08 Novembro 2024
Aquelas duas cadeiras de roda sob o sol de outono já são um ícone poderoso deste pontificado, mas o sorriso daqueles dois amigos em precárias condições físicas esconde uma esperança fantástica.
O artigo é de Filippo Ceccarelli, jornalista e escritor italiano, publicado por La Repubblica, 06-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pois bem, a Igreja, instituição milenar, tem em estoque inesperados e inspirados recursos de audácia. Quem crê, pode atribuí-los justamente à obra do Espirito que, como o vento, sopra onde menos se espera. Mas mesmo quem não crê pode reconhecer o sentido elevado de gestos que constroem pontes entre mundos ainda muito distantes.
No mundo laico, precisamente, Emma Bonino é uma das figuras mais dignas por sua retidão moral e coerência civil. Por isso, quando o Papa Bergoglio - também nisso cada vez mais parecido com João XXIII - foi visitá-la ontem em sua casa, encontrou-se diante da mulher que, muitos anos atrás, apareceu na capa de uma revista, a ABC, enquanto fazia um aborto em uma mesa, uma imagem terrivelmente crua que, na época, também tinha o objetivo de promover o método Karman contra o massacre dos “abortos clandestinos”.
Papa Francisco e Emma Bonino (Foto: Reprodução | Instagram)
Talvez Francisco não soubesse disso, assim como talvez não soubesse que Bonino ocasionalmente praguejava como Pietro Nenni, que soltou uma blasfêmia ao tropeçar em um tapete no Vaticano. Em tempos mais recentes - há um vídeo no YouTube - durante um confronto acalorado com Capezzone, Bonino deixou escapar um palavrão que fez trincar as janelas da Torre Argentina.
No entanto, os gestos de fé são simples, não levam em conta hábitos pessoais, e muito sugere que Francisco, como o Papa Roncalli em seu tempo, não só sabe distinguir o erro de quem erra, mas também considera Bonino, defensora intransigente da eutanásia, muito mais próxima de Deus do que tantos beija-mãos e falsos devotos.
Essa não é a primeira vez que deixa isso claro. Durante muito tempo, no mundo eclesiástico, as pessoas se perguntavam se Marco Pannella era um endemoniado ou o próprio diabo. Embora rindo, ele se orgulhava disso, contando atribuições, fontes, evidências teológicas (incluindo o fato de que durante um jejum ele havia bebido a própria urina), optando naturalmente pelo status de arquidiabo. Não faltaram encontros e até mesmo uma simpatia mútua com Wojtyla. Mas Bergoglio foi muito além e, em meio a uma greve de fome pelos detentos, quis telefonar para o líder octogenário que havia introduzido o divórcio e o aborto na Itália. Naquela ocasião, ele não lhe pediu para interromper o jejum, mas lhe ofereceu amizade.
“Agora é um bom momento na vida da Igreja”, explicou certa vez o Papa Francisco, lembrando que, quando ele era criança, os católicos não tinham permissão para se encontrar com ateus, socialistas ou pessoas não casadas na igreja: agora, ‘graças a Deus’, disse ele, não é mais assim. Na primavera de 2016, quando Francisco foi visitar os refugiados na ilha de Lesbos, algumas semanas antes de sua morte, Pannella quis lhe escrever uma carta que terminava, em letras maiúsculas: “com o meu carinho”. No dia de seu último aniversário, o Papa lhe respondeu com um de seus livros, uma Nossa Senhora e o acompanhamento de Dom Vincenzo Paglia. Ninguém falou de conversão, o que prova que, em certos casos, não há necessidade.
Até mesmo Giorgio Napolitano, que, como comunista italiano e togliattiano, nunca foi anticlerical, viveu o contato humano do Papa Bergoglio muito além do papel institucional exercido no Quirinale, o que provavelmente levou o pontífice a prestar suas últimas homenagens na câmara funerária, num gesto totalmente inédito.
Por fim, Eugenio Scalfari, que certamente não era comunista nem suspeito de ser um demônio, mas que para boa parte da Igreja e do Vaticano representava o adversário cultural que, a partir de Voltaire, como iguais, havia confrontado as certezas daquele poder temporal que tanto condicionou a história da Itália. Muito se escreveu sobre isso, mas, mesmo nesse caso, prevaleceu a graça simples e inesperada de um encontro que, não só na redação, despertou mais incredulidade que espanto. Na coletânea 100 volte Scalfari, de Simone Viola, lemos o testemunho da secretária do Repubblica, que recebeu o primeiro telefonema: “Sim, era o Papa, nos vemos na sexta-feira”, respondeu o diretor despreocupadamente, como se fosse normal. “Diretor, isso não é uma coisa normal”. E Scalfari sorriu. Por outro lado, lemos no mesmo texto que o padre Paglia também teve de assegurar ao diretor que não se tratava de uma brincadeira: “A partir daí, começou uma temporada muito profícua de encontros”.
Entre homens, mulheres, papas e leigos, as coisas que importam, afinal, são as mesmas.