13 Novembro 2024
"Diante de um mundo que retomou exponencialmente a capacidade de nos dobrar diariamente com trágicas notícias de ódio, guerras, genocídios e ecocídios, fome, êxodos sem esperança, pandemias, catástrofes das mudanças climáticas, é urgente a busca de palavras novas, evitando acompanhar o gosto insensato da modernidade, que não consegue conviver com coisas velhas e sempre se submete neuroticamente às modas efêmeras, janelas abertas diante do nada".
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A oitava tese sobre o conceito de história de Walter Benjamin [1] começa com uma afirmação, que sempre me interpela e me provoca: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' em que vivemos é na verdade a regra geral”.
Inevitável o imediato estalo na memória, em que ressoa o refrão de uma canção das CEBs dos anos 80. É a partir, não da filosofia, mas da vida, que os lavradores insurgentes travavam novas lutas por terra e reforma agrária e cantavam: “ninguém se engana, ninguém se engana que a nossa história já começou desumana”. Sempre souberam e continuam sabendo que a opressão e o conflito da atualidade não são uma exceção, porque para os oprimidos o “estado de exceção” sempre foi a regra geral da história.
Em suma, meditamos a Qoeleth – nome feminino mesmo! – que nos repete: “Não há novidades debaixo do sol”.
A ideologia dominante gestada pelo sistema capitalista e pelo seus lacaios nazifascistas ou pseudodemocratas continua ocultando esta verdade da história humana maquiando-a com a invencionice do progresso, contexto ilusório, em que eventos trágicos e extremos não passariam de assombrosas contradições dos processos virtuosos do desenvolvimento. Abafa-se e oculta-se o sofrimento das vítimas da história, desde a fundação do mundo.
Nos anos 50 e 60, este otimismo deletério contaminou não pouco a geração dos chamados baby boomers, sobretudo no hemisfério norte, e me arrisco em acenar à possibilidade que este clima de confiança no progresso, desenvolvimento e possibilidades de reformas influenciou a própria Igreja Católica nos anos do Concílio. Graças a Deus, o antidoto profético veio do hemisfério sul, com Medellín e as teologias da libertação.
Vislumbrando possibilidades revolucionárias, Benjamin nos repete: “Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade.”
Diante de um mundo que retomou exponencialmente a capacidade de nos dobrar diariamente com trágicas notícias de ódio, guerras, genocídios e ecocídios, fome, êxodos sem esperança, pandemias, catástrofes das mudanças climáticas, é urgente a busca de palavras novas, evitando acompanhar o gosto insensato da modernidade, que não consegue conviver com coisas velhas e sempre se submete neuroticamente às modas efêmeras, janelas abertas diante do nada.
Buscar palavras novas que possam traduzir em atitudes e gestos novos a Boa Notícia. Palavras que nascem e renascem no seio da Palavra: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Enfim, palavras e práticas fracas e impotentes, que não têm o poder de convencer, que não visam hegemonias ou o poder do estado. Palavras desarmadas e crucificadas, identificadas com as vítimas incontáveis deste nosso tempo. Palavras amorosas.
E não será uma cristandade reeditada a oferecer esta palavras novas, porque são as “minorias abraâmicas”, o “pequeno resto de Israel”, o “pequeno rebanho” de Lucas 12.32–34, que podem oferecer uma luz neste kairós, Apocalipse contemporânea também à nossa geração.
Nestes dias, me aconteceu algo novo e surpreendente, quando Etty Hillesum [2] irrompeu nos meus pensamentos. Ela impõe vigorosamente a sua presença com uma profecia, que ignorei por muito tempo. Com efeito, a sua biografia e a teologia não pareciam se afinar com o coral dos autores que confirmavam o meu desejo de enfrentar politicamente a maldade do mundo.
Parece que Etty encontrou o caminho procurado por Benjamin, mas foi além da mera, mas necessária, redefinição do conceito de história e além, também, da busca – que continua urgente - de palavras novas. Ela encontrou um método, um estilo espiritual inédito, para enfrentar os tempos apocalípticos da Shoah: a aceitação da coexistência da maldade e da beleza, da tragédia e da poesia. Na contramão da afirmação de Adorno que decreta que depois de Auschwitz não é mais possível dizer “Que belo!”, Etty Hillesum nos diz: “É no meio do inferno, é no teto em chamas que eu vou olhar para as flores, que eu vou cuidar de flores. É na latrina do campo de concentração que eu me vou ajoelhar e rezar, é na caserna mais imunda, mais sitiada pela dor que eu vou tratar das flores”. Escolheu não se salvar sozinha e mergulhou com o seu povo naquele inferno de aniquilação e extermínio. E naquele inferno não sentiu somente a necessidade de uma nova gramática: “Vou ter de achar uma linguagem nova”, e "gostaria de escrever palavras inseridas em um grande silêncio, e não palavras que existem para encobri-lo... Qualquer palavra aumenta os mal-entendidos nesta terra excessivamente falante.”, mas, em companhia do amoroso silêncio divino, viveu uma mística, que me surpreende pela sua novidade: uma mística mergulhada na materialidade do mundo, que contempla a beleza do mundo, sem fugir da corporeidade, sensibilidade e da própria sensualidade. Um universo interior livre, inatingível e invencível diante dos poderes do mundo. Ela escolhe a proximidade com os oprimidos e perseguidos, porque crê firmemente no poder salvífico do amor, aquele fragmento do coração de Deus, que habita no seu coração e pode transformar todos os corações. Uma escandalosa alegria num contexto trágico, em que ela escolhe a escuta e o cuidado dos sofredores. “Gostaria muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo”.
Etty não era ingênua e, tampouco, livre das dúvidas. Lembro um fragmento do diário em que ela descreve um dia trágico de deportações, no campo de Westerbork: “Se eu pensar nos rostos da escolta armada em uniforme verde, meu Deus, esses rostos! Eu os observei um por um, da minha posição escondida atrás de uma janela, nunca tive tanto medo quanto por aqueles rostos. Encontrei-me em apuros com a Palavra que é o tema fundamental da minha vida: "E Deus criou o homem à sua imagem". Esta Palavra viveu comigo uma manhã difícil.”
Precisamos voltar à meditação das palavras de Etty Hillesum e à imitação de suas atitudes. Pensamos, por exemplo, a profunda reflexão que nos oferece sobre os sobreviventes dos campos de concentração nazifascistas:
“Se salvarmos nossos corpos e nada mais dos campos de prisioneiros, onde quer que estejam, será muito pouco. (…) Se não pudermos oferecer ao mundo empobrecido do pós-guerra nada além de nossos corpos salvos a todo custo – e não um novo sentido das coisas, extraído dos poços mais profundos de nossa miséria e desespero – então não será suficiente.” (Cartas, 45)
Acredito que a sua experiência, forjada nas loucuras do século passado, tenha um papel fundamental e insubstituível na atualidade, em que assistimos impotentes à reproposição de ódios, guerras, genocídios e à insensatez que ameaça a continuidade da própria vida do planeta Terra.
[1] Benjamin Walter, Teses sobre o conceito de história: 8 “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.”
[2] Hillesum Etty, Uma vida interrompida, Belo Horizonte, Editora Âyiné, 2019.
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“Ninguém se engana, ninguém se engana que a nossa história já começou desumana”. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU