30 Mai 2024
"Na última semana, o clima de catastrofismo voltou à cena política. Velha mídia alardeia 'irresponsabilidade fiscal' do governo, a partir de falsos consensos. O objetivo: fazer cumprir o arcabouço, uma bomba-relógio que ameaça a Saúde, Educação e Previdência", escreve Paulo Kliass, doutor em Economia e membro da carreira de especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, em artigo publicado por Outras Palavras, 29-05-2024.
A campanha orquestrada pela nata de nossas elites financeiras contra qualquer medida de apoio a políticas públicas dirigidas à maioria da população brasileira teve início antes mesmo da votação e promulgação de nossa nova Constituição em 1988. Em julho daquele ano, o presidente da República, José Sarney, foi à televisão alertar que o Brasil se transformaria em um país “ingovernável” caso o projeto da nova Carta fosse aprovado pelos constituintes. Essa estratégia de criar um ante clima do apocalipse se manteve ao longo de todo o período até os dias de hoje. Mas o fato é que meses depois daquela ameaça, o texto foi aprovado por uma ampla maioria. À época ele dizia que os riscos envolviam uma
(…) “brutal explosão dos gastos públicos” (…)
A realidade é que o nosso país adotava um conjunto de regras para o futuro de suas gerações, um horizonte que se abria com o fim da ditadura militar, com a adoção de propostas que iam na contramão das recomendações que o paradigma do Consenso de Washington espalhava pelo resto do mundo. Enquanto a regra geral era aquela do Estado mínimo, por aqui a nova Constituição apontava para um modelo um pouco inspirado nas experiências do Estado de Bem Estar Social dos países europeus. Assim, o texto não estabelecia nenhuma prioridade para processos de privatização de empresas estatais. Aliás, pelo contrário, os dispositivos apontavam para a necessidade da presença pública em setores estratégicos e para a oferta de serviços sociais básicos pelo governo. Esse é o caso da educação, da saúde e da previdência social, dentre tantos outros.
Apesar da aprovação do documento, as tentativas para sua revisão e alteração nunca mais saíram da agenda do conservadorismo liderado pelo capital financeiro. O Brasil atravessou todas as décadas de hegemonia do neoliberalismo e sofreu as consequências de tais proposições. Assim foram os processos de privatização ocorridos ao longo da década de 1990 e a generalização das ideias de liberalização de toda a ordem. No que se refere à introdução do espírito da austeridade fiscal a todo o custo, tivemos a aprovação da Lei Complementar de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000 e o posterior teto de gastos em 2016. Este último implicou a inusitada introdução do espírito da austeridade fiscal na própria Constituição, por meio da Emenda Constitucional (EC) 95.
A estratégia para o momento atual envolve a combinação do reforço da suposta inevitabilidade da austeridade fiscal com a necessidade de redução do espaço do setor público na oferta de serviços para o conjunto da sociedade. Assim, tal como alertado por todos os economistas do campo progressista, o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) começa por apresentar sua fatura. O modelo foi colocado em movimento por meio da Lei Complementar nº 200/2023, aprovada pelo Congresso Nacional com base em um projeto elaborado pelo ministro Haddad de depois de consultas e negociações junto ao presidente do Banco Central (BC) e mais meia dúzia de banqueiros privados. O espírito da austeridade fiscal se manteve, em uma versão mais light, se comparada ao teor draconiano do teto de gastos de Temer.
Como o modelo segue montado na diretriz de promover equilíbrio nas contas governamentais com base na contenção de despesas, o arcabouço continha em seu interior uma espécie de bomba de efeito retardado, uma vez que a existência de salvaguardas constitucionais para determinados grupos de gastos orçamentários promoveria o esmagamento dos demais. Ocorre que a luz vermelha começou a piscar bem antes do previsto. O novo regramento não chegou a completar nem mesmo um ano de existência e as vozes do conservadorismo retomaram seus ataques de forma mais virulenta. A intenção do momento é eliminar as garantias de pisos constitucionais atrelados à arrecadação tributária e reduzir o impacto do gasto previdenciário.
Isso significa colocar em prática o sonho não realizado de Henrique Meirelles, Paulo Guedes e do conjunto dos agentes operadores do financismo. Desconstitucionalizar, desindexar e desvincular as chamadas “despesas obrigatórias”. As mais cobiçadas pela turma da finança são a saúde, a educação e a previdência social. Afinal, com esse movimento eles alcançam dois objetivos: i) reduzem as despesas púbicas, alcançando o sacrossanto superávit primário; e ii) abrem espaço para ampliar a participação do capital privado na oferta deste tipo de serviço público.
Mas o inusitado é que tal mudança esteja ocorrendo durante um governo do Partido dos Trabalhadores (PT), ao longo do terceiro mandato de Lula. Tudo começou com as nada singelas manifestações de secretários nacionais da área econômica, alertando para a necessidade de retirar os pisos constitucionais de saúde e de educação. Em seguida, os titulares das pastas também reforçaram o coro de destruição das políticas públicas essenciais. Tanto Fernando Haddad quanto Simone Tebet se manifestavam a favor da desvinculação dos benefícios previdenciários em relação ao valor do salário mínimo. Uma loucura!
Pois ao longo do último fim de semana, o ataque do financismo por meio dos jornais, revistas, redes da internet, rádio e televisão foi ainda mais reforçado. A estratégia envolve ganhar o apoio da opinião pública para as medidas “duras” e isolar politicamente Lula e qualquer capacidade de resistência dos setores progressistas. O clima de catastrofismo volta à cena política, alertando para um apocalipse caso nada seja feito para conter a gastança, os rombos e a dita irresponsabilidade fiscal. O precipício estaria logo ali na frente e o governo nada faz para impedir que tudo exploda. O caminho para esse pessoal seria o de criar uma espécie de falsa unanimidade construída em torno da necessidade de mais um desastre austericida.
Os grandes meios de comunicação não economizaram em suas baterias de ataque ao longo dos últimos dias:
(…) “despesas obrigatórias vão anular espaço para gastos ou ampliar déficit” (…) [Folha/UOL]
(…) “o peso das vinculações de despesas no problema fiscal do país” (…) [Valor Econômico/Globo]
(…) “pisos de saúde e educação vão consumir todo o espaço das despesas não obrigatórias até 2028” (…) – [Estadão]
(…) “a cruzada solitária de Fernando Haddad e Simone Tebet” (…) [Veja]
(…) “Regras automáticas de crescimento de despesas tornam mais difícil ajuste fiscal” (…) [Isto É]
E dá-lhe abrir espaço para entrevistas e declarações de supostos “especialistas” em assuntos de política fiscal e de economia em geral. No entanto, como costuma acontecer, o viés da escolha recai apenas e tão somente sobre banqueiros, diretores de instituições financeiras e ex-ocupantes de cargos no governo federal indicados pela nata do financismo. Nesse assunto e neste momento, os grandes meios de comunicação não abrem espaço para o contraditório e para opiniões de analistas que tenham uma visão divergente a respeito do diagnóstico e das propostas para superar as dificuldades existentes.
Trata-se de uma verdadeira operação de guerra – uma autêntica blitzkrieg – com o objetivo de destruir todo e qualquer obstáculo que se coloque à frente da máquina destruidora dos direitos sociais e asfixiadora das opiniões que pretendam questionar o pensamento hegemônico, ainda herdeiro do defunto paradigma neoliberal. A atual avalanche de posicionamentos de mesma natureza aqui no Brasil lembra muito o início da construção de um aparente consenso a respeito do modelo que viria a substituir as propostas de Estado de Bem Estar Social e as opções de política econômica que incorporassem a presença do setor público.
A partir de alguns polos do pensamento acadêmico nas universidades norte-americanas e com o apoio institucional dos organismos multilaterais (a exemplo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial), consolidou-se a ideia de que não haveria alternativa a esse movimento hiper conservador. Era o momento de Ronald Reagan nos EUA e de Margareth Tatcher no Reino Unido, ao passo em que a palavra de ordem era traduzida pelo acrônimo TINA – do inglês, “There is no alternative”. Ocorre que, depois de quatro décadas, o mundo se transformou e o Brasil segue sendo um dos poucos países onde o establishment do financismo se mantém ativo como órfão de um sistema que se apresenta em decomposição pelo resto do mundo.
Infelizmente os atuais ocupantes do Ministério da Fazenda e do Planejamento continuam rezam pela cartilha ultrapassada. Insistem na estratégia do austericídio e não têm nenhuma vergonha ou prurido em sugerir a destruição de conquistas sociais relevantes, que estão expressas por garantias constitucionais para saúde, educação e previdência social. Com a operação em curso promovida pela elite do sistema financeiro, é fundamental que o presidente Lula estabeleça os limites de seu governo. Ele precisa se manifestar de forma urgente, antes que uma nova suposta unanimidade seja construída socialmente em torno da inexorabilidade de mais um ajuste estrutural conservador.
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A nova blitzkrieg do financismo. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU