivo do padre”? Uma curiosa mistura de tradicionalismo e pós-modernismo, ambos desenfreados. Um sadio exercício de “limite” está bem presente no motu proprio Traditionis custodes, mas está ausente no Summorum pontificum!
Por outro lado, a incapacidade de compreender as “lógicas comunitárias” (do distanciamento, da campanha de vacinação ou do “green pass” [passaporte vacinal]) e sua redução teórica a “atos arbitrários de despotismo” evidenciam a fragilidade da noção de liberdade nas democracias contemporâneas. O discernimento entre direitos justificados e direitos injustificados é o verdadeiro ponto da questão, sobre a qual as categorias adequadas não são superabundantes. A possibilidade de uma “decisão política” reside justamente nesse discernimento, em que pessoas, lobbies e grupos de poder muitas vezes se sobrepõem até o ponto de se identificarem.
Ao contrário de Pietro De Marco, eu não estou absolutamente convencido de que a virada liberal seja uma “catástrofe”. É também uma providência pela qual devemos agradecer, assim como o Concílio Vaticano II e a Reforma Litúrgica. Mas é certo que a questão cultural que enfrentamos hoje nestas “regurgitações antiautoritárias sem déspota” se manifesta como um desafio radical para uma reavaliação decisiva de três noções centrais do nosso mundo: liberdade, autoridade e soberania merecem os nossos melhores esforços.
O catolicismo, que não tem a varinha mágica para resolver esta “época de mudanças”, também é posto em jogo pelos novos desafios. Sem ter soluções imediatas ao alcance das mãos, porém, ele sabe reconhecer, com bom faro, as respostas equivocadas.
Nisso, parece-me, Pietro De Marco indicou com sabedoria o beco sem saída de uma pretensão tradicionalista, que mostra que perdeu todo senso da tradição. Quando você compara as políticas sobre o “green pass” com o nazismo ou os soviéticos, você perdeu o senso da medida e da realidade, tanto à direita quanto à esquerda.
Certamente permanecemos a uma grande distância de Pietro em relação às respostas. Mas a análise das dinâmicas em jogo nas polêmicas atuais parece-me conduzida com mão firme e com crivo de autoridade. Por isso, eu o agradeço e me alegro com a sua fortaleza: cantar fora do coro nunca é fácil.
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Liberdade incompreendida e autoridade mal compreendida. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU