03 Janeiro 2024
"O macroecumenismo é absolutamente ortoprático: surge da convivência fraterna e defende a prática de rezar e celebrar a vida em comunidade – e de lutar por ela – na presença de diferentes espiritualidades. Se estivéssemos verdadeiramente no caminho das “comunidades em saída”, poderíamos, nesta aliança de Jesus com os Orixás e os Encantados, radicalizar a prática da sinodalidade e ir além da sua indispensável e urgente conversão intraeclesial. Ainda hoje, de fato, só a alteridade pobre e colonizada pode ser o antídoto eficaz para a autorreferencialidade", escreve Flavio Lazzarin, em artigo publicado por Settimana News, 29-12-2023.
Eis o artigo.
Quando celebramos as Comunidades de Base, penso que há um equívoco que precisa ser destacado, para favorecer o debate e a busca fraterna de discernimentos pastorais. Na verdade, ainda há décadas, não pude deixar de observar o quanto as CEBs foram mudando e como, neste longo processo de presença na base da Igreja, esgotaram radicalmente as suas energias proféticas e libertadoras.
O rosto da Igreja de Abya Ayala permaneceu desfigurado, marcado por uma época de abandono progressivo da profecia do Vaticano II e de Medellín e da profecia existencial das comunidades de base: uma nova forma de ser Igreja de toda a Igreja da América Latina. Foi uma traição restauracionista, da qual o clero foi sobretudo cúmplice em três décadas de inverno eclesial romano.
Contudo, atribuir a responsabilidade pelo enfraquecimento das CEBs à dialética que viu a vitória institucional do retorno à grande disciplina não é suficiente para compreender o processo.
Simplificaríamos a leitura se ignorássemos todas as transformações da sociedade brasileira nos últimos cinquenta anos. Estas não são apenas mudanças superficiais devido à modernidade, ao mercado, às novas tecnologias: a televisão, inicialmente, e a revolução digital sucessivamente. A distância entre as velhas e as novas gerações, que nunca estiveram tão distantes antes, aumentou enormemente. Pensemos também na queda do Muro de Berlim em 1989, um acontecimento de proporções e consequências inevitáveis também no campo ideológico.
Já há décadas, o mundo rural tradicional foi atacado por dois processos igualmente violentos: os latifúndios ilegais que invadiram as terras dos povos indígenas e dos agricultores tradicionais e que, ao mesmo tempo, obrigando-os a migrar para São Paulo e para o Sul do Brasil, roubou-lhes a cultura e a memória da terra, seduzindo-os para o modo de vida moderno e urbano. Terremotos culturais irreversíveis.
A precariedade econômica, o aumento da pobreza extrema, o desemprego, a fome e o aumento da pequena criminalidade são o cenário que caracteriza o mundo rural e urbano do nosso país, o Brasil, enquanto as elites oligárquicas, industriais e políticas, os proprietários do agronegócio, as mineradoras , os especuladores financeiros e os rentistas, parasitas da dívida pública, permaneceram teimosamente fiéis à sua identidade colonialista, racista e classista. Identidade inoxidável à qual, hoje, como única novidade, se somam os ressurgimentos do delírio neofascista e neonazista.
A avalanche de mudanças históricas – falamos hoje, não por acaso, de uma mudança de época – atingiu, sobretudo e de forma irreversível, as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as mentalidades e os pensamentos das pessoas. E as subjetividades são por excelência o terreno onde pode ocorrer qualquer diálogo e até mesmo o diálogo da evangelização. Ignorar as mudanças neste âmbito não significa apenas desistir de compreender a realidade, mas, sobretudo, sabotar a construção de autênticas relações humanas e eclesiais. E desistir do discernimento pastoral.
Longe de mim contestar a fidelidade ao precioso patrimônio das CEBs por parte de inúmeros leigos, religiosos e religiosas, sacerdotes e bispos, porque se trata de fidelidade ao projeto do povo popular, sinodal, samaritano. Igreja, serva do Reino de Jesus.
Não podemos, contudo, ser fiéis a algo que fingimos que continua a existir inalterado até hoje. A ausência de qualquer relação com um passado que já não existe poderá coexistir com a distração imperdoável para a necessária construção de novas CEBs para o futuro. Se assim fosse, como duvido, estaríamos prisioneiros de um limbo ideológico ou confinados a um museu.
Como podemos nos beneficiar teologicamente da discrepância entre a fidelidade à história libertadora e a ausência dos processos pastorais que a inspiraram e confirmaram durante anos?
Em suma, após mais um Encontro Intereclesial das CEBs, de 18 a 22 de julho, Rondonópolis, MT – o décimo quinto – as estatísticas dos participantes incluem, além de 1.500 líderes do CEBs de todo o Brasil, 64 bispos, 130 padres e 130 freiras. Estas estatísticas significativas contrastam com a ausência da experiência e da eclesiologia do CEBs na pastoral ordinária de quase todas as paróquias e no estilo pastoral da maioria dos sacerdotes e bispos. Veja, por exemplo, que espaço é reservado às CEBs nas orientações pastorais regionais e diocesanas: na melhor das hipóteses, quando esta história é minimamente respeitada, as CEBs são aceitas ou toleradas como uma expressão de pouca relevância entre as muitas “expressões eclesiais”.
Outro aspecto importante a sublinhar é que o papel das CEBs como comunidade que luta para enfrentar a injustiça tem sido progressivamente assumido por outros sujeitos políticos emergentes: os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades camponesas tradicionais. E esta insurreição ocorreu no campo, mas também no mundo urbano. São sem dúvida os pobres e empobrecidos pela violência colonizadora do sistema, mas são também e sobretudo os protagonistas proféticos de um legado ancestral que ainda é vital e gerador de vida.
Nesse contexto, não temos mais um protagonismo católico popular, como no caso das CEBs, porque temos uma multiplicidade de religiosidades e espiritualidades envolvidas no processo de reapropriação dos corpos, dos territórios, das identidades religiosas e culturais e da luta contra o Estado e o sistema capitalista.
Para isso seria necessária uma conversão pastoral radical. Entre nós, de fato, a distinção conciliar entre ecumenismo e diálogo inter-religioso ainda é hegemônica, enquanto no Abya Ayala tentamos ir além do paradigma conciliar. Inspirada nas experiências macroecumênicas, em setembro de 1992, durante o I Encontro Continental da Assembleia do Povo de Deus em Quito, Equador, nasceu esta nova palavra: macroecumenismo . Foi Pedro Casaldàliga quem proclamou e fundou este sonho, juntamente com o teólogo José Maria Vigil. Uma palavra nova, nascida do encontro com o povo de Deus, portadores de diferentes culturas, tradições, visões do mundo e da terra, religiões e religiosidades.
Foi a descoberta de outras religiosidades, atacadas, escondidas e pisoteadas pelo processo secular do cristianismo colonial, que nos levou a repensar e reavivar a relação pastoral com os indígenas, os caboclos, os negros, com a chamada religiosidade popular. Foi a escuta dos camponeses, das suas lutas e resistências, que nos levou – e nos conduz – a atitudes autocríticas das dimensões eurocêntricas, eclesiocêntricas e coloniais de um certo cristianismo. São os rostos dos pobres e dos povos indígenas que nos despertam não só para o desafio da igualdade, mas também para o direito à diversidade cultural e religiosa.
O macroecumenismo é absolutamente ortoprático: surge da convivência fraterna e defende a prática de rezar e celebrar a vida em comunidade – e de lutar por ela – na presença de diferentes espiritualidades.
Se estivéssemos verdadeiramente no caminho das “comunidades em saída”, poderíamos, nesta aliança de Jesus com os Orixás e os Encantados, radicalizar a prática da sinodalidade e ir além da sua indispensável e urgente conversão intraeclesial. Ainda hoje, de fato, só a alteridade pobre e colonizada pode ser o antídoto eficaz para a autorreferencialidade.
Mesmo neste contexto, devemos estar atentos ao risco de mitificar povos e comunidades em processos de insurgência. Podemos, se reconhecidos e acolhidos, atentos às dimensões objetivas da luta, acompanhar os processos de organização, articulação e mobilização, sem contudo baixar a guarda e esquecer que a subjetividade é um capítulo essencial na compreensão crítica dos novos desafios colocados pela esse protagonismo inegável e renovado.
Um exemplo da importância teológica da atenção às subjetividades nos é oferecida pela biografia de uma feminista da região de Xapalan, na Guatemala: Lorena Cabnal, originária dos povos indígenas maia e xinka. Feminista comunitária territorial, mulher de luta, contribuiu para a organização indígena das mulheres Xinka e para a formação de uma frente de luta contra a mineração no departamento de Japala. [1]
A luta de Lorena Cabnal assenta em dois pilares: “o meu corpo é o meu primeiro território a defender” e “a defesa do território corpo-terra”, sustentada numa cosmogonia que surge da comunhão sensível de todos os seres vivos. Uma espiritualidade absolutamente alternativa à filosofia ocidental.
O que me surpreende no discurso de Lorena é a afirmação de que a herança ancestral não pode ser mitificada de forma maniqueísta, como o bem absoluto contra o mal extremo da destruição e da opressão colonial. No contexto do confronto anticolonial com o capitalismo predatório e o Estado, ela também vê a necessidade de abordar contextos originais e tradicionais. Ela fala sobre vários patriarcados.
Há o sistema patriarcal que chegou com os conquistadores ibéricos, mas «há um patriarcado ancestral original e para nós é importante revelá-lo a partir daquele lugar de enunciação que é a terra onde nascemos, com as múltiplas opressões do sistema patriarcal. Porque é o sistema patriarcal original que nasceu antes da colonização. É uma forma patriarcal que tem uma configuração diferente. O patriarcado ancestral original tem a sua própria temporalidade, o seu próprio contexto, a sua própria forma de se manifestar. O machismo que um homem indígena expressa não é o mesmo machismo que um homem urbano, um homem branco, um homem europeu, um homem negro expressa.
Não é a mesma coisa. Os fundamentalismos étnicos têm outras configurações e operam de forma diferente. É por isso que é muito difícil chegarmos às comunidades e falar sobre gênero, porque o gênero dificilmente atravessa os corpos das mulheres indígenas. Também podemos revelar, interpretar e contar às irmãs e companheiras indígenas para compreender o gênero no castelhano colonial. Aprendemos de memória e repetimos, e se você nos ensina a escrever, escrevemos. Mas quando você traz o corpo, toca o sangue, toca a terra, é isso que sente, porque somos corpos cosmo-sensíveis. Este patriarcado colonial ocidental não surgiu sozinho.
Lembremos que já houve colonizações na África, e trouxeram corpos de escravos, corpos negros. Mas com estes corpos negros escravizados que trouxeram para estas casas também veio uma forma ancestral patriarcal africana. É por isso que o afro machismo também tem seus caminhos, sua temporalidade e seu contexto. Acho que você precisa sentir essas outras dimensões políticas da corporeidade e suas histórias”.
As subjetividades são tão importantes que até os sonhos noturnos se tornam temas identitários. Lembro-me com saudade de um encontro há alguns anos com os agricultores urbanos da aldeia do Engenho, em São Luís do Maranhão, em que a comunidade saiu à luz e iniciou o processo de reafirmação de sua identidade indígena, escondida por décadas. Os Tremembé, na ocasião, falaram sobre seus sonhos. E eles sonharam como nativos.
Em suma, que a escuta incessante da realidade, que se revela cada vez mais complexa e exigente, apoie o nosso discernimento e o nosso caminho!
[1] Claudia Korol, Feminismo Comunitário de Iximulew-Guatemala. Diálogos com Lorena Cabnal, artigo que reúne conversas com Lorena Cabnal ocorridas na Argentina, durante as atividades de Pañuelos en Rebeldía publicado originalmente no livro “Diálogo de saberes y pedagogía feminista: educación popular”, compilado por Cláudia Korol, publicado pela América Libre, a Buenos Aires, 2017. Tradução: Luiza Dias Flores, Resenha: Indira Cabalero.
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Brasil: Igreja e comunidade de base. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU