13 Dezembro 2023
"No presépio de Greccio idealizado por Francisco havia uma manjedoura, o jumento e o boi. Nada mais. Não queria encenar o nascimento de Jesus, mas lembrar a todos que havia nascido pobre num lugar de gente pobre idêntica a tantos pobres diabos em toda parte do mundo. Hoje, Gaza também é um presépio vazio como aquele de Francisco. Naquela guerra estão todas as guerras. Entre aquelas mortes estão todas as mortes que não podemos justificar", escreve Ascanio Celestini, ator, diretor e escritor, em artigo publicado por Il Manifesto, 12-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Francisco é filho de um rico comerciante. Ele luta na batalha de Collestrada em 1202 contra os nobres de Assis, depois deixa todas as suas riquezas, anda descalço, já não toca mais em dinheiro. Escolhe a pobreza. Ele diz que se você possui algo, você é obrigado a defendê-lo e a se torna violento.
Em 1219 chega ao Egito. Conversa com os cruzados, lembra-lhes o quinto mandamento: não matar. Mas eles não o escutam. Tenta falar também com os muçulmanos, mas a guerra continua mesmo assim.
Francisco volta para casa com a ideia de que não adianta conquistar aquele pedaço de terra onde nasceu Jesus. Que a terra é toda igual e que Belém é apenas um lugar de gente pobre que se parece com muitas outras no mundo. Assim, em 1223 fez seu presépio em Greccio, outro lugar de gente pobre. Um vilarejo no alto Lácio. Na véspera de Natal, há oito séculos, algumas centenas de pessoas foram para a Terra Santa sem sair de Sabina.
Depois de oitocentos anos, aquela terra ainda é um lugar de pobres diabos. Alguém fez o cálculo das crianças mortas por Herodes. Se os habitantes de Belém eram cerca de mil, poderia ter havido cerca de 30 recém-nascidos. Mas querendo matar apenas aqueles do sexo masculino, o número é ainda mais reduzido.
Setenta quilômetros a sudoeste, assistimos a um massacre moderno. Os números são outros porque a tecnologia nos permite ser mais eficientes que os soldados de Herodes. Segundo a OMS: “Em Gaza, em média, uma criança morre a cada dez minutos”. O total de mortos hoje chega a 18 mil e as crianças são quase um terço.
Isso significa que, se deixarmos de fora do número os adultos, percebemos que as crianças mortas pelo exército de Israel é 5 vezes o número total dos israelenses mortos pelas milícias do Hamas.
Não sou especialista e não tenho um conhecimento aprofundado da história daquela terra e daquela gente que a habita. Se tenho que acrescentar a minha opinião àquela de outros comentaristas, prefiro fazê-lo no bar onde todos temos consciência da nossa ignorância, onde sabemos que temos apenas opiniões.
De fato, acontece-me de comentar os números desse conflito. Acontece de fazê-lo no bar. Não é um discurso circunstanciado, não fico lembrando que antes de 7 de outubro a guerra já havia começado há tempo, que Gaza é uma prisão, que o Hamas existe pelo menos desde o final da década de 1980 e que foi apoiado até mesmo por Israel para se contrapor ao Al-Fatah.
Não. Falo apenas do número de mortos. Ultrapassamos tragicamente uma proporção assustadora: mais de 10 palestinos mortos para cada israelense. O bar onde converso com outros clientes fica em Roma. Na minha cidade esses números lembram o março de 1944, o massacre de Fossas Ardeatinas (assassinato de 355 italianos, dez para cada soldado alemão morto pela resistência, ndt). Alguém me questiona: “Estamos dizendo que os israelenses são nazistas?”
Não. Eu nunca diria isso, nunca devemos dizer isso. E por muitas razões. Por exemplo, não quero dizer que os militantes do Hamas são uma resistência. E menos ainda quero que se pense nos membros da resistência romana de 1944 como um bando de terroristas.
No entanto, a desproporção é evidente. E pesa a justificação segundo a qual Israel tem o direito/dever de reagir e que, apesar de meio mundo declarar que se trata de uma carnificina desproporcional, Israel pode considerá-la uma operação militar perfeitamente legal para atingir os terroristas.
E então pergunto aos outros clientes do bar: “Como vocês acham que os palestinos morreram?”
O Hamas queimou as crianças e esquartejou o corpo das mulheres. E o exército israelense como mata as crianças palestinas? Com doces envenenados? E as mulheres palestinas não são esquartejadas quando um foguete israelense derruba a casa? Também o exército israelense queima e esquarteja os corpos, mas não os mostra. As crianças despedaçadas pelas armas israelenses são muito mais daquelas israelenses mortas em 7 de outubro, mas não são filmadas.
Aqui está a diferença. O Hamas deve demonstrar que pode reagir. E deve mostrar cada assassinato para fazê-lo pesar como um pedregulho. A Israel não basta reagir, deve demonstrar que a sua força é dez vezes maior, mas sem mostrar os mortos. Como se fosse um ato de justiça.
Uma consequência natural. Que, aliás, deve ser escondida para não colocar em segundo plano a “verdadeira” motivação, ou seja, o direito/dever de reagir.
“O primeiro buraco negro é o que está acontecendo agora em Gaza – escreve Gideon Levy do Haaretz – A infinita verbosidade das mídias israelenses quase ignora o horrível banho de sangue. Nem uma palavra sobre o desastre de Gaza. Não que seja justificado ou injustificado: simplesmente não existe. O desinteresse é deliberado. Não há relatórios. Nenhuma imagem. Mal e mal uma menção".
O que aconteceria se Israel mostrasse os corpos estraçalhados desses 18 mil palestinos? Recentemente, os Estados Unidos bloquearam a aprovação de uma resolução das Nações Unidas que pedia “um cessar-fogo humanitário imediato” na Faixa de Gaza. O embaixador israelense na ONU Gilad Erdan agradece ao “Presidente Biden por estar firmemente ao nosso lado, hoje, e por demonstrar a sua liderança e seus valores". Quando amanhã alguém me perguntar no bar "você quer dizer que os israelenses são nazistas?", continuarei a responder "Não", isso temos o dever moral de dizer com veemência, mas acrescentarei que a analogia me assusta porque vejo a mesma arma que usam os piores regimes: esconder os mortos e legalizar o crime.
No presépio de Greccio idealizado por Francisco havia uma manjedoura, o jumento e o boi. Nada mais. Não queria encenar o nascimento de Jesus, mas lembrar a todos que havia nascido pobre num lugar de gente pobre idêntica a tantos pobres diabos em toda parte do mundo.
Hoje, Gaza também é um presépio vazio como aquele de Francisco. Naquela guerra estão todas as guerras. Entre aquelas mortes estão todas as mortes que não podemos justificar.
*Ascanio Celestini está em turnê teatral pela sua última obra “Rumba. O jumento e o boi do presépio de São Francisco no estacionamento do supermercado".
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800 anos depois de São Francisco, em Gaza o mesmo presépio dos pobres diabos. Artigo de Ascanio Celestini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU