22 Fevereiro 2024
Famílias vivem em abrigos precários, enfrentam a negligência de estado e padecem de motivos como pneumonia e desnutrição.
A reportagem e de Cida Alves, publicada por Brasil de Fato, 21-02-2024.
Com apenas um ano de idade, uma criança warao (lê-se waráo) morreu por inanição e sepse em outubro do ano passado, na capital da Paraíba. Integrantes da etnia refugiam-se no Brasil há cerca de dez anos e na Paraíba há cerca de quatro anos. Por conta da enorme precariedade, morrem adultos, velhos e crianças.
Segundo nota publicada pelo Ministério Público Federal da Paraíba (MPF-PB) e relatos dos próprios indígenas, foram contabilizadas desde 2020 mais de 10 mortes em João Pessoa por doenças infantis "evitáveis" e relacionadas a extrema pobreza, como pneumonia, desnutrição, casos de insuficiência renal, tuberculose e sepse.
Antropólogo e membro da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI). Jamerson Lucena explica que há um descaso recorrente sobre essa tragédia no estado. "Eles (os warao) estão sendo, de certa forma, silenciados, vivendo em situação de vulnerabilidade social, com dezenas de famílias com pouca comida, basicamente sem nenhuma assistência de saúde, ou de forma precária e esporádica."
Para Lucena, o poder público tenta esconder o problema. "O governo do estado e a prefeitura de João Pessoa tentam ao máximo silenciar e maquiar através de publicidade, alegando que estão se esforçando com boas práticas. Mas a realidade é bem diferente. Muitos abrigos estão numa situação precária, telhado caindo, alagamentos, com crianças que adoecem cada vez mais. Em outubro de 2022, o MPF-PB protocolou uma ação civil pública sobre a situação de saúde dos warao. Não tem nenhum avanço com relação a isso."
Carolina Silva, pesquisadora e graduanda em Antropologia pela UFPB, destaca a negligência das autoridades. "Temos uma saúde preparada para lidar com esses casos. Então, por que com um grupo específico isso não está acontecendo?"
Rafael Rattia, indígena warao, comenta a calamidade em meio à qual seu povo sobrevive. "A situação está muito complicada, difícil, muito triste. Estamos com as crianças, e a casa está com muito buraco, água da chuva entrando, molhando as roupas, camas e redes. Não tem como sobreviver aqui no Brasil", descreve ele, que encontra-se alojado no bairro Ernani Sátiro com sete famílias que somam 36 pessoas.
Os waraos deslocam-se para o Brasil desde 2014 em viagens por via terrestre. Partem de cidades do nordeste venezuelano em direção à fronteira com o estado de Roraima.
Cerca de 630 indígenas da etnia estão na Paraíba, 400 deles em João Pessoa. Chegaram marjoritariamente entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020.
O grupo recebia suporte da Ação Social Arquidiocesana (ASA), que tinha subsídio do governo do estado no valor de R$ 1,5 milhões. O suporte não mais acontece porque a entidade é alvo de processo, em meio a um emaranhado de denúncias de fraudes envolvendo o seu coordenador, Padre Egídio de Carvalho. O religioso foi preso no dia 17 de novembro de 2023, suspeito de desvio na ordem de R$ 140 milhões da ASA e do Hospital Padre Zé, onde também era coordenador.
A situação dos indígenas ficou então mais precária. "Não recebemos mais nada da ASA para comer ou vestir. No ano passado chegava material de limpeza e medicamentos. Depois não chegou nenhuma outra entidade para dar apoio, ninguém chegou com nada", conta Rafael Rattia.
Ele comenta que a sua família está doente por conta das fortes chuvas na capital. "A enfermeira que está trabalhando conosco aparece, às vezes, uma vez por mês para nos atender."
Para o cacique Ramon Gómez Quinonez, falta acompanhamento do poder público. Ele perdeu uma irmã de 26 anos há um ano atrás. A causa não foi descoberta. "Já perdemos várias crianças aqui em João Pessoa por falta de comunicação e de atendimento imediato, monitoramento, falta de orientação profissional e de acompanhamento em cada abrigo diariamente, porque a comunicação é muito complicada. O português, a gente fala um pouco, de espanhol também, mas é complicado."
Quinonez conta que a etnia é hegemonicamente do meio rural, e que é muito difícil sobreviver na cidade.
Jamerson Lucena reforça a análise do cacique. "Os warao são indígenas e seu modo de vida é totalmente diferente do nosso. Warao significa 'povo da água'. Eles viviam em comunidades rurais, em casas de palafitas às margens dos rios e córregos. As suas casas, por exemplo, não têm paredes e são constituídas apenas de um vão. Todas de madeira e cobertas de palha."
O cacique também afirma que os indígenas não conseguem emprego em João Pessoa. "Muitas mulheres e homens trabalham com artesanato, fabricam pulseiras e colares. Precisamos de um espaço para realizar nossas oficinas."
Rafael Rattia conseguiu um contrato e ganha um salário mínimo. "Queremos emprego. Todo mundo precisa trabalhar, mas não querem nos dar."
Diante da situação precária, uma ação foi ajuizada em 2022 no MPF-PB pedindo que a Justiça Federal determinasse à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito Especial de Saúde Indígena Potiguara (Dsei) o início, em 48 horas, de atendimento de saúde às famílias warao refugiadas na Paraíba, sobretudo em João Pessoa e Campina Grande.
"A ideia era desenvolver a contratação de equipe multidisciplinar, já que antes eles estavam recebendo um atendimento comum. Mas os argumentos eram de que faltava treinamento para essa equipe, e a língua como uma barreira, considerando que os warao falam o seu próprio idioma e falam um pouco de espanhol, e não haveria pessoas que conseguissem se comunicar de forma eficiente", explica Carolina Silva.
Em 2023, a Prefeitura Municipal de João Pessoa criou o Núcleo de Assistência à Saúde Indígena no Espaço Urbano para oferecer atendimento especializado aos warao. À época, Gustavo Lira, coordenador do Núcleo, explicou: "O Núcleo acompanha de perto a situação da saúde dos indígenas warao, intermediando e monitorando todas as necessidades referentes a consultas, exames, tratamentos, medicações e todas as demandas que estão dentro da rede de saúde, articulando as possibilidades na tentativa de garantir uma resposta qualificada e humanizada."
Segundo Carolina Silva, o discurso não condiz com a realidade. "A gente percebe que isso não está acontecendo porque a maior parte das mortes que tem acontecido, tanto de crianças como jovens e adultos, são de causas evitáveis como pneumonia, tuberculose, desnutrição. A última jovem que faleceu foi por pré-eclâmpsia."
Tiago Quirino, da Associação dos Defensores da Cidadania (ADC), comenta a precariedade dos abrigos. "A estrutura física do abrigo no Ernani Sátiro está completamente destruída. O prédio está avariado, tanto a engenharia quanto a arquitetura. Já denunciamos inúmeras vezes ao governo. A escola era abandonada, o prédio estava completamente avariado. Qualquer chuva, as famílias ficam em situação de total e completa vulnerabilidade."
Há infiltrações, janelas caídas, sanitários e pias quebradas. O espaço ficou sem energia por sete dias em 2023. A superlotação é constante. A situação é assim desde 2020.
A situação repete-se em outros abrigos na capital. Em abril de 2021, o deputado federal Frei Anastácio enviou um ofício ao governador para restaurar o teto da escola Carmelita Pereira Gomes, abrigo dos indígenas, mas nada foi feito.
"Alguns abrigos eram escolas desativadas. Mas a maioria deles [dos indígenas] têm que se virar para pagar aluguel, energia e complementar a alimentação e remédios. O abrigo do bairro Ernani Sátiro é uma escola desativada. É abrigo, mas ninguém paga nada. E no bairro Funcionários II tem mais três casas repletas de famílias. Eles mesmos pagam o aluguel, pouquíssimos recebem auxílio moradia. Na Vila do Lula, ninguém recebe, e lá está praticamente toda ocupada com famílias warao", explica Jamerson Lucena.
Na Vila do Lula, localizada no bairro do Roger, encontram-se dezenas de famílias warao em situação muito crítica. Enfrentam, além da fome, problemas psíquicos. "Estamos vendo situações específicas em relação ao alcoolismo e devido ao acesso às drogas ser fácil. (...) Nem tratamentos paliativos estão tendo, já que estamos vendo ocorrerem mortes de causas evitáveis. Tem que haver equipe preparada para dialogar com o grupo", comenta Carolina Silva.
Para Silva, os indígenas são tratados de forma verticalizada. "O grupo não é ouvido, as lideranças não são ouvidas. O processo de criação de mecanismo não é feito em conjunto com o grupo. Então percebemos que o grupo é silenciado, as suas demandas são silenciadas, sua cultura é silenciada, e todas as estratégias são criadas a partir da visão de um estado que não tem como adivinhar como lidar com o grupo."
Os warao (povo da água, na língua materna) são um grupo étnico constituído originalmente há mais de oito mil anos na região do delta do Rio Orinoco. São hoje a segunda maior etnia da Venezuela, com cerca de 49 mil pessoas (Censo 2011).
O grupo étnico enquadra-se no artigo 1º da Lei 9.474, na definição atual de refugiado como pessoa que “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país."
O deslocamento dos Waraos para o Brasil foi motivado pela busca por melhores condições de vida, como o acesso à alimentação adequada e a empregos, tendo em vista o quadro de fome e desassistência decorrente da crise econômica na Venezuela.
Entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, o estado da Paraíba recebeu muitos destes migrantes. A sociedade civil e algumas instituições noticiam a degradante situação dos Waraos, em situação de rua e sem documentos para regularização migratória, como pedido de refúgio ou residência, emissão de CPF, carteira de trabalho e cadastramento único para fins de garantias de direitos.
O Brasil de Fato Paraíba tentou contato com a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano mas não foi atendido. O espaço segue aberto para manifestação das autoridades sobre a situação.
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Crianças indígenas warao morrem de causas evitáveis em meio à pobreza na capital da Paraíba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU