21 Janeiro 2021
O plano do governo federal prevê que sejam imunizados apenas indígenas que vivem em aldeias dentro de territórios demarcados.
A reportagem é de Steffanie Schmidt, publicada por Amazônia Real, 19-01-2021.
O plano nacional de imunização da Covid-19, previsto para começar nesta terça-feira (18) no país, exclui pelo menos 380 mil indígenas porque eles não vivem dentro de aldeias dos territórios demarcados, segundo levantamento do Coletivo Indígenas do Amazonas, que no último domingo (17) lançou uma mobilização nacional para pressionar as autoridades de saúde a ampliarem a cobertura vacinal prioritária. O número é com base no Censo de 2010 do IBGE, no qual aponta que a população indígena é de 900 mil indígenas, sendo que 379,535 mil vivem fora de terras indígenas, portanto, sem cobertura do subsistema de saúde indígena (SUS) do Ministério da Saúde. Este número pode estar subestimado, e deve ser muito maior, chegando a 400 mil, a quantidade de indígenas excluídos da vacina, segundo Lúcia Alberta Andrade, do povo Baré, indígena do Alto Rio Negro, uma das lideranças que assinam o documento (leia ele na íntegra).
Organizações indígenas do Amazonas estimam que só em Manaus, que enfrenta nesta pandemia a pior tragédia humanitária de sua história, há cerca de 20 mil indígenas vivendo em comunidades urbanas. Ao deixar esse grupo de fora das prioridades, o Ministério da Saúde lava as mãos de sua responsabilidade sobre os povos originários. Segundo Lúcia Alberta, na lista dos excluídos estão indígenas de contexto urbano, comunidades rurais fora de terras demarcadas, acampamentos e territórios que lutam por demarcação, além de imigrantes, como é o caso do povo Warao, da Venezuela.
“Todas as vezes que o ministro da saúde [general Eduardo Pazuello] fala em ‘indígenas aldeados’ com prioritários, ele esquece que somos indígenas em qualquer lugar. Eu nasci em uma aldeia do Alto Rio Negro. Por morarmos em cidades e termos uma imunidade mais delicada do que os não indígenas, temos mais facilidade de sermos infectados, até mais do que nossos parentes que estão nas comunidade distantes, mais isoladas. Tem que ser revista essa política de separar indígenas aldeados de não aldeados”, disse Lúcia Alberta à Amazônia Real.
Lúcia Alberta também ressaltou que não são apenas os indígenas de contexto urbano que serão excluídos, mas aqueles que vivem em territórios em processo de demarcação. Ela destaca também a necessidade de incluir os indígenas Warao, refugiados na Amazônia desde 2015.
“Tem esse agravante. Quando fala não aldeados, exclui completamente os indígenas há muito tempo lutam para terem suas terras demarcadas. E que perderam suas terras por todo esse processo de colonização. Essas pessoas correm grave risco de não ter vacinação”, alerta.
A Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB), maior organização indígena do país, deve definir, ainda nesta terça-feira (19), os planos de uma campanha de pressão nacional e internacional para cobrar informações detalhadas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A organização vai se reunir com pesquisadores da Fiocruz. Segundo Sonia Guajajara, em entrevista à Amazônia Real, a APIB não descarta entrar com medidas judiciais para cobrar por ações efetivas no combate à Covid-19 entre a população indígena.
“Queremos garantir a imunidade para toda a população indígena independente de distância e localização geográfica, desde as áreas mais remotas ao contexto urbano. Nesse momento talvez seja mais difícil conseguir vacinação para quem está perto, pois o governo federal adotou uma política de exclusão dos povos que estão vivendo nas cidades. Isso será uma grande questão a ser enfrentada”, protestou.
Sonia Guajajara deu como exemplo a situação do Amazonas, onde os indígenas que vivem na capital “estão doentes e morrendo”. “O Amazonas está um caos. Os indígenas em Manaus precisam de apoio. Como ser seletivo [a vacina] nesta situação? Não podemos permitir esse racismo institucional”, afirmou.
Dos 900 mil indígenas, segundo o Censo do IBGE de 2010, mais de 500 mil vivem em territórios tradicionais demarcados. Mas segundo as organizações a população indígena do país passa de 1 milhão.
A condução do combate à pandemia do governo federal envolve não só desinformação e negacionismo, mas também ocultamento de dados reais sobre a situação entre os povos indígenas. O governo Bolsonaro tem subestimado o número de óbitos e a contaminação por Covid-19.
A APIB produz um levantamento próprio da evolução da doença e aponta que o número de óbitos de indígenas é quase o dobro do divulgado pelo governo, 917 ante 513. Desde o mês de abril de 2020, a organização indígena registrou 45.267 casos positivos do novo coronavírus no país A Secretaria Especial de Saúde Inígena (Sesai), do Ministério da Saúde, contabiliza 5.867 mortes, uma diferença de 87,0%.
Nesta segunda-feira (18), com as primeiras doses da Coronavac chegando aos estados, as organizações indígenas do Amazonas iniciaram uma mobilização para pressionar a inclusão de todos os povos originários do Brasil. O documento do Coletivo Indígena do Amazonas traz um abaixo-assinado, liderado por representações dos 65 povos do Estado com a maior população de indígenas autodeclarados (168,7 mil), foi encaminhado ao procurador da República Fernando Merlotto Soave, do Ministério Público Federal (MPF). Eles também reivindicam a criação de planos estadual e municipal de imunização e de um hospital de campanha.
Velório do Cacique Messias no Parque das Tribos. (Foto: Raphael Alves)
No Brasil, a vacinação de imunização do novo coronavírus começou no domingo (16) em São Paulo. A primeira mulher indígena a ser vacinada foi a técnica de enfermagem e assistente social Vanuzia Kaimbé, de 50 anos.
O governo de São Paulo enviou 50 mil doses da vacina Coronavac do Instituto Butantan para o Amazonas. Mais 256 mil doses foram enviadas pelo Ministério da Saúde, segundo o governador Wilson Lima (PSC).
Em Manaus, o início da vacinação começou nesta noite de segunda-feira (18) tendo a primeira pessoa imunizada, com a primeira dose da Coronavac, a auxiliar enfermagem a indígena Vanda Ortega Witoto, de 33 anos.
Moradora do Parque das Tribos, comunidade urbana de Manaus onde vivem mais de 35 etnias, Vanda atendeu centenas de doentes indígenas na primeira onda da pandemia, e agora está de novo na linha de frente da crise em Manaus. Na comunidade vivem 132 famílias, aproximadamente 660 pessoas. Nas duas últimas semanas, 32 indígenas testaram positivo para a Covid-19, segundo Vanda Witoto.
Antes de ser convidada pelo governo do Amazonas para ser a primeira a ser vacinada no Estado, Vanda falou com a Amazônia Real e criticou a falta de vacinação para os povos indígenas que vivem nas cidades brasileiras. “Estamos fora do planejamento de vacinação e de todas as ações realizadas pelo Ministério da Saúde. A Sesai não nos atende por levar em consideração esse termo ‘aldeados’. No quantitativo de 410 mil indígenas que está referenciado para ser vacinado, ficaríamos de fora”, afirmou Vanda.
Morando em Manaus, ou seja, em contexto urbano, ela disse que a escolha pode abrir precedentes para que outros indígenas da capital também sejam incluídos na prioridade. Depois de ser vacinada no Centro de Convenções Vasco Vasquez, na zona centro-sul de Manaus, Vanda Witoto cobrou a vacinação para todos os povos indígenas brasileiros e fez um desabafo ao governador Wilson Lima:
“Para as populações indígenas do Amazonas, esse momento representa muito para o meu povo Witoto e para os 63 povos indígenas do Estado do Amazonas. Esse estado, que tem a maior população indígena do Brasil, precisa ser cuidado”, discursou.
“Eu venho lá do Parque das Tribos, e nessa segunda onda de Covid nós temos, nesse momento, 32 indígenas positivos para Covid. Na verdade, não era para estar aqui, porque nesse momento nós recebemos uma ligação de que quatro parentes estão indo para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento), com dificuldade respiratória. Nós estamos montando um hospital de campanha por nossos próprios esforços dentro da comunidade e a gente precisa do seu apoio. A gente já conversou sobre isso [disse ela ao governador]. E quero que esse estado olhe para essas populações aqui”, ressaltou.
Indígenas participam d 5ª Marcha dos Povos Indígenas do Amazonas (2019). (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real))
A liderança lembrou o histórico de negligência por que passa os indígenas no país e salientou a necessidade de romper a discriminação nas estruturas do poder.
“Os nossos povos, historicamente, são muito negados. Negado por esse sistema de poder, mas nós queremos nesse momento histórico, que essa vacina chegue para os nossos povos na cidade também. Isso é uma luta do nosso movimento indígena. E precisa ser garantido que esses povos sejam contemplados por essa vacina. Ela é importante para nós”, afirmou.
Com uma fala forte e impactante, Vanda pediu que as autoridades “cuidem das populações que estão na cidade” e apontou “precariedade junto a essas comunidades”.
“Nesse momento de pandemia, as nossas comunidades não têm água potável. É preciso olhar para essas questões dos nossos povos na capital. E sou muito grata àquelas pessoas que têm nos ajudado de alguma maneira. Nós temos recebido apoio de remédio. Nós precisamos de alimento na nossa comunidade para essas famílias que estão desempregadas dentro das nossas comunidades. E eu quero, nesse momento aqui, eu só quero agradecer a Deus, a Mooma, ao nosso Deus Criador, aos nossos ancestrais, porque é necessário garantir a vacina não só para 410.000 indígenas. Hoje, nós somos mais de um milhão de indígenas no território brasileiro, que precisa ser cuidado nesse enfrentamento de pandemia”, declarou, emocionada.
“Muito obrigado a todos por esse momento que Tupana olhe por todos nós. Que Deus cuide de todos nós. Viva os povos indígenas!”, finalizou Wanda Witoto.
À Amazônia Real, Lúcia Alberta Andrade destacou a relevância das palavras de Vanda Witoto no momento em que o plano de saúde do governo federal ignora as populações de comunidades não demarcadas.
“A vacina em nossa parenta foi uma vitória. Ela levou nossa mensagem para que seja garantida a vacinação para todos os povos indígenas do Amazonas e do Brasil. Em Manaus, temos muitos povos. São quase 20 mil indígenas que vivem em contexto e mais os povos Warao [da Venezuela] que temos acolhê-los. Queremos que eles sejam vacinados. Vivem numa situação bastante vulnerabilidade. A Vanda, por ser indígena em contexto urbano, mostrou a importância dessa vacinação ser para todos os indígenas”, ressaltou.
Até o momento, contudo, o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não divulgaram como vai ser essa operação da imunização nos territórios indígenas. Não há informações de datas, locais, logística para áreas mais remotas, povos, etc. Historicamente, o subsistema de saúde indígena já possui experiência em ações de imunização de indígenas contra doenças endêmicas como sarampo e gripe.
Foto do protesto de Vanda Witoto com o secretário Robson Santos em frente ao hospital. (Foto: Dsei Manaus)
Com três ‘parentes’ com dificuldade respiratória, a enfermeira Vanda Witoto afirma que conseguiu a doação de dois cilindros de oxigênio que deveriam ser instalados na segunda-feira. “Iniciamos uma campanha para a compra de medicamento e o pedido de oxigênio para poder cuidar dos nossos parentes sem levar nos hospitais por conta do caos que está lá fora. Para os que têm mais dificuldade respiratória, fazemos exercícios com garrafa pet para ajudar”, explicou.
O abaixo-assinado “Pela vida de todos os povos indígenas do Amazonas: vacinação para todos!” pressiona o governo do Amazonas a vacinar contra a Covid-19 todos os indígenas do estado, inclusive o povo Warao, oriundo da região do rio Orinoco, na Venezuela e que integra a população migrante daquele país no Estado.
“Se é para morrer calado, morrer sem nenhuma assistência dentro de casa, é melhor morrer com dignidade, na rua, lutando, porque não vamos ficar esperando o governo, que já maltrata tanto a nossa população, continue nos matando”, afirmou a líder indígena Marcivana Sateré-Mawé, coordenadora – executiva da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime).
A liderança Marcivana Sateré-Mawé (do lado de fora). (Foto: Cáritas)
“Sabemos que o prefeito (David Almeida) foi eleito sem ter nenhuma proposta para atender a população indígena da cidade de Manaus. É uma vergonha a Prefeitura não ter um plano, uma vez que grande parte dos indígenas estão em Manaus. Até quando vão viver fingindo que não existe índio em Manaus?”, indagou a liderança Marcivana Sateré-Mawé,. Segundo ela, na capital amazonense, hoje, são falados 16 línguas diferentes entre os povos originários.
Para o médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, a imunização dos indígenas em situação urbana deveria ser priorizada. “Eles estão nas cidades para estudar, trabalhar, buscar atendimento. Passa um tempo e voltam. Se a ideia é proteger as comunidades, por que não vacinar essas pessoas?”, questiona o profissional que trabalha com populações indígenas e em isolamento voluntário na Amazônia há mais de 50 anos.
O indigenista aposentado, Armando Soares, que atuou durante 35 anos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) na Amazônia, concorda: “Hoje a saúde indígena tem problemas gravíssimos como se negar a atender indígenas que estão na cidade. Isso é inadmissível, como se morar na cidade tirasse a origem das pessoas”, afirma.
“Esse governo que está aí tirou todos os indigenistas, as pessoas capacitadas das Coordenações regionais da Funai e colocou militares, pessoas que sempre foram inimigas dos índios. É difícil conceber que a vacinação possa dar resultado sendo uma iniciativa deste governo”, completa.
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Governo Bolsonaro vai deixar quase 400 mil indígenas fora da primeira etapa de imunização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU