09 Junho 2025
O que está em jogo, portanto, é a própria tessitura do poder presidencial num tempo em que a realidade objetiva contrasta brutalmente com a percepção de uma economia em crise
O artigo é de Paulo Baía, publicado por Agenda do Poder, 07-06-2025.
Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
A rejeição crescente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, captada por pesquisas de opinião como a da Quaest, revela-se não como mero espasmo de descontentamento popular, mas como manifestação profunda de uma crise simbólica, comunicacional e institucional que transborda os limites da crítica circunstancial para se enraizar como questionamento estrutural à liderança presidencial. Não se trata de uma impaciência fugaz das massas. Trata-se de um desgaste que emerge da sobreposição de expectativas frustradas, ruídos políticos e percepções dissonantes, cuja acumulação corrosiva compromete a densidade de autoridade construída ao longo de décadas.
O que está em jogo, portanto, é a própria tessitura do poder presidencial num tempo em que a realidade objetiva, composta por indicadores de estabilidade macroeconômica, taxa de desemprego em queda e investimentos públicos retomados, contrasta brutalmente com a percepção de uma economia em crise, alimentada por narrativas pessimistas, reverberadas pela mídia e amplificadas nas redes sociais.
Essa dissonância entre os bons fundamentos da economia e a sensação generalizada de estagnação contribui para a crise de confiança que se instala no imaginário coletivo. A despeito da recuperação dos programas sociais, do protagonismo do Brasil em fóruns internacionais e da retomada de políticas de inclusão, predomina a ideia de que o país patina sem rumo, e que o governo Lula não sabe o que fazer diante dos desafios que se acumulam.
A frustração com a segurança pública, os temores sobre corrupção e a visibilidade de casos como o escândalo do INSS, com suas denúncias de fraudes bilionárias e descontrole administrativo em uma área sensível e simbólica para milhões de brasileiros, funcionam como catalisadores de um mal-estar difuso. Esse episódio, em particular, dilacera um dos pilares afetivos do lulismo: a imagem do Estado que cuida. O dano à confiança não é apenas técnico, mas simbólico, porque atinge a alma da relação entre governo e povo.
A comunicação institucional do governo, por sua vez, parece incapaz de responder com a altivez e a clareza necessárias. A narrativa oficial é tímida, dispersa, muitas vezes burocrática, incapaz de impor significados que enfrentem o ruído das críticas. A ausência de um discurso mobilizador, que reposicione o presidente como figura central no debate público, aprofunda a cisão simbólica entre Lula e as massas populares que, no passado, viam nele um espelho de suas próprias esperanças. Nesse vácuo discursivo, a rejeição cresce e se consolida, alimentada por uma avalanche de interpretações hostis que encontram terreno fértil em uma sociedade marcada pela ansiedade e pelo cansaço político.
O governo, ao não conseguir ocupar o centro da arena narrativa, permite que suas ações sejam lidas através do prisma dos adversários. É como se o lulismo tivesse perdido a palavra, o tom e a cadência que outrora o tornavam irresistível.
Ao lado dessa erosão simbólica, está a concretude de um Congresso Nacional hostil. A atual configuração legislativa, dominada por forças conservadoras, fisiológicas e frequentemente oposicionistas, impõe travas severas à governabilidade. O Executivo enfrenta dificuldades reiteradas para aprovar pautas estratégicas, sendo obrigado a ceder, recuar, negociar em condições desfavoráveis, mutilar projetos originais para obter vitórias parciais. O recuo do governo, expressão constantemente utilizada por seus próprios representantes, como o ministro da Fazenda, tornou-se símbolo da impotência diante das pressões de um sistema político fragmentado.
A cada retirada tática, mesmo que justificada em nome da governabilidade, a imagem presidencial sofre um abalo. A política é feita também de signos. O recuo, quando frequente, torna-se signo de fraqueza. A percepção pública não distingue, na maior parte das vezes, o cálculo estratégico da capitulação. E é nessa zona de ambiguidade que a autoridade se dissolve.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, avança para o centro do tabuleiro político com uma presença midiática que beira o protagonismo. Suas decisões, seus votos, seus embates internos e suas respostas aos conflitos nacionais passaram a ocupar o lugar outrora reservado ao Executivo. A superexposição do Judiciário contribui para a imagem de um presidente secundário, que assiste de fora à resolução das grandes controvérsias. O resultado é um cenário institucional desequilibrado.
O Executivo parece cada vez mais um órgão consultivo, sem força real de comando. A partilha entre os Três Poderes, formalmente intacta, revela na prática um deslocamento de autoridade que esvazia a centralidade da Presidência da República.
Essa sobreposição de fragilidades transforma a rejeição episódica em rejeição estrutural. A figura de Lula, que tantas vezes venceu adversidades com retórica apaixonada, simbolismo popular e senso histórico, encontra agora um ambiente mais árido. Seu capital simbólico se esgota diante da repetição de fórmulas antigas. O discurso progressista que moveu corações por décadas soa, para muitos, como ecos de um tempo que passou.
A desilusão, quando ganha densidade social, torna-se resistência ao próprio retorno do encantamento. No vazio emocional que se forma, adversários políticos, ainda que carentes de projeto ou profundidade, conseguem projetar a imagem de renovação, apenas porque não carregam consigo o peso do passado. O lulismo, outrora verbo de futuro, parece hoje substantivo de memória.
A perda de controle sobre a narrativa é também a perda de capacidade de convocação. Em uma era de saturação informacional e ceticismo generalizado, os líderes precisam ser também contadores de histórias, artífices de sentido. Sem uma agenda mobilizadora, que devolva à sociedade um horizonte de possibilidades, o governo se reduz a uma rotina administrativa. A rejeição eleitoral que desponta no horizonte não é apenas juízo sobre o presente. É também temor quanto ao futuro sob a mesma condução. A conjuntura adversa não explica tudo, mas escancara os limites do modelo atual. A política exige mais do que técnica. Exige alma. E se a alma do projeto está em silêncio, sua estrutura perde vitalidade.
Assim, o governo Lula caminha sobre um terreno movediço. As vitórias concretas não produzem os efeitos simbólicos esperados. Os recuos táticos alimentam a sensação de derrota estratégica. A crítica que cresce no presente ameaça contaminar a posteridade. O legado, que parecia consolidado, vê-se submetido à prova de fogo do tempo. Não está em risco apenas um mandato. Está em risco um ciclo inteiro, cuja promessa era a de refundar o país sobre novas bases de justiça e igualdade.
O que se observa é a lenta erosão de um projeto histórico, ofuscado por escândalos, derrotas legislativas, percepções distorcidas e, sobretudo, pela ausência de uma palavra que convoque, inspire e mobilize. A história ainda está sendo escrita. Mas sua tinta, por ora, escorre como sombra sobre os alicerces do que já foi luz.