28 Fevereiro 2024
"Sem novos financiamentos as operações ficarão gravemente comprometidas a partir de março. Falta uma semana. Enquanto isso, em Gaza, uma em cada quatro pessoas morre de fome", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 26-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Gaza, segundo estimativas das Nações Unidas, uma em cada quatro pessoas morre de fome, em algumas áreas nove em cada dez famílias passam um dia e uma noite sem comida. Os apelos para tratar dessa catástrofe humanitária não são de hoje nem de ontem.
Já duram há meses: em dezembro, um relatório da Integrated Food Security Phase Classification previa que até o final deste mês toda a população da Faixa teria que enfrentar níveis de crise de insegurança alimentar aguda, com pelo menos uma em cada quatro famílias próxima a condições de carestia. É diante desses números que a UNRWA, a agência das Nações Unidas responsável pelos assuntos palestinos, declarou que teve que suspender a ajuda ao norte de Gaza pelo "colapso da ordem", uma fórmula para indicar que o desespero das pessoas que necessitam de alimentos, está tornando inseguras as viagens para o norte da Faixa. Aqui estão os fatos mais recente: há um mês, as Nações Unidas deram o alarme sobre "bolsões de fome em Gaza" com uma concentração particularmente aguda no norte, e em dois meses a situação piorou, como o desespero de quem não come, não sabe como conseguir comida para os filhos e por isso assalta os (poucos) caminhões que passam com as ajudas.
Tamara Alrifai, diretora de relações externas da UNRWA, disse que “o comportamento desesperado das pessoas famintas e exaustas está impedindo a passagem segura e regular dos nossos caminhões. Não estou culpando as pessoas nem descrevendo essas coisas como atos criminosos, estou dizendo que o fato de terem parado os nossos caminhões já não permite a realização de operações humanitárias adequadas".
Após o ataque do Hamas em 7 de outubro, o Ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, ordenou um cerco completo à Faixa: “Não haverá eletricidade, nem comida nem combustível. Tudo está fechado", disse ele. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, dez dias depois defendeu que ninguém “deveria entrar em Gaza enquanto os reféns israelenses estivessem em mãos do Hamas”. Em 21 de outubro, Israel começou a conceder acesso a uma pequena quantidade de ajudas, mas desde então todas as organizações humanitárias e alguns dos especialistas legais que observam e estudam a situação na Faixa de Gaza, denunciam não só que a situação já está - como todo mundo pode ver – desesperada, mas que a fome, na guerra de Gaza, é utilizada como arma.
Crianças palestinas esperam na fila para receber comida preparada por voluntários para as famílias palestinas (Foto: Abed Rahim Khatib | Anadolu Agency)
Impedir o acesso a bens de primeira necessidade, numa guerra, é uma violação do direito internacional que as autoridades israelenses desconsideram. Entrevistado em dezembro pelo Time, o coronel Elad Goren, chefe do departamento civil do Cogat, a agência israelense que facilita as ajudas em Gaza, disse que a “narrativa do bloqueio é completamente falsa”. Segundo Goren, Israel fornece 28 milhões de litros de água por dia, permitiu o acesso a 126 mil toneladas de ajudas e aumentou o número de caminhões que podem entre na Faixa. “De acordo com a nossa avaliação, com base em conversas com as Nações Unidas e outras agências humanitárias, há uma quantidade suficiente de alimentos em Gaza e continuamos a pressionar as agências humanitárias a recolher mais caminhões nas fronteiras e distribuí-los”.
A realidade, as estatísticas, os números e os testemunhos, porém, contam outra história. Antes de 7 de outubro, todo dia as autoridades israelenses autorizavam em média a entrada de 500 caminhões de ajudas humanitárias no território, hoje, no meio da feroz campanha de bombardeios, às vezes só conseguem entrar algumas dezenas de caminhões.
Já no final de dezembro, segundo a ONU, apenas 8% das pessoas necessitadas recebiam ajudas alimentares.
A própria UNRWA não obteve permissão das autoridades israelenses para fornecer ajudas no norte de Gaza durante mais de um mês, antes da decisão de ontem de interromper, pelo menos temporariamente as distribuições. É o ciclo vicioso da fome. A segurança dos comboios humanitários está em risco, portanto, o envio de ajudas é progressivamente mais difícil, se não impossível, o que faz com a fome só aumente e com ela o desespero. Hoje, comboios humanitários que entram em Gaza vindos da cidade mais meridional de Rafah passam por áreas onde está procurando refúgio um milhão e meio de pessoas, forçadas para o sul pelas forças israelenses. Dormem numa tenda dez, vinte pessoas. Não têm nada, quase nada, para se alimentar. Ao norte, onde permaneceriam 300 mil pessoas, segundo um relatório recente da Unicef e do PAM 15,6% da população, uma em cada seis crianças menores de 2 anos, está gravemente desnutrida.
No início da ofensiva terrestre em outubro, o exército israelense havia ordenado que um milhão de civis palestinos evacuassem todas as áreas ao norte de Wadi Gaza e buscassem refúgio no sul, a área de evacuação incluía a cidade de Gaza, a mais densamente povoada antes da guerra. A maioria parte dos civis moveu-se para o sul, mas cerca de 300 mil pessoas optaram por ficar ou, mais provavelmente, não conseguiram fugir porque o exército israelense cercou a área. Hoje, a entrega de ajudas ao norte tornou-se quase impossível. No início desta semana, o Programa Alimentar Mundial (PAM) declarou ter sido obrigado a suspender as entregas de ajudas ao norte de Gaza devido ao “caos total e da violência devidos ao colapso da ordem civil". No domingo passado, quando se aproximava do posto de controle de Wadi Gaza na sua viagem em direção ao norte, um comboio foi "cercado por uma multidão de pessoas famintas", informa o comunicado “com múltiplas tentativas de pessoas subirem a bordo” e quando entrou na cidade de Gaza teve que enfrentar tiros, “alta tensão e raiva explosiva”.
No início de fevereiro, um comboio da UNRWA foi atacado pelas forças navais israelenses enquanto estava esperando para se deslocar para o norte de Gaza. Após o incidente, a organização declarou que apenas quatro de seus comboios, num total de 35 caminhões, conseguiram chegar ao norte da Faixa em um mês, equivale a dizer comida para apenas 130 mil pessoas.
Nesse contexto, em 26 de janeiro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu uma decisão provisória juridicamente vinculativa de que Israel deveria “adotar todas as medidas ao seu alcance para impedir que sejam cometidos todos os atos que se enquadram no âmbito do artigo II da Convenção para a Prevenção e repressão de crime de genocídio, bem como medidas imediatas e eficazes para permitir o fornecimento dos serviços de base e da assistência humanitária urgentemente necessários para fazer frente às condições de vida adversas enfrentados pelos palestinos na Faixa de Gaza”.
Naquelas semanas, porém, algo mais aconteceu. Em 31 de janeiro de 2024, o primeiro-ministro Netanyahu afirmou que a UNRWA está “a serviço do Hamas”, Israel declarou que 12 funcionários da UNRWA na Faixa teriam participado diretamente no massacre de 7 de outubro juntamente com o Hamas, afirmando que 10% de todos os trabalhadores da UNRWA seriam filiados ao grupo. Philippe Lazzarini, o comissário geral da UNRWA, em longa entrevista ao jornal israelense Haaretz disse: “Não sabemos de onde vêm essas informações, não sabemos se se trata de uma estimativa. Não sabemos se se trata apenas de especulações”. Apesar disso, imediatamente após a divulgação das acusações, 9 membros do pessoal foram demitidos e 16 países doadores
anunciaram a suspensão total ou temporária das contribuições para a UNRWA – agência que sustenta milhões de palestinos – num total de 450 milhões de dólares.
Um relatório de quatro páginas do Conselho Nacional de Inteligência, distribuído entre funcionários do governo estadunidense e citado pelo Wall Street Journal, questionou as afirmações israelenses sobre as ligações entre a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA) e o Hamas. O relatório afirma que algumas das acusações são credíveis, embora não possam ser verificadas de forma independente, e também lança dúvidas sobre as afirmações de laços mais amplos com grupos militantes. O jornal estadunidense, citando o relatório, diz que “embora a UNRWA se coordene com o Hamas para prestar ajudas e operar na região, faltam provas que sugiram que tenha colaborado com o grupo", frisando, como o chefe da UNRWA, "que Israel não partilhou com os Estados Unidos as informações por trás de suas avaliações”.
O que implica a UNRWA não são apenas as acusações de conluio com o Hamas e as reduções radicais de fundos de doadores internacionais, mas também uma série de intervenções em Israel, que levaram Lazzarini a declarar que “após a sentença da Corte Internacional de Justiça, houve um esforço concertado de alguns funcionários israelenses para confundir enganosamente a UNRWA com o Hamas, interromper as operações da Agência e pedir o desmantelamento da Agência”.
Tem sido assim desde outubro: centenas de funcionários locais não podem entrar em Jerusalém desde então. A guerra em Gaza matou 152 funcionários palestinos da Agência, o maior número de vítimas das Nações Unidas desde que o órgão foi fundado em 1945, alguns foram mortos nos ataques contra hospitais e escolas da UNRWA, que abrigam pessoas deslocadas.
De acordo com os dados da Agência, desde o início da guerra Israel atingiu as suas instalações 263 vezes, causando a morte de 360 civis.
Em Israel, todas as decisões que dizem respeito à Agência foram na direção de seu desmantelamento: a Autoridade territorial de Israel pediu à UNRWA que desocupasse o seu Centro de formação profissional em Jerusalém Oriental (concedido à Agência pela Jordânia em 1952) e pagasse uma "taxa de uso" de mais de 4,5 milhões de dólares, a sede da UNRWA em Jerusalém foi despejada, os vistos para a maior parte do pessoal internacional, incluindo o de Gaza, estão limitados a um ou dois meses, as autoridades aduaneiras suspenderam o envio de mercadorias para a agência e um banco israelense bloqueou uma conta da UNRWA.
Quatro meses após o início da guerra, Netanyahu revelou o seu plano para o "dia seguinte", o plano do pós-guerra para Gaza. Os objetivos de curto prazo permanecem inalterados: destruir as capacidades militares do Hamas e as suas infraestruturas e garantir a libertação dos reféns. No médio prazo Israel manteria a liberdade de operações militares em Gaza, criaria uma zona tampão e se empenharia em combater o contrabando na fronteira entre a Faixa e o Egito, em colaboração com os Estados Unidos.
Além disso, acrescentou, prevê o fechamento permanente da Agência das Nações Unidas para os palestinos, a UNRWA, a ser substituída por um organismo internacional. “A nossa operação humanitária, da qual dependem 2 milhões de pessoas em Gaza, está desmoronando – disse Lazzarini. Os palestinos em Gaza não precisavam de mais essa punição coletiva. Isso mancha todos nós". Sem novos financiamentos as operações ficarão gravemente comprometidas a partir de março. Falta uma semana. Enquanto isso, em Gaza, uma em cada quatro pessoas morre de fome.
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Gaza, assim os refugiados estão morrendo de fome. Artigo de Francesca Mannocchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU