14 Fevereiro 2024
O sociólogo Wolfgang Streeck avalia o momento de guerra e de crise vivida pela União Europeia, a qual define como um campo de batalha ampliado das disputas entre os Estados europeus.
A entrevista é de Gavin Jacobson, publicada por El Salto, 12-02-2024. A tradução é do Cepat.
Nesta entrevista Wolfgang Streeck (Lengerich, Alemanha, 1946) avalia o crescimento da extrema direita no seu país e as possibilidades de futuro da União Europeia, envolvida numa crise sem fim.
Comecemos pelo descontentamento que existe na Alemanha e que se reflete nas diversas greves (dos ferroviários), protestos (dos agricultores) e manifestações (Palestina) nas últimas semanas. Até que ponto não traz nada de positivo o apelo à greve geral convocada pela Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita?
Não ouvi falar dela, obviamente porque não leio regularmente os jornais britânicos, com a sua informação tipicamente sóbria, bem informada e sensata sobre a Alemanha. É evidente que existe uma faixa lunática na extrema direita do espectro político alemão, inclusive mais lunática do que os amigos de Liz Truss, suponho, e certamente horrorosa e assustadora o suficiente não só para os meios de comunicação social, mas também para os partidos no poder, que procuram desesperadamente maneiras de assustar os eleitores para que não votem na AfD.
Li sobre uma estranha reunião sobre “remigração” realizada num hotel em Brandemburgo em novembro passado, na qual dois ou três dirigentes da AfD discutiram com um identitário austríaco um “plano diretor” para realizar deportações em massa de alemães insuficientemente alemães, comparada com a Conferência de Wannsee de 1942, que traçou o plano para prosseguir com o extermínio dos judeus. Todo o episódio, e a reação exagerada ao mesmo, é semelhante às dezenas de aposentados que a polícia prendeu [em 2022], liderados por um tal de Graf von não sei o que mais e uma dona de casa perturbada, que, supostamente, planejavam uma revolução em Berlim com a afirmação do tal Graf ser nomeado kaiser ou algo parecido. Podemos descansar em paz hoje em dia sobre isso.
Qual é a sua teoria sobre a AfD? O que explica o crescente apoio ao partido e para onde pensa que ele caminha?
Trata-se de um fenômeno geral, que se manifesta desde a Noruega até a Itália e que também emerge no Reino Unido e nos Estados Unidos, onde o tipo local de populismo de direita encontrou guarida nos velhos partidos conservadores de centro, os stories e os republicanos. Em todos os lugares, isto indica um descontentamento generalizado com o sistema partidário estabelecido, de centro-esquerda e de centro-direita, e também com os partidos socialistas situados à esquerda da centro-esquerda. (No Reino Unido e na Espanha, bem como em alguns outros países, o separatismo regional oferece outra forma de sair do descontentamento com a política democrática neoliberal.)
Existe uma profunda incerteza sobre o futuro, um sentimento de mudança rápida e imprevisível, que perturba os modos de vida tradicionais. As pessoas sentem-se abandonadas pelos governos democrático-liberais; elas se sentem lançadas num turbilhão de agitação social e procuram um novo tipo de proteção política, tendo perdido a confiança na política tradicional. É claro que Giorgia Meloni, Marine Le Pen, Donald Trump e companhia também não protegerão de forma alguma os cidadãos. Mas levará algum tempo para que as pessoas percebam isso, talvez uma ou duas décadas?
Como você relaciona a situação política na Alemanha com a crise geral do capitalismo?
Mais uma vez, deixando de lado as especificidades nacionais, esta “crise geral” manifesta-se hoje como uma crise do Estado, que se vê sobrecarregado por demandas que estão acima da sua capacidade de governo. Uma indicação da natureza desta crise é a oscilação impotente da política econômica registrada durante os últimos cinco anos entre a intervenção e a abstenção do Estado e a experimentação interminável de todos os tipos de combinações possíveis entre os dois. Nenhum deles foi capaz de resolver o problema ou impedir que ele crescesse.
O que está por trás desta crise infinita é, em suma, o que Marx chama de avanço da socialização da produção nas sociedades capitalistas nas quais os meios de produção continuam sendo de propriedade privada. À medida que as sociedades capitalistas amadurecem, cada vez mais áreas da vida social, incluindo a obtenção de lucros privados, precisam ser regulamentadas e facilitadas pelos governos; ao mesmo tempo, as relações de propriedade capitalista, particularmente sob o capitalismo globalizado, impedem os Estados de adquirirem os meios de que necessitariam para fornecer uma infraestrutura coletiva para a produção capitalista avançada, para reparar os danos causados pela "destruição criativa" capitalista e para garantir a legitimidade política requerida em uma democracia. Uma expressão de tudo isto é a crise fiscal endêmica e cada vez mais grave sofrida pelo Estado democrático-capitalista, que promove uma percepção generalizada do seu fracasso entre os seus eleitores. Há todo tipo de patologias políticas envolvidas neste cenário que, obviamente, não posso abordar aqui.
Qual é a sua opinião sobre Sahra Wagenknecht? O seu partido, a Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça, é uma fonte de otimismo ou é, como escreveu recentemente o sociólogo Oliver Nachtwey, simplesmente “uma nova forma de bonapartismo”, dando voz aos setores reacionários das classes médias?
Recordemos primeiro que Sahra Wagenknecht não se candidata a imperadora e, tanto quanto sei, não está pleiteando nenhum golpe de Estado, pelo menos por enquanto. Considero o seu partido como uma oferta democrático-igualitária dirigida àqueles que já não se sentem representados pela corrente política predominante: uma alternativa à alternativa autoritária-neoliberal. Esperemos que Wagenknecht tenha sucesso ali onde os partidos estabelecidos fracassaram tão estrepitosamente, ou seja, em acabar com o crescimento da AfD, que já prospera há uma década sob o olhar benevolente da CDU, do SPD, dos Verdes e companhia.
A nível federal, se tudo correr bem, pode-se esperar que o novo partido traga um elemento de realismo honesto ao discurso público, capaz de organizar uma oposição parlamentar séria, enérgica e impiedosamente implacável e bem informada frente a um governo que nada fez para acabar com a crise das infraestruturas físicas, a decadência do sistema escolar, os danos causados pelas mudanças climáticas, a falta de moradia, o aumento da pobreza na extremidade inferior da pirâmide de distribuição de rendimentos, a vassalagem aos Estados Unidos na política externa, o distanciamento da União Europeia e em tantas outras questões. E nos Länder [estados federados alemães] orientais, três dos quais elegerão os seus parlamentos este ano, a Wagenknecht pode conquistar eleitores suficientes da AfD para evitar que esta se torne o maior partido de todos eles e, assim, garantir que governos parlamentares possam ser formados, inclusive com a sua presença como sócio de coligação.
Até que ponto é sustentável o apoio alemão à Ucrânia e a Israel?
É difícil fazer previsões. Os estadunidenses esperam que a Alemanha, juntamente com a UE, assuma o seu papel na guerra da Ucrânia, enquanto eles lidam com a Palestina, o Irã e a China. Se os alemães não conseguirem cumprir isso, por razões políticas ou práticas, e a guerra terminar em desastre – a queda do atual governo ucraniano nacionalista-extremista, o abandono do Estado ucraniano pelos oligarcas ucranianos e o seu êxodo para Londres ou Nova Iorque e, em geral, a existência após a guerra de uma Ucrânia residual, política, econômica, democrática e demograficamente inviável e permanentemente assediada pela Rússia –, então os Estados Unidos e os estados membros orientais da UE sempre poderão culpar a Alemanha pelo desastre, o que lhes soaria reparador.
Quanto a Israel, o Estado alemão está utilizando todos os meios disponíveis para propagar a identificação popular e legal de qualquer expressão de horror pelo que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia com o antissemitismo, na esperança de que isso suprima o debate público sobre o seu apoio incessante aos crimes de guerra cometidos pelo governo israelense. Acredito que isto provocará danos duradouros à Alemanha enquanto democracia liberal. Por exemplo, há agora toda uma geração de jovens jornalistas e sociólogos que entendem que, se quiserem fazer carreira, devem aprender a fingir que não veem algo que todos os outros veem e a não falar sobre isso por staatsraison [razão de Estado].
O que significariam uma Alemanha e uma França de extrema direita para a União Europeia?
A AfD não estará no governo federal depois das próximas eleições e estou tentado a dizer que também não estará no futuro, em qualquer caso. Portanto, não haverá uma “Alemanha de extrema direita”. Le Pen, por um lado, poderá ser presidente, mas existem, por assim dizer, interesses nacionais franceses duros, incluindo o de permanecer sendo o único Estado-Membro da UE com armas nucleares e defender a posição da França como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. A Alemanha, por outro lado, é mais do que nunca, depois das guerras na Ucrânia e na Palestina, uma dependência dos EUA encarregada, entre outras coisas, de gerir a UE de acordo com os interesses transatlânticos dos EUA, e isto não mudará, a menos que Trump seja reeleito e decida renunciar completamente à Europa, o que não é improvável, momento em que daria início a uma situação infernal.
O conceito de "tandem" franco-alemão ou vice-versa, que impulsiona e dirige a "integração" europeia, deixou de ser útil já durante os últimos anos de Angela Merkel: a França não será liderada pela Alemanha (seja esta governada pela extrema-direita ou pela esquerda branda) e a Alemanha será liderada pelos Estados Unidos mais que por uma França dura e intransigente. Há muito tempo que a UE é muito diversificada internamente e muito infiltrada pelos Estados Unidos para ser algo mais do que um campo de batalha ampliado para a política nacional de cada um dos seus Estados-membros. A UE tornar-se-á um subdepartamento da OTAN quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, suceder ao atual chefe da OTAN, Jens Stoltenberg, o que parece provável.
O que você acha da jovem geração de pensadores econômicos alemães? Há alguns sinais de que estão menos ligados às velhas ortodoxias ordoliberais do que as gerações anteriores e que alguns dos seus membros estão desafiando ativamente o antigo consenso, especialmente à medida que as suas disfunções, por exemplo o limite imposto ao endividamento, se tornam mais comuns.
Os economistas dedicam-se a vender receitas para alcançar o sucesso econômico. Se as suas velhas receitas não funcionam, inventam novas e chamam-no de progresso científico cumulativo. (Se as novas receitas também não funcionarem, então “há a necessidade de mais pesquisa”.) Hoje, no atual período pós-austeridade, presume-se que será a dívida pública e não a consolidação orçamentária que nos salvará. Mas se ela não nos resgatou no passado, por que deveria fazê-lo agora?
Desde o final da década de 1970, o crescimento econômico não parou de diminuir, enquanto o endividamento público continuou a aumentar, devido à lacuna entre as despesas gerais crescentes do capitalismo e a contribuição decrescente que os governos poderiam extrair do capital para pagá-las, eles tiveram que se cobrir pedindo empréstimos ao capital em vez de tributá-lo, porque numa economia política cada vez mais internacionalizada, se tentarmos fazer com que o capital se pague a si mesmo, ele desaparece, tímido como um cervo. Pedir emprestado aos ricos substitui a tributação dos ricos, ou seja, permitimos que fiquem com os seus lucros excedentes e, para completar, pagamos-lhes juros porque o fazem. Para os governos, trata-se de apostar em taxas de juro baixas para sempre e num rápido crescimento econômico, na esperança de excederem os seus atuais níveis de dívida num futuro indeterminado. Se isto não funcionar, a crise fiscal do Estado dará lugar à próxima crise financeira global. Resumindo: são os impostos, não o endividamento público, estúpido.
O que explica o colapso do apoio ao SPD e quais são as lições para o Partido Trabalhista britânico, uma vez que Keir Starmer parece ter se inspirado em Olaf Scholz?
O colapso do SPD deve ser visto no contexto do colapso geral da socialdemocracia na maioria dos sistemas multipartidários europeus. A socialdemocracia não encontrou uma quarta via depois do desastre da terceira. Os eleitores que procuram proteção contra a destruição criativa capitalista voltam-se para os novos nacionalistas em vez dos velhos socialistas. E aqueles que querem mais imigração, mais intervenções militares contra impérios do mal de todos os tipos e menos emissões de carbono sempre podem votar nos Verdes.
Lamento ter de dizer que acho difícil acreditar que Olaf Scholz tenha “inspirado” alguém, como poderia? Do jeito que as coisas estão, após as próximas eleições federais o seu partido poderá procurar refúgio numa coligação como sócio menor de uma CDU mais ou menos vitoriosa, como curiosamente fez após as duas eleições estaduais realizadas em 2023 em Berlim e Hesse. É claro que isso selaria o seu eventual desaparecimento, embora pudesse permitir uma suspensão da execução até que o seu atual líder atinja a idade da aposentadoria. Uma lição da Alemanha para Sir Keir? Respice finem; prepare-se para o pior.
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“O apoio a Israel provocará danos duradouros à Alemanha enquanto democracia liberal”. Entrevista com Wolfgang Streeck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU