Por uma teologia da derrota. Artigo de Flávio Lazzarin

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28 Setembro 2024

"Seguir Jesus significa saber que o nosso destino é a derrota, porque quem vence na história está sempre condenado a repetir ciclos de guerra e morte". 

O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Segundo ele, "optar por uma teologia da derrota significa que Antígona, Zenão e Jesus testemunham uma opção fundamental idêntica? Meditando sobre a radicalidade que caracteriza as três biografias, certamente não podemos negar analogias profundas, mas Jesus, o Messias, leva incomparavelmente ao extremo o tema da morte como vitória, o tema da derrota da Cruz como Glória, o túmulo vazio como a impensável e indizível Ressurreição".

Eis o artigo. 

Estou refletindo sobre a história de Antígona, narrada por Sófocles e, disposto a acolher conexões inevitáveis, reencontro seu pai, Édipo, o Édipo de René Girard, que revela os limites trágicos desta personagem mitológica, numa comparação com Jesus de Nazaré. Édipo submete-se, de fato, à lógica sacrificial do poder e da sociedade e aceita como justo o veredito que o exclui de Tebas, enquanto Jesus não reconhece a legitimidade sacrificial dos poderes que o condenam à morte.

Jesus opõe-se radicalmente à lógica de Caifás e do Sinédrio: “É melhor que um só homem morra pelo povo” (Jo 18, 14). A solidariedade e o consenso social que se fundam no sangue das vítimas são condenados pelo condenado que inaugura uma nova forma de morrer, vivida como um protesto desarmado e amorosamente revolucionário contra os poderes religioso e político constitutivamente violentos e sanguinários.

Devemos certamente distinguir a violência dos estados dirigidos por ditaduras nazifascistas ou empresariais-militares, daquela dos estados inaugurados por revoluções, a jacobina e as mais recentes de matriz marxista-leninista. E é a distinção óbvia e necessária entre imperativos categóricos alternativos que inspiram a defesa armada de privilégios, racismo e opressão ou caminhos de justiça, direitos e solidariedade.

Na verdade, porém, o amor à justiça, religiosamente absolutizado, kantianamente categórico, se transforma em tragédia com a determinação férrea e tirânica dos Robespierre e Stalin. No fim, realmente parece que as motivações iniciais desaparecem e o que resta é a obediência cega ao imperativo categórico. A história do comunista tchecoslovaco Artur London narrada em um filme de 1970 dirigido por Costa-Gavras, "A Confissão", é exemplar. London, em 1951, durante os expurgos stalinistas, foi preso, torturado e forçado a confessar culpa e crimes que nunca havia cometido; inicialmente ele resistiu, mas depois escolheu, apesar de sua inocência, justificar ideologicamente seus acusadores para permanecer fiel à militância comunista.

Como não suspeitar da possibilidade de uma analogia com a obediência cega de Adolf Eichmann ao Führer que ordenou o extermínio dos judeus, narrada por Hannah Arendt, no livro A banalidade do mal, 1961.

São formas de lealdade a ideologias e personalidades autoritárias que expulsam a ética da política. E sabemos, se não persistirmos em iludir-nos e enganar-nos, que esta nossa história continua a repetir-se.

A partir da "morte de Deus" e da insustentabilidade filosófica e jurídica do poder do direito divino, a Revolução Francesa inaugurou uma sucessão de poderes legítimos, que, no entanto, surgiram todos de estados de exceção, de rupturas ilegítimas e violentas da ordem estabelecida. Parece-me, no entanto, que a evidência negativa mais contundente não é constituída pelo imbróglio jurídico, mas pela expulsão da ética do campo político: pela direita, que abandona os argumentos e escolhe a força bruta, e pela esquerda, que privilegia a dialética ou, em suas piores e, atualmente, mais frequentes atuações, o pragmatismo e o oportunismo.

E aqui finalmente reaparece Antígona, que há 25 séculos tenta nos revelar a poderosa e mortal ilegitimidade do poder político. Tebas é um exemplo da instabilidade do poder político, sujeito a sangrentas disputas familiares: Laio, Édipo, Etéocles e Polinices, Creonte... E dois irmãos lutarão entre si para conquistar o trono. Ambos morrem no confronto, mas Creonte, o novo soberano, decide privilegiar a memória de Etéocles e deixar o cadáver de Polinices para ser comido pelos abutres e sem os ritos fúnebres prescritos.

Em nome do Outro: Deuses, afetos fraternos, valores, ética... Antígona escolhe estar do lado da vida, opondo-se às decisões mortais do poder. Ela cuidará do corpo de seu irmão e, por sua desobediência, será perseguida e ameaçada de exílio e morte. No final, ela ficará com o suicídio como arma extrema na luta contra a injustiça.

E como não apagar da memória a história de Zenão, filósofo, cientista e alquimista, narrada no romance "A obra em negro" de Marguerite Yourcenar, 1968. Estamos na Bélgica, no século XVI, e Zenão, depois de anos de estudo, andanças nas cortes europeias e ameaças da Igreja, consegue esconder-se sob um nome falso vivendo, como médico, uma vida simples e escondida. Mas, no final, ele será descoberto e entregue ao tribunal da Inquisição. Na prisão, antes de ser executado na fogueira, como herege, Zenão tirará a própria vida, para arrancar dos inquisidores o poder injusto e ilegítimo de matá-lo.

E como esquecer o suicídio em massa dos mil zelotes e famílias judias, sitiadas pelas legiões romanas, na fortaleza de Massada, em 73. Eles escolheram a morte para privar o império agressor do poder de decidir seu destino.

Mesmo nesses casos, literários e históricos, a escolha de morrer é um ato extremo contra a injustiça e a arrogância das religiões e impérios.

Esta aceitação da inevitabilidade da morte, que se torna o último recurso desarmado na luta contra o poder político, recorda-nos mais uma vez Jesus de Nazaré e aqueles “que atravessaram a grande tribulação e lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 6, 14), os mártires, que o imitaram e seguiram na derrota da Sexta-Feira Santa.

Em suma, seguir Jesus significa saber que o nosso destino é a derrota, porque quem vence na história está sempre condenado a repetir ciclos de guerra e morte.

Pode surgir, então a dúvida sobre a possibilidade de uma abordagem cínica e desencantada, que exclui qualquer compromisso ao serviço da justiça e do bem comum, mas a vida pública de Jesus, testemunhada pelos quatro Evangelhos, fala-nos do seu projeto de fraternidade e da sua prática indignada e amorosa.

Optar por uma teologia da derrota significa que Antígona, Zenão e Jesus testemunham uma opção fundamental idêntica? Meditando sobre a radicalidade que caracteriza as três biografias, certamente não podemos negar analogias profundas, mas Jesus, o Messias, leva incomparavelmente ao extremo o tema da morte como vitória, o tema da derrota da Cruz como Glória, o túmulo vazio como a impensável e indizível Ressurreição.

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