Sem saber que ideias estamos legitimando ao usar os dispositivos digitais, renunciaremos a qualquer autonomia, assinala o pesquisador
"O fato é que não estamos lidando mais apenas com ferramentas, que podemos usar com maior ou menor destreza e deixar em repouso quando nos convém. Os atuais dispositivos funcionam em rede e nos condicionam decisivamente, na imediata medida em que deles nos utilizamos."
A afirmação de Edgar Lyra, professor e coordenador de Integridade da PUC-Rio, sintetiza o âmago do debate sobre o presente tecnológico: a hegemonia dos dispositivos digitais não apenas altera a superfície de nossas vidas, mas "reconfigura [nossas subjetividades] em níveis diversos e profundos: nossa orientação espacial e temporal, nossa navegação física e virtual, nossa memória, discurso, formas de produção de conhecimento, enfim, nosso trabalho e nosso lazer".
Doutor em Filosofia, Lyra atua na fronteira desse complexo cenário, liderando o Grupo de Pesquisa em Filosofia da Tecnologia e participando do grupo de Estudos em Mediação Algorítmica e Processos Sociais – EMAPS. Para ele, ter "consciência da ubiquidade e da 'pervasividade' do ambiente tecnológico digital é o primeiro passo para a construção de qualquer ética adequada a estes novos tempos".
Nesta entrevista concedida por e-mail a Thiago Gama, o professor aborda os desafios ontológicos e éticos impostos pela Inteligência Artificial e pela mediação algorítmica, destacando a importância de uma "Filosofia da Opinião" para navegar a esfera pública digital, marcada pela desinformação e polarização. "Se os próprios professores-pesquisadores não se mostrarem capazes de trazer à luz as transformações em curso e de compartilhá-las suficientemente com a sociedade [...] então estaremos abrindo definitivamente mão de qualquer autonomia", adverte. Lyra também resgata a crítica de Heidegger à essência da técnica para propor uma reflexão sobre o sentido do que estamos construindo, em um "destino com o qual temos de nos haver".

Edgar Lyra (Foto: PUC-Rio)
Edgar de Brito Lyra Netto é graduado em Engenharia Química pela UERJ (1981), com mestrado (1999) e doutorado (2003) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde atua como professor e pesquisador associado. Criou e lidera desde 2016 o Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Tecnologia, certificado pelo CNPq. Ingressou em junho de 2019 no Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio, e em setembro do mesmo ano filiou-se ao EMAPS (grupo de Ética e Mediação Algorítmica de Processos Sociais). Fortemente convencido da necessidade de formar professores de filosofia para lidar com as demandas da era técnica, tem se dedicado ao estudo da retórica com intenções político-pedagógicas, partindo da Retórica de Aristóteles em direção aos seus ecos digitais contemporâneos. É autor, entre outros, de "O Esquecimento de uma Arte: retórica, educação e filosofia no século 21" (2021) e "Por uma Filosofia da Opinião" (Nau Editora, 2025).
A entrevista é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ, cedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo entrevistador.
Considerando sua liderança no Grupo de Pesquisa em Filosofia da Tecnologia, quais são os desafios ontológicos e éticos mais prementes impostos pela atual hegemonia tecnológica, especialmente no que tange à subjetividade humana?
Edgar Lyra – O Grupo de Pesquisa em Filosofia da Tecnologia foi criado em 2016 e continua ativo, tendo experimentado modulações e diferentes composições ao longo do tempo. Suas maiores realizações talvez tenham sido o I e o II Colóquio Internacional de Filosofia da Tecnologia, ambos realizados na PUC-Rio, respectivamente, em 2023 e 2024. A terceira e desejada edição tem sido postergada em função do meu presente acúmulo de atividades, entre elas a Coordenação de Integridade da Universidade.
Esses eventos são importantes exatamente como foro de discussão qualificado dos desafios que estruturam o grupo desde o início: compreender a lógica que subjaz à presente hegemonia tecnológica, e discutir formas de bem lidar com o condicionamento da vida e do mundo capitaneado por essa hegemonia.
O fato é que não estamos lidando mais apenas com ferramentas, que podemos usar com maior ou menor destreza e deixar em repouso quando nos convém. Os atuais dispositivos funcionam em rede e nos condicionam decisivamente, na imediata medida em que deles nos utilizamos. Nossas subjetividades vão sendo reconfiguradas em níveis diversos e profundos: nossa orientação espacial e temporal, nossa navegação física e virtual, nossa memória, discurso, formas de produção de conhecimento, enfim, nosso trabalho e nosso lazer. Ter consciência da ubiquidade e da “pervasividade” do ambiente tecnológico digital é o primeiro passo para a construção de qualquer ética adequada a estes novos tempos.
Sua participação no EMAPS o coloca na fronteira da discussão sobre ética e mediação algorítmica. Como a Filosofia pode contribuir para a construção de frameworks éticos mais robustos diante do avanço da Inteligência Artificial e dos processos sociais mediados por algoritmos?
Edgar Lyra – O EMAPS foi originalmente criado pela professora emérita do Departamento de Informática, Clarisse de Souza, com quem tenho o privilégio de trabalhar desde 2020. Nossa aproximação se deu na medida em que ela precisava de apoio específico em questões ético-filosóficas, e eu desejava conhecer melhor o universo computacional, para não falar desse universo apenas “de ouvido”.
“Ética”, a propósito, é um desses conceitos que todo mundo conhece, mas em torno dos quais não há consenso além da superfície. Por isso, resolvemos eu e professor Leandro Chevitarese, da UFRRJ, escrever um livro de serviço sobre o tema, publicado no início deste ano. Sem me perder na longa história filosófica da ética, delineio a perspectiva que tem me norteado nessa empreitada tecnológica: a da ética como regulação dos hábitos e sedimentação dos princípios de uma comunidade, comunidade que pode ser tão restrita quanto um condomínio ou tão ampla quanto o planeta.
O ser humano ético precisa estar permanentemente atento à necessidade de aprimoramento dessa teia de costumes, de mitos, exemplos, valores, normas e leis, em uma palavra, do respectivo ethos de cada comunidade. Tal aprimoramento envolve decerto o caráter dos indivíduos, mas, igualmente, sua capacidade de compreensão do que acontece de mais condicionante ou estruturante, sob pena de não sabermos como ou onde agir. Essa compreensão, dada a complexidade do mundo de hoje, demanda esforços transdisciplinares nada triviais. Não há polimatia que chegue para orientar a construção dos frameworks éticos a que você se refere, donde a criação de grupos como o EMAPS, radicalmente transdisciplinar.
Seus livros recentes abordam, além da ética, a retórica, a opinião e a educação. Qual o papel de uma Filosofia da Opinião, resgatando a arte da retórica, na formação crítica necessária para navegar a esfera pública digital contemporânea, tão marcada pela desinformação e polarização?
Edgar Lyra – Perfeito. Somos seres dotados de fala, que podemos negociar nossos acordos e rumos conversando, escrevendo, ou nos comunicando por meio de dispositivos midiáticos que foram se diversificando e sofisticando ao longo da história.
A possível falência discursiva e comunicativa, fomentada pela desinformação, pela polarização e pelo “opinionismo” contumaz, sem espaço para a emergência de questões genuínas, é um fantasma que ameaçadoramente nos ronda. Perceber as modificações estruturais em curso, não só no discurso, mas nas formas de produção do conhecimento e sua disseminação é, talvez, uma das tarefas mais urgentes e importantes de que a universidade pode e deve se ocupar.
Se os próprios professores-pesquisadores não se mostrarem capazes de trazer à luz as transformações em curso e de compartilhá-las suficientemente com a sociedade, de modo que possamos ter ideia do que estamos escolhendo ou legitimando, então renunciaremos a qualquer autonomia. Além disso, nos limitaremos a dançar ao som de um repertório que não sabemos exatamente quem define.
Com sua vasta experiência na formação de professores de Filosofia (PIBID, CEFET-RJ, BNCC), quais as estratégias pedagógicas mais eficazes para engajar os jovens do Ensino Médio na reflexão filosófica em plena era técnica e digital?
Edgar Lyra – O trabalho pedagógico nunca foi descolado da pesquisa, nem a universidade descolada do ensino básico. Diria, contudo, que a instituição universitária, sobretudo no Brasil, só recentemente está encontrando caminho de reconciliação com a formação elementar, por meio de programas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID, que você cita, além dos recentes programas de fomento à docência e permanência na escola, tipo “Pé-de-meia”. Há muito por fazer.
Formar novas gerações capazes de entender a revolução em curso, em outras palavras, de assumir protagonismo para além do mero uso passivo de novas tecnologias, é absolutamente necessário para a construção de futuros habitáveis. E aí não tem mágica. Só a correta redefinição de prioridades e perseverança no trabalho formativo pode nos salvar.
Tendo coordenado o GT Heidegger da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), como a crítica heideggeriana à essência da técnica (Gestell) ainda nos ajuda a pensar os impasses contemporâneos, desde a crise ambiental até a própria sobrevivência do pensamento filosófico?
Edgar Lyra – Participo dos Colóquios Heidegger desde sua terceira edição, e do GT da ANPOF desde o início. Este ano celebramos a trigésima realização dos Colóquios, de modo que vi muitos “Heideggers” e muita coisa ser pensada a partir das originais contribuições desse pensador.
Trata-se de um filósofo impressionante, com uma obra completa de mais de cem volumes, de enorme singularidade e, ao mesmo tempo, marcada pelo envolvimento com o nazismo no início da década de 1930. Seu pensamento sobre a essência da tecnologia é, não obstante, simplesmente referencial, mesmo como alvo de críticas e ponto de partida para reformulações. Uma confusão a ser desfeita é a de que Heidegger seja contra o desenvolvimento tecnológico. A técnica contemporânea personifica, para esse filósofo, o destino de um Ocidente cujas origens remontam à Grécia. Trata-se de um destino com o qual temos de nos haver.
Enfrentamos desafios invulgares, que poderiam, inclusive, nos ajudar a corrigir rumos, caso tivéssemos serenidade e despojamento para colocá-los em questão. “Gestell”, termo alemão que você oportunamente evoca, é uma palavra provisória achada pelo autor para descrever o condicionamento que a tecnologia contemporânea nos impõe, em outros termos, o enquadramento planetário a que estamos submetidos. Outrora devotados à subsistência, passamos do século XVII em diante a uma saga de acumulação, eficiência e controle que acabou por transformar o planeta numa espécie de reator em vias de superaquecimento. Precisamos, em suma, perguntar sobriamente que sentido tem o que estamos construindo. É importante registrar, não apenas Heidegger expressa essas preocupações. Mais e mais pensadores, de extrações diversas, abraçam esses questionamentos. A ver como nos saímos... ou não, como diria Caetano Veloso.