03 Outubro 2024
O sociólogo Marcelo Kunrath analisa os possíveis motivos para a enchente histórica não ser tão decisiva no voto do eleitor de Porto Alegre.
O governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) é desaprovado por 61% dos eleitores de Porto Alegre, segundo pesquisa Atlas Intel divulgada no última dia 26 de setembro. Em nova pesquisa do mesmo instituto, do dia 30 de setembro, a desaprovação ao atual prefeito baixou um pouco para 56%, ainda assim, representando mais da metade do público consultado. Todavia, apesar da alta rejeição, Melo aparece na liderança das pesquisas de intenção de voto feitas pela Atlas Intel e outros institutos.
A aparente contradição tem chamado a atenção de pesquisadores e analistas políticos, principalmente após a trágica enchente de maio que inundou a Capital. Embora o prefeito adote a estratégia de se eximir de culpa e transferir responsabilidades, são muitas as evidências de que a magnitude da enchente foi possível devido a uma série de erros e omissões da Prefeitura na manutenção do sistema de proteção contra cheias da cidade.
Se mais da metade dos eleitores pesquisados rejeitam o governo Melo, então o que pode explicar sua liderança nas intenções de voto ao longo do primeiro turno da campanha eleitoral?
Para Marcelo Kunrath Silva, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não existe uma única explicação e, sim, uma série de fatores que podem levar à compreensão desse fenômeno eleitoral. “Em todos os critérios de avaliação de políticas públicas, a Prefeitura é mal avaliada. Então a gente também tem que pensar no voto no Melo, não como um voto no Melo, mas como um voto contra alguma coisa”, sugere, em entrevista exclusiva ao Sul21.
O professor analisa o movimento do eleitor de Porto Alegre no contexto mais amplo da política brasileira, o que inclui a consolidação dos partidos de direita junto à população evangélica – e a dificuldade da esquerda em se aproximar desse público –, o crescimento e a organização de entidades empresariais dispostas a disputar uma visão de mundo conservadora, além do antigo sentimento antipetista presente na política brasileira desde a redemocratização. Neste cenário, nem mesmo as falhas que causaram a enchente ou a emergência climática podem ser suficientes para virar o jogo da disputa eleitoral.
“A gente ainda não conseguiu avaliar, de uma forma qualificada, as pautas morais mais recentes, da sexualidade, de gênero, e como isso se ancorou na sociedade brasileira e está hoje enraizado. É um negócio muito poderoso e há uma dificuldade de entender essa dimensão moral. É um ponto que nos permite compreender esse paradoxo: o prefeito é mal avaliado, mas continua liderando a corrida eleitoral”, reflete Kunrath.
A entrevista com Marcelo Kunrath é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 02-10-2024.
Como o senhor analisa o momento do eleitor de Porto Alegre e a aparente desconexão entre a tragédia da enchente em maio e a intenção de voto?
Esse é um enigma que muita gente tem refletido sobre a dificuldade de entender o que parece um paradoxo: um desastre da dimensão que teve não está produzindo efeito do ponto de vista do processo eleitoral. Tem várias coisas que se articulam para gerar esse resultado. Um ponto é o reconhecimento das mudanças climáticas como um problema público e político que pode e deve ser enfrentado pelos governantes, porque tudo depende de uma certa atribuição de quem é o responsável ou quem é o causador. Tem uma parte da sociedade brasileira e gaúcha, depois das enchentes, pra quem a mudança climática é um fato e não mais uma hipótese. Agora, o quê a sociedade está entendendo desse fato e das responsabilidades vai definir como se colocar perante ele. Há uma dificuldade de construir isso como algo que está relacionado às escolhas, prioridades e decisões dos governantes.
O senhor acha que a dificuldade de fazer relações de causa e efeito, como a mudança no Parque Harmonia ou o incentivo a construções na Orla do Guaíba, está presente no eleitor?
Acho que sim. A gente pensa na mudança climática como um processo de dimensão global e isso traz um nível de complexidade. Estabelecer relação entre o que está acontecendo na Amazônia e o que está acontecendo no Rio Grande do Sul exige uma quantidade de informações que é um processo difícil, ainda mais com toda a disputa de narrativas e discursos que atravessa esse processo. É um desafio pensar em como politizar uma discussão sobre um tema central, mas que, para a sociedade, é um debate difícil de ser feito. Tem uma música do Zeca Baleiro em que ele fala que “pior que o fim do mundo, é o fim do mês”.
Para uma parte da sociedade, o horizonte é a vida cotidiana, o limite é o dia de hoje. Lidar com a emergência climática coloca o desafio de pensar num prazo mais alargado e isso exige um olhar amplo. As pessoas não fazem isso por falta de capacidade, é porque estão lidando com a vida cotidiana mesmo, têm que pensar em comer. Isso para as pessoas é o problema, como conseguir um atendimento na saúde, questões como a moradia, a alimentação, o transporte. Não que elas não tenham capacidade de se preocupar com outras coisas, mas isso absorve todo o tempo e energia que as pessoas têm.
Na questão da saúde, recentemente tivemos aumento nas internações por problemas respiratórios causados pela fumaça das queimadas. Mesmo assim, a relação do problema ambiental com a saúde é difícil de ser feita?
Esses dois processos, enchentes e fumaça, afetam diretamente a vida das pessoas, não é mais uma abstração. Agora, há que se questionar a dificuldade do campo político progressista de conseguir construir isso de forma que seja compreensível e que leve as pessoas a outras escolhas. Vendo a pesquisa da Atlas Intel, o que a gente observa é que o Sebastião Melo, fora para grupos muito específicos, é um péssimo prefeito. A desaprovação do governo Melo é de 61%. Em todos os critérios de avaliação de políticas públicas, a Prefeitura é mal avaliada. Então a gente também tem que pensar no voto no Melo, não como um voto no Melo, mas como um voto contra alguma coisa.
Ou seja, uma parcela majoritária da população de Porto Alegre desaprova o governo Melo, mas uma parte dessa população que desaprova está disposta a reconduzir o Melo porque não vê alternativa. Esse é um ponto fundamental, entender que essa declaração de intenção de voto não é necessariamente um sinal de aprovação ou de concordância. Ao contrário, majoritariamente o governo Melo é mal avaliado. Então por que não vota nas alternativas disponíveis? Talvez porque também não veja uma alternativa confiável. Pegando a pesquisa Atlas Intel, é a consolidação do eleitorado antipetista em Porto Alegre. O maior preditor de quem vai votar no Melo é se o eleitor votou no Onix (Lorenzoni) ou votou no Bolsonaro. Quem votou no Bolsonaro, quase 100% vota no Melo, é a consolidação desse eleitorado que vai aceitar qualquer opção que não seja a opção à esquerda.
A direita hoje tem orgulho de defender suas ideias, ao contrário do que se via nos anos de 1990, logo após a redemocratização, quando os efeitos da ditadura ainda estavam muito presentes. Isso pode explicar o movimento de parte do eleitorado?
Tem toda relação. Alguns autores têm publicações interessantes em que dizem que a política no Brasil, desde a redemocratização, é estruturada em torno de petismo e antipetismo, com o petismo transcendendo o PT. O argumento deles é que isso estrutura a política brasileira. Agora, há uma radicalização, mas continua, em certa medida, estruturada em torno desse polo. O PT sobreviveu ao impeachment e à demonização em torno da corrupção e continua sendo o eixo estruturante da disputa política no Brasil. Essa radicalização à direita traz características novas, mas o polo opositor ainda é aquele expresso pelo petismo. É uma política estruturada na oposição a algo, e não em torno da defesa de algo. Isso cria uma dinâmica em que tudo é aceitável, desde que seja contra.
E a gente ainda não conseguiu avaliar, de uma forma qualificada, as pautas morais mais recentes, da sexualidade, de gênero, e como isso se ancorou na sociedade brasileira e está hoje enraizado. É um negócio muito poderoso e há uma dificuldade de entender essa dimensão moral. É um ponto que nos permite compreender esse paradoxo: o prefeito é mal avaliado, mas continua liderando a corrida eleitoral.
Como o senhor avalia o surgimento e o fortalecimento de entidades empresariais de direita, como o Instituto Cultural Floresta, Instituto Ling, Instituto Millenium, entre outros, no novo arranjo da política brasileira?
Desde o início dos anos 2000, depois que o Lula ganhou a presidência, há uma reestruturação do campo do ativismo empresarial, com um forte investimento na disputa ideológica e cultural. Sempre houve, mas nesse momento houve uma renovação e algumas mudanças, como o fato de intervir nos espaços. É um trabalho profissionalizado e que tem demonstrado, com muito recurso, uma capacidade de influenciar a opinião pública e construir certas disputas e conflitos super eficientes. A própria questão de contrapor o tema ambiental ao desenvolvimento, que é central no discurso do agronegócio, parece que o tempo todo temos que fazer uma escolha entre preservação e desenvolvimento. Esse pessoal tem trabalhado muito e, aqui em Porto Alegre, há um investimento mais recente, mas muito forte, inserido em vários espaços e financiando muitas coisas.
Tem outro patamar, que é o caso da produtora Brasil Paralelo, fazendo produção de conteúdo de massa, obviamente porque tem muito recurso. Há um estudo sobre os principais anunciantes no Facebook brasileiro e em primeiro lugar está o Brasil Paralelo. Certamente essa posição não é só para vender assinaturas do streaming deles, é recurso que está vindo de algum lugar. Temos que reconhecer que é um negócio super profissional, com muito recurso para impulsionar e aproveitar toda a potência da lógica algorítmica. Esse pessoal veio para ficar e, aqui em Porto Alegre, há uma nova geração empresarial com postura muito mais agressiva e protagonista, ocupando espaços e fazendo intervenção política e disputa ideológica. Não é só uma defesa de interesse econômico, eles estão disputando uma visão de mundo.
O pessoal do Instituto Cultural Floresta é isso. A gente costuma pensar a ação empresarial em termos do cálculo do custo e ganho econômico, mas só por isso, não conseguimos entender por que eles deram um golpe, porque estavam ganhando muito dinheiro. Tem uma dimensão ideológica e da disputa cultural que eles estão aí para fazer mesmo. Vai ser preciso construir estratégias de enfrentamento cultural na sociedade, que uma parte do campo da esquerda parece ter aberto mão, de disputar os corações e mentes da sociedade nos temas da disputa política. E esses setores têm sido muito hábeis em construir apoio entre segmentos que poderiam apoiar um projeto muito mais progressista.
As redes sociais cumprem um papel decisivo para que essa disputa ocorra?
De um lado, sim, há uma capacidade de utilizar a infraestrutura tecnológica, mas há outro lado que é como, em grande parte, essa eficácia da rede mediada pela tecnologia funciona porque existe uma rede capilarizada de organizações no âmbito da sociedade. No caso da direita, é, em grande medida, essa rede de organizações religiosas. A gente não pode esquecer que a construção de todo um campo político à esquerda também veio de uma vinculação muito forte com a religião, que era o pessoal da Teologia da Libertação.
Só que para a própria massificação dessa direita, ela tem que colar o seu liberalismo econômico num conservadorismo moral. E tem feito isso de forma bastante eficaz, como é o discurso do “liberal na economia e conservador nos costumes”. É um uso estratégico desses setores que permite dialogar com a população religiosa que, em parte, não é necessariamente liberal na economia. Têm pesquisas que mostram que o campo evangélico demanda políticas sociais, quer Estado, é uma população pobre, trabalhadora e que depende de políticas públicas para sobreviver.
Mas há uma dificuldade no campo da esquerda de lidar com a dimensão religiosa, que é estrutural num país como o Brasil. Ou seja, em nome da defesa do Estado laico, acaba jogando no colo da direita a questão da religiosidade. Na minha avaliação, é onde está passando e vai passar o centro da disputa. É onde o jogo está sendo entregue.
A ideologia liberal tomou conta do imaginário popular?
A grande força mobilizadora do campo popular sempre foi a religiosidade. O discurso da esquerda laica, mais europeizado, nunca foi popular no Brasil, e a esquerda se populariza na redemocratização exatamente pela tradução que o pessoal da Teologia da Libertação faz.
Agora estou pesquisando como esse pessoal conservador está mobilizando isso e como o campo evangélico progressista tenta também fazer o mesmo, só que apanha dos progressistas e apanha também dos evangélicos. Há um dilema na construção de um espaço que os políticos religiosos à direita não têm. Silas Malafaia e Nicolas Ferreira são brilhantes na forma como constroem o discurso para quem tem essa crença religiosa. Para quem não tem, é bobagem, mas para quem tem, faz todo sentido.
É um debate que vai ter que ser encarado com mais profundidade. Não fico convencido da conquista do imaginário popular por uma ideologia liberal. A grande massificação da direita é por uma ideologia conservadora ligada à questão religiosa, conservadora em coisas muito específicas. Não é um conservadorismo generalizado ideológico, é um conservadorismo de alguns elementos, como a captura da questão da “família” pela direita.
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Enigma da eleição: ‘O desastre da enchente não está produzindo efeito no processo eleitoral’. Entrevista com Marcelo Kunrath - Instituto Humanitas Unisinos - IHU