18 Mai 2023
"A sensibilidade e a profundidade da crise econômica não permitem que Lula possa cometer equívocos neste domínio. Na situação atual, ela é mãe de todas as outras questões, ela se apresenta como a pré-condição para o sucesso de todas as demais agendas de políticas públicas", escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 16-05-2023.
Seres humanos erram. Apesar de certa obviedade contida na frase, nunca é demais repeti-la quando se trata de personalidades admiradas e respeitadas em vários segmentos de atuação e em distintos momentos históricos. Afinal, até mesmo o dogma da infalibilidade papal foi colocado em questão com o início do pontificado do Papa Francisco à frente do Vaticano. Lideranças políticas também estão sujeitas a cometerem seus equívocos, mas a diferença é que as consequências de tais atitudes ou propostas terminam por provocar consequências bem mais graves para o conjunto da sociedade do que aqueles desvios cometidos por gente como a gente.
Lula tem como característica pessoal uma impressionante capacidade política, um jeito muito particular de apreender as realidades em que se vê metido e de conseguir apresentar soluções para os inúmeros dilemas vivenciados. No entanto, isso não faz dele uma pessoa infalível, alguém incapaz de errar. Aliás, sua rica experiência nos dois mandatos à frente do Palácio do Planalto e o acompanhamento bem próximo do período daquela que ele mesmo escolheu para ser sua sucessora Dilma Rousseff, ofereceu a ele muito material para reflexão e aprendizado a respeito de como fazer e, principalmente, sobre o que não fazer na condição de presidente da República.
A agenda do cargo é enorme e o volume de compromissos e responsabilidades devem assustar qualquer novato que se inicie na função. Esse quadro torna-se ainda mais dramático e desafiador na situação em que o genocida deixou o Estado e a sociedade. Ou seja, tudo por reconstruir e com a urgência do drama social em que se encontra a grande maioria da população. Assim, a composição da equipe governamental é peça fundamental para o sucesso do quadriênio: a formação de um time que articule competência, profissionalismo, confiança e amplitude política. Enfim, trata-se de tarefa bastante complexa, sem dúvida alguma.
Ocorre que a sensibilidade e a profundidade da crise econômica não permitem que Lula possa cometer equívocos neste domínio. Isso não significa nenhuma abordagem economicista ou de algum pretenso determinismo da economia sobre as demais áreas do conhecimento. O ponto a reter aqui é que, na situação atual, ela é mãe de todas as outras questões, ela se apresenta como a pré-condição para o sucesso de todas as demais agendas de políticas públicas. Afinal, desde a oficialização dos resultados no último domingo de outubro do ano passado, temos um nó complexo envolvendo assuntos sensíveis como o teto de gastos; a inflação crescente; a taxa oficial de juros estratosférica; o desemprego elevadíssimo; a desindustrialização acentuada; os altos índices de miséria; o desmonte das políticas sociais; os baixíssimos índices de investimento público; o salário mínimo sem reajuste real; dentre tantos outros problemas cruciais a serem solucionados.
Lula tem plena consciência das imensas dificuldades que terá para organizar a casa e para atender ao conjunto das demandas que recaem sobre seu governo. Para além da ameaça golpista que se concretizou nos atos terroristas de 8 de janeiro, seu governo enfrenta uma oposição conservadora nas duas casas do Congresso Nacional e recebe uma pressão significativa dos grandes meios de comunicação para não avançar um milímetro sequer na direção de uma agenda progressista e popular. Talvez por isso mesmo ele já tenha anunciado, antes mesmo de sua posse, a necessidade de pressão dos setores populares sobre o governo. Em evento perante a equipe de transição, em 22 de dezembro de 2022, ele afirmou:
(…) “Eu sei que vocês vão continuar nos ajudando, cobrando. Isso é importante, não deixem de cobrar. Se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando, e muitas vezes a gente tá errando e continua errando porque as pessoas não reclamam. Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinhas nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia, pra que a gente consiga aprimorar a nossa capacidade de trabalho. É isso que eu espero de vocês. Cobrem, cobrem e cobrem para que a gente faça, faça e faça” (…) [GN]
O problema é que os erros na seara da economia começaram mesmo antes da posse. Duas semanas antes desse discurso acima em que Lula pede para ser criticado e cobrado, o futuro governo dava seu aval para a chamada PEC da Transição. Estava ali o seu primeiro equívoco. Em 8 de dezembro, a PEC 32/2022 iniciava sua tramitação no Congresso Nacional. A matéria era importante para criar condições de governabilidade orçamentária já em 1º de janeiro. No entanto, o texto incluía uma armadilha perigosa: ao invés de simplesmente revogar a EC 95, como prometido durante a campanha, o artigo 6º da EC 126 condiciona o fim do teto de gastos à aprovação de uma lei complementar estabelecendo um “regime fiscal sustentável”. Estava ali plantado o germe da continuidade da austeridade em sua versão 2.0, agora sob o rótulo aparentemente inofensivo de “novo arranjo fiscal”, como trata o PLP 93/2023.
O segundo equívoco foi a nomeação de Simone Tebet para o estratégico cargo do Ministério do Planejamento e Orçamento. Na verdade, a candidata do MDB às eleições presidenciais nem pleiteava tal posto, uma vez que sempre manifestara seu interesse por alguma pasta na área social. A solução de Lula foi introduzir no coração da área econômica alguém que sempre se posicionou a favor das propostas neoliberais e conservadoras do malfadado documento “Ponte para o futuro”. Esse era o material que o MDB havia preparado, ainda em outubro de 2015, para fortalecer o movimento a favor do golpe contra Dilma Rousseff e para apresentar a opção de Michel Temer aos olhos das elites. Ao oferecer áreas sensíveis como o orçamento e o planejamento para a emedebista, Lula trouxe para a cozinha do Palácio alguém com perfil bastante conservador em assunto tão estratégico para o futuro do governo.
O terceiro equívoco de Lula refere-se à aceitação passiva da proposta de estratégia de Haddad quanto à relação com Roberto Campos Neto. Como se sabe, desde que foi aprovada independência do Banco Central (BC), por meio da Lei Complementar 179, os nove integrantes da diretoria do órgão passaram a ter um mandato fixo. Assim a maioria do Copom atualmente é composta por gente indicada por Paulo Guedes e eles promovem uma verdadeira sabotagem ao novo governo. Lula cumpre um papel muito importante ao criticar todos os dias a exorbitância da Selic e propondo que líderes sindicais e empresariais façam o mesmo. Um passo essencial na direção de encurralar os responsáveis pela política monetária seria determinar que o Conselho Monetário Nacional (CMN, composto por Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento e BC) promovesse uma revisão das metas de inflação para 2023. No entanto, as reuniões mensais ordinárias do colegiado não vêm acontecendo com a regularidade que a conjuntura exige. No único encontro realizado este ano, em 16 de fevereiro de 2023, Fernando Haddad não incluiu essa questão na pauta e o tema nem foi abordado.
A meta oficial vigente para nossa inflação é absolutamente irreal e inexequível. Ela foi fixada por Paulo Guedes em 3,25% em reunião do CMN de junho de 2020, logo início da pandemia. Três anos depois, o quadro da economia nacional e global mudou completamente. Os Estados Unidos apresentam uma inflação anualizado de 5% e a média de países da União Europeia se aproxima de 6%. Manter uma meta tão baixa como a nossa é o principal argumento para o Copom estabelecer a Selic nas alturas. Assim, alterar a meta da inflação para níveis próximos da realidade é tarefa urgente para o CMN.
No entanto, venceu a tese – um misto de ilusão e ingenuidade – de que o governo conseguiria convencer o Presidente do BC a baixar a Selic em troca da demonstração de que Haddad estaria fazendo o “dever de casa” da austeridade fiscal, tal como afirmou Simone Tebet em mais de uma oportunidade esse ano. Ora, desde que houve o reconhecimento da vitória de Lula e de seu programa de governo, já houve 4 reuniões do Copom e em todas elas a decisão foi pela manutenção da Selic em 13,75%. Trata-se de um golpe contra a República, uma vez que menos de uma dezena de tecnocratas a serviço do financismo e da extrema direita impedem a colocação em marcha de um plano de crescimento e desenvolvimento, que pressupõe ambiente com taxa de juros significativamente mais baixas. E, para tanto, não basta essa demonstração de bom mocismo para obter alguma diminuição de 0,25%, 0,5% ou mesmo 1%. É fundamental uma mudança expressiva de patamar, que recoloque o Brasil bem abaixo de sua sempiterna condição de líder mundial no quesito taxa real de juros.
Finalmente, um quarto equívoco se manifesta em reiteradas falas de Lula tecendo aos seus dois primeiros mandatos, quando o governo promoveu superávits primários expressivos e mais elevados do que os demais países do G20. Ao estabelecer que tais medidas de austeridade fiscal possam ser consideradas como virtude ao invés de concessão ao poder do financismo e ao desejo das elites, o presidente reforça uma abordagem conservadora da macroeoconomia, que já está em desuso inclusive nos países ditos desenvolvidos. Além disso, Lula insiste em uma comparação equivocada entre a economia familiar e as possibilidades econômicas oferecidas por um Estado soberano. Ao trazer a imagem de que aprendeu economia com sua mãe, Dona Lindu, ele sempre repete a narrativa de que “não se pode gastar mais do que se ganha”, uma imagem que o senso comum incorpora para concordar com as medidas de austeridade fiscal – elas seriam, assim, inevitáveis.
Em suma, Lula termina por abrir mão das medidas de política fiscal, que são peças fundamentais para o seu plano de “desenvolver 40 anos 4”. A única possibilidade para fazer a economia brasileira voltar a crescer a taxas que permitam a mudança de patamar dos níveis de desenvolvimento social e econômico é por meio da recuperação do protagonismo do Estado. É fundamental ampliar os níveis de despesa orçamentária e elevar o investimento público. Mas a versão atual do PLP 93 aponta na direção oposta. O governo, que já está refém da política monetária de uma direção do BC ”independente”, agora parece oferecer voluntariamente as mãos para serem algemadas e impedidas de acionarem com robustez as medidas da política fiscal.
Não obstante os avanços significativos nas demais áreas do governo, Lula tem errado na economia. E como ele mesmo pediu que fosse cobrado, cabe às forças progressistas apontar os equívocos e as soluções para a correção do rumo. As emendas para aperfeiçoar o PLP 93 do arcabouço fiscal, por exemplo, são um caso muito importante. Retaliar ou ameaçar os parlamentares progressistas que optarem por esse caminho não parece ser uma boa solução.
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Os equívocos de Lula na economia. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU