16 Novembro 2024
A obra de Philippe Urfalino constrói-se entre as formas de participação cidadã e a democratização da cultura. Seus textos pensam a democracia como um sistema a partir de procedimentos participativos em conflito com a institucionalidade dos modos de representação, mas também como um elemento estratégico para ampliar os sentidos e as decisões deliberativas. Foi em torno desses temas que se deu o seminário ministrado pelo pesquisador francês no Centro Franco Argentino, da Universidade de Buenos Aires, instituição que o convidou para apresentar suas produções teóricas.
Durante a sua visita a Buenos Aires, Urfalino, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, pôde fazer uma apresentação tardia de seu livro A invenção da política cultural, escrito nos anos 1990. Nele o sociólogo francês reconstrói um período que vai da criação do Ministério da Cultura, no governo de Charles De Gaulle, a cargo do escritor André Malraux, em 1958, até a fase em que esta pasta esteve a cargo de Jack Lang, com a chegada de François Mitterrand ao poder, em 1981. As Casas de Cultura de Malraux são vistas como espaços estabelecidos para a distribuição de capital simbólico que possibilitaria a autonomia da cultura em relação aos vaivéns políticos.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 13-11-2024. A tradução é do Cepat.
Em seu livro ‘Cerrar la deliberación’ (Prometeo) você faz as seguintes perguntas: Como os cidadãos podem influenciar o governo? É possível maior influência com a tomada do espaço público? A participação política está sempre ligada a momentos altamente conflituosos?
Não tenho uma ideia clara se o conflito garante maior influência. Temos vários exemplos em que há uma mobilização muito forte no espaço público e isto pode ter um impacto, tanto sobre a evolução do governo quanto sobre as políticas públicas, mas também há casos em que mesmo mobilizações fortes não levam a qualquer mudança, exceto pelo que impactam na memória militante.
No entanto, pensamos no conflito porque é próprio da democracia, uma das características da democracia é que os cidadãos podem protestar. Quando evocamos os processos de democracia participativa temos em mente que vamos encontrar algo semelhante à democracia direta, mas isto é uma ilusão. A democracia participativa não consiste em tomar decisões públicas, consiste em tomar a palavra, em refletir coletivamente, fazer propostas. A influência dessas propostas sobre as decisões do regime político pode ser real, mas é sempre incerta.
Há outra coisa igualmente importante que é produzir nos cidadãos o sentimento de participar na vida pública. É algo que o grande pensador político britânico Stuart Mill destacou, no século XIX, dizendo que a participação fazia parte da formação cidadã.
A ideia a que cheguei na minha pesquisa é que a democracia participativa e a representativa não estão em competição. Os procedimentos da democracia participativa são modalidades da vida política das quais a democracia representativa necessita e, de certa forma, os dispositivos da democracia participativa competem mais com os partidos políticos do que com as assembleias legislativas.
Não falta uma instância de articulação entre as pessoas em assembleia nas ruas e as instituições da democracia representativa?
Eu me interessei muito pelos movimentos que costumam ser chamados de assembleístas como os Indignados, Occupy Wall Street e Nuit Debout porque se opunham à ideia de representação e levavam isto muito a sério, indo até o fim em suas demandas e, de certa forma, mostraram a impossibilidade de abrir mão da representação. Por exemplo, em uma assembleia de quatrocentas pessoas, o Nuit Debout chegou a uma posição e perguntaram-se: De quem é esta posição? É apenas das quatrocentas pessoas que estão reunidas aqui ou de todo o movimento Nuit Debut?
Para mim, a análise desses movimentos é apaixonante porque revelaram problemas elementares do funcionamento político. Em primeiro lugar, o da formação de um corpo político, pois para poder dizer que uma assembleia representa algo maior, em dado momento, é necessário que possamos definir o que é o mais amplo e esses movimentos nada mais eram do que uma sucessão de assembleias. As pessoas não tinham outro status a não ser o fato de estar presentes na praça.
A polarização é um problema das democracias atuais. A participação não pode ser uma forma de atenuar ou resolver este assunto? Muitos políticos de direita, incluindo o presidente argentino, estimulam a polarização a partir das redes sociais. Em um espaço comum, as pessoas poderiam resolver as suas diferenças de uma forma muito menos agressiva.
É verdade que o que as redes sociais mostram (agressividade, redução das pessoas à sua identidade, transformação de argumentos em slogans) se torna muito mais fácil quando alguém se dirige a pessoas que não está vendo. Minha tendência é pensar como você que se as pessoas estão copresentes, há uma possível inibição da agressividade. Os fenômenos da polarização são muito complicados e há muitos fatores que atuam ao mesmo tempo, então, é necessário se perguntar por que é que as pessoas entram na polarização, sobretudo os líderes.
No fundo, o que também conta é a ausência de pessoas que resistam ao discurso polarizador. Quando Emmanuel Macron se tornou candidato nas eleições presidenciais da França, chamou a atenção porque em seus atos partidários não queria que os seus adversários fossem destratados. Tinha a ideia de que na política o que se opõe são os argumentos. Isto durou apenas um momento, mas no início esta estratégia de despolarização foi vencedora.
Em ‘Un nouveau décisionnisme politique’, você questiona o trabalho teórico de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Esse esquema de polarização que eles utilizaram como um elemento político nos governos progressistas, hoje, foi capitalizado pela extrema direita, dando-lhe outro sentido?
Fiz uma crítica conceitual aos trabalhos de Laclau e Mouffe porque me parecia muito perigoso que utilizassem a oposição entre nós e eles para provocar uma mobilização social. O que eles teorizaram e transformaram em nobre, de certa forma, é simplesmente a velha tática do bode expiatório. Penso que é catastrófico porque é verdade que a política, em alguns momentos, tem a ver com o conflito e o estabelecimento de adversários políticos, mas, em definitivo, o problema do político é o nós, o conjunto do corpo político. Esta oposição entre nós e eles, que Mouffe toma emprestada de Carl Schmitt, era para este filósofo alemão a oposição entre amigo e inimigo, mas no início, para Schmitt, o inimigo estava fora da nação ou eram pessoas que se buscava expulsar.
É claro que Mouffe e Laclau nunca diriam isso, mas a lógica é a da exclusão. É normal que os dirigentes políticos ataquem os seus adversários, mas para reprová-los, não considerando a todos. Por outro lado, a oposição entre a elite ou a casta e o resto da população é um raciocínio que sempre pode ser utilizado, porque sempre há uma elite, e mobiliza uma lógica totalmente perigosa, pois não é de esquerda, nem de direita. O que podemos observar em vários países é que coisas que começaram como sendo de esquerda agora são de direita.
Em ‘A invenção da política cultural’, o conceito de democratização cultural de Malraux considera que as diferenças econômicas podem ser resolvidas por um acesso igualitário à cultura. Por que um Estado com tantas carências sociais, como acontece com a Argentina, deveria se ocupar em sustentar a produção cultural?
Nas sociedades desenvolvidas, o aspecto da distribuição social da educação é fundamental. Tomemos o exemplo dos Estados Unidos. Naquele país existem universidades que são a excelência da excelência do saber, para onde vão estudantes do mundo todo, com somas de dinheiro muito importantes que equivalem aos mosteiros da Idade Média, com os livros fundamentais que estão lá.
O sistema é simplesmente tal que as pessoas pobres têm pouca educação e aí florescem de forma incrível as teorias da conspiração, o que supõe um grau de ignorância e de incredulidade sem comparação. Penso que as instituições culturais não podem ser atacadas sem colocar a sociedade em risco.
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“Uma das características da democracia é que os cidadãos podem protestar”. Entrevista com Philippe Urfalino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU