22 Outubro 2024
"As classificações sociais são úteis para estudos sociológicos, mas não devem ser o critério para dialogarmos com pessoas que, mesmo sendo de diferentes visões culturais. O mais importante é a capacidade ou não de ter sensibilidade com pessoas que sofrem. Essa capacidade de dialogar com aqueles que não são da opção político-cultural por causa do sofrimento dos pequenos deveria ser uma marca do cristianismo de libertação", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Eu terminei o último artigo perguntando: “O que é ser do ‘cristianismo de libertação’? Estar no caminho da solidariedade para com os que sofrem ou ter ‘consciência político-teológica’ correta?” Eu quero retomar essa questão, que me parece ser fundamental para essa série de artigos que estou escrevendo sobre a pedagogia e o cristianismo de libertação.
A noção de “cristianismo de libertação”, se não estou equivocado, foi proposto pelo Michael Löwy no seu livro A guerra dos deuses: religião e política na América Latina (em português em 2000, Ed. Vozes; em inglês, 1996). Para Löwy, “o cristianismo de libertação latino-americana não é apenas uma continuação do anticapitalismo tradicional da Igreja (católica) [...]. Ele é basicamente a criação de uma nova cultura religiosa, que expressa as condições específicas da América Latina: capitalismo dependente, pobreza em massa, violência institucionalizada, religiosidade popular”. (p. 53-54) Ele propôs esse conceito “por ser esse um conceito mais amplo que ‘teologia’ ou que ‘Igreja’ e incluir tanto a cultura religiosa e a rede social, quanto a fé e a prática.” (p. 57) E eu penso que esse conceito é ainda muito útil, não somente como um conceito de análise sociológica, mas também como uma referência para pessoas e grupos que querem continuar essa tradição cristã de luta contra a exploração capitalista em nome da fé cristã.
Por isso, a pergunta que apresentei no início deste artigo não é “o que é o cristianismo de libertação?”, mas “o que é ser do cristianismo de libertação?” Essa pergunta, além da definição e os limites desse movimento – ruto de uma análise “objetiva” de um objeto, típico das ciências do social do mundo moderno –, exige uma resposta que implica uma dimensão de sujeitos, daqueles que agem e se comprometem com os objetivos ou com aquilo que esse grupo entende como sua missão. Nesse sentido, a noção de “ser” da pergunta “o que é ser do cristianismo de libertação” não se refere tanto ao caráter “objetivo” ou substantivo do ser, isto é, aquilo que descreve algo dado, um ente, mas o lado “verbo”, agir, do “ser”.
Como sociólogo, Löwy descreve e analisa, com muita competência, o movimento do cristianismo de libertação; as diferenças com outros grupos religiosos e políticos e, como engajado nas lutas de libertação contra a exploração capitalista, ele também analisa o potencial transformador desse movimento. Porém, como cientista social, ele e outros pensam e analisam esse “objeto” desde fora; isto é, na relação sujeito-objeto estabelecido pela razão moderna o sujeito deve manter uma “distância epistemológica” segura e olha-lo desde fora.
A distância epistemológica é fundamental na busca da verdade sobre o objeto de estudo. Mas, quando as pessoas que se perguntam, ou melhor, quando nós nos perguntamos sobre “o que é sermos do cristianismo de libertação” ou “como podemos melhorar as nossas estratégias e ações enquanto um movimento de libertação em nome da fé cristã”, os métodos das ciências sociais ou mesmo da filosofia e teologia moderna/contemporânea não dá conta.
O método das ciências sociais aplicados no campo da teologia da libertação nos ajuda a entender e classificar os tipos de grupos sociais e religiosos. Assim, podemos afirmar que o cristianismo de libertação se caracteriza por sua teologia na linha da libertação, com análises críticas do capitalismo, do patriarcado, machismo, racismo etc. Contudo, essas análises não nos dão conta de pessoas e grupos que, mesmo sem ter tido acesso às teorias sociais e teológicas que explicam o sistema de opressão atual, são sensíveis aos sofrimentos dos pobres e outras formas vítimas e querem fazer algo “libertador” em nome da sua fé cristã. É claro que essas pessoas vão usar discursos e ações que são diferentes daquilo que sociologicamente se descreve como de cristianismo de libertação.
Por outro lado, conhecemos pessoas cristãs que conhecem e gostam dos discursos teológicas da libertação, mas não tem paciência ou sensibilidade para compreender e dialogar com outras pessoas que pertenceram ou pertencem ainda a uma cultura, que podemos chamar de “conservadora”, e têm sensibilidade social para com os pobres e querem ou fazem algo que podemos chamar de libertador (no artigo anterior discuti o tema do assistencialismo, reformismo e libertador).
No mundo de hoje, incluindo as nossas igrejas e comunidades cristãs, o mais importante não é a verdade, mas os rótulos que se colocam sobre outros. Como diz Jesus, entre nós deveríamos ser diferentes. Mais importante do que os rótulos, incluindo o de “cristianismo de libertação”, deveríamos discernir o espírito que move as pessoas e grupos e ver se são/somos capazes ou não de ver e ouvir os clamores dos que sofrem.
As classificações sociais são úteis para estudos sociológicos, mas não devem ser o critério para dialogarmos com pessoas que, mesmo sendo de diferentes visões culturais. O mais importante é a capacidade ou não de ter sensibilidade com pessoas que sofrem. Essa capacidade de dialogar com aqueles que não são da opção político-cultural por causa do sofrimento dos pequenos deveria ser uma marca do cristianismo de libertação.
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Uma marca teológica do cristianismo de libertação. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU