22 Novembro 2023
Raquel Martí, doutora em História com vasta experiência em cooperação internacional, é diretora do Comitê Espanhol da UNRWA [Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente], uma organização criada em 2005 para apoiar o trabalho da agência da Organização das Nações Unidas para os refugiados e refugiadas da Palestina. Nestas semanas de ataques do Exército israelense à Faixa de Gaza, tornou-se uma das porta-vozes de referência na Espanha para entender a dimensão do genocídio que estão executando.
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 17-11-2023. A tradução é do Cepat.
Como você descreveria o que está acontecendo em Gaza?
Nunca tínhamos visto uma catástrofe humanitária como a de Gaza em toda a história da ONU. Nas palavras do secretário-geral Guterres, nunca se tinha matado tantas crianças, tantos trabalhadores humanitários, tantos profissionais da saúde e tantos jornalistas, em um espaço de tempo tão curto.
O número de crianças assassinadas ultrapassa ao da soma de todos os conflitos do mundo em 2019. Nunca tínhamos visto ocorrer tantas violações ao mesmo tempo. O cerco de 2,2 milhões de pessoas é um castigo coletivo. Está ocorrendo o deslocamento forçado de 1,6 milhão de pessoas, sendo que o da Nakba (em 1948) foi de 700.000. Sendo assim, seja qual for a análise, tudo o que está acontecendo é inaudito.
Desde os ataques israelenses à Faixa de Gaza, em 2014, a situação do povo palestino praticamente desapareceu dos meios de comunicação, tornando-se difícil a repercussão das violações dos direitos fundamentais que continuaram sofrendo. Israel quase alcançou o seu objetivo de convencer a comunidade internacional que era normal aos palestinos sofrer a violência, a ocupação, o apartheid, as prisões... Como você experimentou este período em que, além disso, boa parte do financiamento à ajuda internacional foi direcionada à guerra na Ucrânia?
Em 2018, quando Donald Trump retirou o financiamento da UNRWA, como parte de seu chamado Plano do Século para o conflito israelense-palestino, corremos o risco de desaparecer. Naquele momento, um terço de nosso orçamento anual vinha dos Estados Unidos.
Pensamos que teríamos de fechar o nosso plano de educação, que compreende 700 escolas frequentadas por meio milhão de estudantes. Felizmente, a comunidade internacional reagiu e foi o único ano em que fechamos com déficit zero.
Desde então, encerramos cada exercício com um déficit de mais de 100 milhões de euros e não temos dinheiro para pagar os salários dos 30.000 trabalhadores que temos, dos quais 13.000 estão em Gaza e 5.000 deles seguem trabalhando.
Salários dos quais não só eles dependem, mas toda a sua família.
Sim, somos a maior agência de contratação do Oriente Médio e, além disso, de trabalhadores refugiados palestinos, pois é o primeiro requisito para trabalhar na UNRWA. Temos notado muito isso.
A partir da guerra na Ucrânia, quase não restaram correspondentes e jornalistas freelance na Palestina. Inclusive, foi difícil encontrarmos repórteres que nos acompanhassem para lhes mostrar nosso trabalho. Diziam-nos que a Palestina não era um tema prioritário. Os cidadãos ficaram sem informação.
Então, quando veio o dia 7 de outubro, muitas pessoas não compreenderam o contexto, os antecedentes do que está acontecendo agora em Gaza e o que acontecerá no futuro. Netanyahu já anunciou que quando acabar com o Hamas não sairá da Faixa, que a manterá sob o seu controle.
Observaram um aumento nas doações dos cidadãos?
Sim, de fato, nunca havíamos recebido tantas doações como agora, e não apenas econômicas. Centenas de pessoas nos ligaram para nos oferecer o que sabem fazer: psicólogos para oferecer terapia, artistas para arrecadar fundos... Também recebemos muitas mensagens de apoio, carinho e de frustração pela falta de reação da comunidade internacional.
A UNRWA é uma agência muito peculiar dentro da Organização das Nações Unidas porque está focada em um só povo que, há 75 anos, é refugiado. Como descreveria a sua importância?
A UNRWA é a única agência da ONU com o mandato de atender os seis milhões de refugiados da Palestina. A única ajuda que recebem é por meio da UNRWA e sem ela a sua situação seria muito pior. Oferecemos educação a meio milhão de meninos e meninas refugiados da Palestina que, caso contrário, estariam expostos à exploração infantil, aos abusos sexuais, aos grupos armados.
Temos oito centros de formação profissional onde, anualmente, matriculam-se cerca de 8.000 jovens. Portanto, estamos lhes oferecendo uma oportunidade de emprego, em um contexto com as taxas de desemprego mais elevadas do mundo. Prestamos assistência médica a toda a população refugiada palestina, com uma média de 9 milhões de visitas médicas anuais, e realizamos a imunização de recém-nascidos a crianças de cinco anos.
E tivemos de nos especializar nas emergências, tanto causadas pelo conflito como por tragédias naturais como o terremoto na Síria. Nós que estamos coordenando toda a ajuda humanitária que chega a Gaza, tanto com parceiros locais como internacionais e, portanto, estamos cuidando da vida de 2,2 milhões de pessoas na Faixa.
Como observa que parte da comunidade internacional, em vez de exigir um cessar-fogo, tenha pedido corredores humanitários?
Desde o início, pedimos um cessar-fogo definitivo para salvar vidas. Se tivermos de nos contentar com corredores humanitários, ao menos que nos permitam distribuir a ajuda sem colocar em risco o nosso pessoal e a população civil. Deveria ser imperativo para todos os países pedir um cessar-fogo, porque parece que neste conflito se deu como determinado que toda a população civil de Gaza faz parte do Hamas. E para acabar com o Hamas não deveria ser necessário acabar com toda a população civil do Hamas, que é o que parece estar acontecendo.
É muito frustrante porque os países membros da Organização das Nações Unidas têm a obrigação de denunciar as violações do direito internacional humanitário e de implementar medidas para evitá-las. E até agora não vimos declarações contundentes que denunciem as violações cometidas pelos dois atores: o Hamas e Israel. E apenas um punhado de países pediram um cessar-fogo.
Recentemente, Israel acusou a Organização das Nações Unidas de conivência com o terrorismo do Hamas e a declarou uma organização non grata no país. Até o momento, como tem sido a relação da UNRWA com Israel, sendo que precisa de sua permissão para levar ajuda à Faixa de Gaza e a Cisjordânia? Como a criminalização da ONU pode afetá-los?
A relação sempre foi complicada, apesar de existir um acordo assinado entre a UNRWA e Israel que reconhece o nosso trabalho como agência humanitária essencial para ajudar a população refugiada da Palestina no dia a dia. Temos muitas dificuldades em realizar nosso trabalho diário.
Na Cisjordânia, é comum que os nossos trabalhadores sejam retidos por horas em checkpoints e que não sejam autorizados a chegar a seus locais de trabalho, motivo pelo qual muitas vezes não podemos ajudar a população. Isto significa perdas de milhares de dólares todos os anos, além das crianças que não podem ter aulas com seus professores, de todos os médicos que não podem chegar às clínicas e de inúmeros trabalhadores que não podem ir aos nossos escritórios.
Além disso, Israel tenta violar o princípio da imunidade da ONU, segundo o qual ninguém, muito menos um grupo militar e armado, pode revistar um veículo ou um escritório da UNRWA. Muitas vezes, tentam fazer isto, mas nós recusamos e somos retidos por muitas horas. Também é comum, quando estamos trabalhando nos campos de refugiados, que Israel realize incursões com gases lacrimogêneos proibidos em áreas densamente povoadas e utilize munição real letal para dispersar manifestações, colocando em risco também os nossos trabalhadores.
Outro país fundamental para entender a impunidade de Israel é a Alemanha, que também continua impondo o seu apoio na União Europeia devido ao seu sentimento de culpa pelo Holocausto. Como é a relação da UNRWA com a Alemanha?
Muito boa, é o maior doador europeu e o segundo em todo o mundo. E sempre defendeu o financiamento da UNRWA pela União Europeia.
Qual é a sua opinião acerca dos dirigentes israelenses justificarem os crimes contra a humanidade que o seu Exército comete contra a população civil, dizendo que o Hamas utiliza escolas e hospitais como escudos humanos?
Somos uma agência humanitária e não podemos confirmar e nem desmentir que esses dados sejam verdadeiros. Contudo, mesmo que fosse o caso, Israel não poderia atacar um hospital, a menos que demonstrasse que se trata de um risco iminente da presença do Hamas no subsolo das instalações, algo que não demonstrou.
Contudo, previamente, teria que realizar uma evacuação eficaz dos profissionais da saúde, dos pacientes e das pessoas refugiadas em suas instalações. Os pacientes teriam de ser transferidos em veículos médicos para locais seguros onde pudessem continuar sendo mantidos com vida. E não existem, a não ser que sejam retirados da Faixa, pois os hospitais do sul estão em colapso, sem eletricidade, sem medicamentos e sem materiais médicos.
Estão atacando hospitais onde há milhares de pessoas refugiadas e onde já morreram mais de trinta pacientes, incluindo três bebês, por falta de eletricidade para as máquinas, por desidratação, inanição... Os profissionais médicos informaram a Organização Mundial da Saúde de que há franco-atiradores israelenses disparando das janelas contra os pacientes e que disparam contra os que tentam fugir com bandeiras brancas. No pátio do maior hospital de Gaza, há mais de 100 cadáveres em estado de decomposição e estão sendo comidos pelos cães, pois não podem ser enterrados devido aos ataques.
Você também leciona sobre o Oriente Médio. Como os seus alunos reagem quando menciona todas as violações sistemáticas do direito internacional e do direito internacional humanitário cometidas pelo Estado de Israel, há décadas?
Não entendem que Israel possa agir assim, que não haja nenhuma consequência, nem que nenhum país faça algo para acabar com esta situação. A ocupação da Palestina por Israel é ilegal, tornou-se crônica e não há sinais de que esta situação mudará.
O Comitê Espanhol da UNRWA é uma organização com uma longa relação com a UNRWA e que a apoia no financiamento. Como funciona essa cooperação?
Somos uma ONG vinculada à UNRWA, trabalhamos exclusivamente para eles e o nosso mandato é arrecadar fundos para manter os programas no local, sensibilizar os cidadãos e a opinião pública sobre o conflito e a situação dos refugiados da Palestina, educar em direitos humanos e nos valores da Organização das Nações Unidas.
E existem comitês como este em muitos países?
Não, apenas nos Estados Unidos e este na Espanha.
Desde o dia 7 de outubro, os bombardeios israelenses acabaram com a vida de pelo menos 102 trabalhadores da UNRWA, na Faixa de Gaza. Como está vivenciando este genocídio?
Psicologicamente, é muito duro porque tenho que me informar continuamente sobre o que está acontecendo e isso implica em ter contato com muitos vídeos e fotos. Além disso, falo diariamente com colegas de trabalho e amigos de Gaza e todos os dias são uma tragédia. Isto quando respondem ao telefonema, o que significa uma alegria por estarem vivos.
Há alguns dias, eu falava com a diretora do Centro de Formação Khan Younis e ela me contou que tinham matado o seu neto. Além disso, estão vivendo a frustração de serem trabalhadores humanitários sem nada a distribuir para as pessoas que exigem algo para comer e água. A ajuda que Israel permitiu entrar em Gaza serviu apenas para entreter os meios de comunicação, mas não aliviou, em absoluto, a situação catastrófica em que a população se encontra.
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“Não tínhamos visto uma catástrofe humanitária como a de Gaza em toda a história da ONU”. Entrevista com Raquel Martí - Instituto Humanitas Unisinos - IHU