25 Setembro 2023
“É hora de nos perguntarmos como a escola e a universidade vão formar os indivíduos que amanhã serão capazes de garantir o controle do seu destino e a responsabilidade pelo mundo, uma educação que abra um futuro desejável e devolva uma terra habitável. Podemos enunciar o sentido geral da transformação desejável: avançar para uma sociedade que, em todas as áreas, amplie as capacidades políticas dos seus membros, garanta a sua igualdade social e o respeito pelos ambientes de vida”. A reflexão é de Christian Laval, em artigo publicado por Rebelión, 22-09-2023. A tradução é do Cepat.
O texto a seguir é resultado de uma conferência que foi apresentada no dia 23 de maio de 2023 num colóquio online sobre “A eliminação da filosofia e a abordagem por competências. Experiências mundo afora”, que foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Filosófica da Universidade Nacional Mayor de San Marcos do Peru.
Christian Laval é professor emérito de Sociologia, Laboratório Sophiapol, Universidade Paris Nanterre.
Começarei com uma reflexão bastante fundamental de Kant sobre a educação:
“Aqui está um princípio da arte de educar que os homens, especialmente aqueles que têm a tarefa de planejar a educação, devem manter vivo na mente: não devemos educar as crianças de acordo com o estado atual da espécie humana, mas de acordo com o seu estado futuro, possível e melhor (Kinder sollen nicht dem gegenwärtigen, sondern dem zukünftig möglich bessern Zustand des menschlichen Geschlechts), ou seja, de acordo com a Ideia de humanidade e seu destino total. Este princípio é de grande importância. Normalmente, os pais educam os filhos apenas para adaptá-los ao mundo atual, mesmo que este esteja corrompido. Pelo contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que um estado melhor possa emergir no futuro” [1].
Vivemos tempos particularmente sombrios para a democracia. Não apenas nos países totalitários ou sujeitos a regimes ou governos autoritários. Mesmo nas antigas democracias liberais e representativas, as liberdades públicas são postas em questão. A causa mais profunda desta crise bastante generalizada da democracia contém todas as formas de miséria social, de enfraquecimento político e de crescimento das desigualdades na fase neoliberal da organização política e econômica.
Para os educadores, os tempos são, portanto, particularmente difíceis. Não só pela sua situação econômica, mas também por causa das pressões políticas que sofrem, das denúncias injustificadas, por vezes da violência ou da repressão do Estado.
Estes tempos sombrios exigem uma forte reação de todos os que acreditam na democracia, na verdadeira democracia, aquela que John Dewey nos ensinou a compreender como democracia radical. Ele se preocupou em refazer por todos os meios o vínculo entre educação e democracia e entre filosofia, educação e democracia. Talvez possamos pensar que refletir sobre a educação democrática nestes tempos sombrios para a democracia seja um curioso paradoxo ou uma tentativa contra o tempo.
A crítica do que existe ou a crítica das reformas de inspiração neoliberal são necessárias mas insuficientes, porque são reativas, defensivas. Contudo, é aconselhável manter o rumo do futuro, manter uma lógica de transformação e revolução. Nada é mais importante do que ser propositivo para não apoiar a agenda dos inimigos da democracia. E porque se trata de preparar o futuro das novas gerações, como pensava Kant.
Ações propositivas, mas em que direção? Para repensar e refundar a educação sobre bases realmente democráticas. E para isso devemos refazer coletivamente, mas de uma nova forma, o que John Dewey fez há pouco mais de um século quando escreveu este monumento do pensamento, que continua a ser a sua obra-prima, Democracia e educação, de 1916.
A revolução escolar na qual devemos pensar agora é um componente de uma revolução democrática mais geral. Precisamos de uma revolução democrática e não apenas de uma defesa das instituições existentes. E esta revolução, sabemos hoje que deve ser democrática, social e ecológica. A magnitude das desigualdades comparáveis às do final do século XIX, a total irracionalidade do governo e das sociedades que visam o lucro e a concorrência, o colapso do clima e da biodiversidade, todos estes fenômenos estão interligados. Dadas as ameaças que pesam sobre os ecossistemas dos quais os seres humanos fazem parte, não são apenas os modos de consumir ou de trabalhar que devem ser mudados, mas também os valores coletivos, a forma das relações sociais e das instituições políticas.
É, portanto, na perspectiva desta ruptura que devemos considerar o conteúdo da indispensável revolução escolar. Diria mesmo que é no pós-neoliberalismo, no pós-capitalismo que devemos imaginar a educação democrática.
É hora de nos perguntarmos como a escola e a universidade vão formar indivíduos que amanhã serão capazes de garantir o controle do seu destino e a responsabilidade pelo mundo, uma educação que abra um futuro desejável e devolva uma terra habitável.
Podemos enunciar o sentido geral da transformação desejável: avançar para uma sociedade que, em todas as áreas, amplie as capacidades políticas dos seus membros, garanta a sua igualdade social e o respeito pelos ambientes de vida. Imaginar o que deveria ser a instituição de ensino numa democracia social e ecológica do século XXI, esta é a tarefa coletiva para a qual aqui tentamos contribuir.
O primeiro grande problema para nós hoje é o objetivo social e político da educação. Hoje o propósito é a economia. Esta é a razão última da educação neoliberal. E todos os cálculos em termos de investimento e lucro existem para dar sustentação a este sentido central da educação hoje: o objetivo neoliberal da educação é a adaptação dos sistemas educativos aos imperativos econômicos e, mais precisamente, à lógica da economia de mercado.
O neoliberalismo escolar é o primado da economia, segundo um discurso falsamente democrático, na realidade ao mesmo tempo utilitário e malthusiano. O conhecimento seria demasiado abstrato e distante da “vida real” (ou seja, da vida profissional), seria adequado centrar a aprendizagem na aquisição das competências úteis para a sociedade, tanto quanto possível em relação às empresas. Ou seja, a concepção utilitarista dos estudos e o objetivo da empregabilidade seriam o caminho democrático por excelência. Um novo malthusianismo escolar vergonhoso impôs-se gradualmente, o das “competências” e dos “fundamentos básicos”, que está ligado ao produtivismo dominante.
Na verdade, no discurso oficial sobre educação trata-se cada vez menos do “espírito crítico” ou da “educação cidadã” e cada vez mais do “capital humano” e da “cultura empresarial”, das “competências”, dos “skills “. A educação é cada vez mais considerada um bem em grande parte privado, sujeito a um discurso econômico padronizado; o aluno e o estudante são vistos como “recursos humanos”, como pura e simples força de trabalho. O objetivo da eficiência econômica triunfa sobre o da emancipação humana. Em suma, a escola, assim como o hospital e a maioria dos serviços públicos, está sujeita à lógica invasiva da rentabilidade e da competitividade a que se têm dedicado líderes políticos tanto de direita como de esquerda.
Desde o final do último terço do século XX, a problemática neoliberal foi gradualmente imposta no campo escolar em todo o mundo, de acordo com “uma nova ordem educacional mundial”. Isto representou uma mudança muito importante. É claro que os objetivos econômicos nunca estiveram completamente ausentes nos períodos anteriores, mas durante muito tempo a educação teve como finalidade a construção do Estado-nação. O objetivo era político, e mais ou menos democrático, dependendo do caso. Criamos a nação através da escola, reproduzindo para boa parte da sociedade, segundo um dualismo social muito firme, a escola das elites e a escola das massas.
A inflexão neoliberal no final do século XX corresponde, portanto, a um momento muito particular: o próprio Estado está envolvido na concorrência econômica generalizada que caracteriza a globalização econômica. E é por isso que o propósito da educação muda em benefício da economia. Numa palavra, a produção do capital humano torna-se mais importante que a formação do cidadão nacional. Daí o caráter central das “competências”.
Na realidade, na maioria dos casos, estamos diante de uma fórmula de compromisso, o que explica a importância que vão ganhando as dimensões econômicas (como a primazia das “competências”) e as dimensões patrimoniais e nacionais, mesmo as dimensões nacionalistas e autoritárias, na medida em que o neoliberalismo oferece uma face cada vez mais estatista, autoritária e brutal.
A transformação desta escola, em grande parte sujeita a imperativos econômicos, é acompanhada por uma certa despolitização da questão escolar, por uma tecnicização dos problemas e das “soluções”.
Precisamos, portanto, repolitizar a questão dos objetivos da escola e, por isso, ir na contracorrente de todos os discursos que querem abstrair a escola da sociedade e querem ver nas crises da instituição uma questão de métodos e conteúdos pedagógicos, incluindo a gestão burocrática. Mas é igualmente aconselhável opor-nos à repolitização reacionária a que assistimos hoje. Um discurso conservador gostaria de obstruir a crise da escola com métodos autoritários, referências patrióticas, uma disciplina “antiquada” por vezes combinada com um cientificismo “neuronal”, como temos visto um pouco em todas as partes do mundo.
A pergunta mais importante, e que não é nova, e que inspirou numerosos pensadores educacionais, especialmente muitos socialistas desde o século XIX, é saber o que é educar para a democracia.
Mas o que é hoje uma democracia radical e o que ela exige da educação? A democracia designa para nós a característica de uma sociedade em que o princípio do autogoverno se estende a todas as instituições territoriais e produtivas, a todas as atividades coletivas, sejam elas econômicas, culturais, associativas ou educativas. A democracia entendida desta forma pressupõe a capacidade dos cidadãos de refletirem sobre as instituições desejáveis, seu poder coletivo para mudá-las se já não lhes convierem. Numa palavra, a democracia é para nós sinônimo do poder instituidor dos cidadãos e dos produtores, o que não dispensa a auto-reflexividade em todas as instituições da sociedade, sejam elas políticas ou econômicas.
Compreendemos então o papel central da educação numa sociedade que faz do autogoverno o seu princípio geral. Não deveria apenas “socializar” os jovens, como diz a sociologia, mas também deveria dar-lhes o desejo e os meios para participarem do desenvolvimento de regras coletivas, para se envolverem na discussão e na tomada de decisões comuns. Uma sociedade verdadeiramente democrática é específica na medida em que a instituição social e política é o reflexo consciente fruto de um coletivo instituinte.
A tarefa da educação democrática é, portanto, não só fazer com que cada indivíduo se sinta membro de um grupo em relação ao qual tem obrigações, mas também ensiná-lo a tornar-se um participante ativo na determinação coletiva das regras de vida em comum e, de forma mais geral, um participante ativo da vida social e cultural, da sua renovação e da sua criatividade. E podemos acrescentar: um ser plenamente responsável pelo mundo em que vai viver.
A grande questão prática é saber qual deveria ser “a experiência democrática” na escola. Fazer a experiência da democracia na escola significa vivenciar a inteligência coletiva em relação ao agir em conjunto, aprender a questionar os conhecimentos e o mundo como um todo e abrir caminho para suas transformações. Numa palavra, deve ajudar na formação de “mentalidades democráticas”, segundo a expressão de Paulo Freire.
A originalidade de uma educação democrática, portanto, é permitir que os estudantes experimentem a autonomia individual e o autogoverno coletivo. Não se trata de uma questão de doutrina, mas de prática pedagógica e de organização institucional: “todo processo de educação que não visa a desenvolver ao máximo a atividade própria dos alunos é um mau processo”, indica com razão Castoriadis [2].
Chegou a hora de passar das mobilizações defensivas para ações propositivas. Os movimentos de resistência às reformas neoliberais no campo escolar e universitário, numerosos em todo o mundo há pelo menos duas décadas, também estabeleceram o princípio básico de uma alternativa à privatização e à submissão aos imperativos capitalistas: o conhecimento é comum, é não deve ser reservado a uma elite, nem deve ser objeto de qualquer forma de “cercamento” por dinheiro ou lugar de residência.
Para além das razões iniciais das mobilizações, o sentido de todos estes movimentos assenta no “princípio dos princípios” segundo o qual “a educação é um bem comum, não uma mercadoria”.
A pergunta é precisamente saber o que implica tal exigência. Quais são as suas condições e as suas implicações concretas nos conteúdos escolares, na pedagogia e na arquitetura institucional?
Primeiro, como devemos entender este tipo de proposição que ouvimos em todas as partes do mundo: a educação como um “bem comum”. Fazer da educação, da cultura ou da saúde, e de outras áreas da vida humana e social, um “bem comum” refere-se a uma visão política diretamente contrária à concepção de propriedade dominante nestas áreas e nestas atividades, dimensão que nunca é abarcada quando falamos de “ capital humano” ou “capital de saúde”. Dizer que a educação é um “bem comum”, ou seja, que não pode ser apropriada, que nenhum indivíduo, nenhum grupo, nenhum Estado pode reivindicar para si ou tornar-se seu proprietário.
A educação pertence a todos por princípio. Mas este “bem comum” educativo só pode encontrar consistência numa instituição com características muito particulares. Para que a educação seja verdadeiramente um “bem comum”, a própria instituição educativa deve ser concebida como um comum, isto é, como um espaço institucional que seja ao mesmo tempo autogovernado pelos coparticipantes da atividade educativa, e governado pelo direito de uso exercido por uma coletividade sobre os recursos educacionais produzidos, mantidos e disponibilizados por esta instituição.
O primeiro tema refere-se à condição primordial da educação democrática: a defesa da liberdade de pensamento, cuja tradução institucional é chamada de liberdades acadêmicas. A escola deve ser totalmente emancipada dos poderes que até agora procuraram subjugá-la e instrumentalizá-la, sejam eles religiões, governos ou empresas capitalistas. Neste sentido, toda a educação, desde o jardim de infância até a universidade, deve ser regida pela regra absoluta da liberdade da mente, condição de todo o conhecimento racional, e para isso deve estar integrada numa instituição independente dos poderes que chamamos de Universidade Democrática.
A educação democrática exige a mais completa liberdade de pensamento no que diz respeito aos poderes organizados da sociedade, sejam estes religiosos, político-partidários, econômicos, ideológicos e estatais. A educação democrática é acima de tudo uma educação livre. Esta é a condição absoluta. Sua primeira máxima é herdada do Iluminismo: “Sapere aude” [Ouse conhecer], ouse usar o seu entendimento, como pede Kant no ensaio O que é o Iluminismo?, de 1784. A proibição do uso da razão equivale à privação da liberdade pela submissão às mentiras, superstições e, mais geralmente, à “direção de outros”.
A educação livre deve ser assim com relação à religião, mas também aos governos e às empresas.
A “economia do conhecimento” introduziu não mais liberdade, mas mais controle em nome da finalização produtiva das atividades do conhecimento. Quanto mais a educação foi integrada na lógica econômica, menos liberdade os professores e pesquisadores tiveram para escolher os seus temas de pesquisa e o conteúdo do seu ensino. As condições de trabalho no domínio do ensino e as suas liberdades deterioraram-se pouco a pouco à medida que foi imposta uma “gestão” de tipo empresarial, o que burocratizou consideravelmente a sua profissão. O prolongamento do tempo de trabalho, o aumento e a multiplicação de tarefas, a recorrente pressão da avaliação e da concorrência entre estabelecimentos e, no ensino superior, laboratórios para a obtenção de créditos reduziram o que deveria ser a condição fundamental de uma profissão do conhecimento, a verdadeira autonomia.
Uma lição deve ser tirada para uma escola verdadeiramente livre: os conteúdos do ensino pressupõem sempre um distanciamento justo da realidade econômica e social e nunca deve responder aos imperativos da eficácia imediata. Condorcet apresentou o princípio: “o objetivo da educação não pode mais ser consagrar as opiniões estabelecidas, mas, pelo contrário, submetê-las ao livre exame das sucessivas gerações, cada vez mais ilustradas” [3]. Da mesma forma, a escola deve ser concebida como uma instituição de contrapoder diante de todos os poderes sociais, econômicos, religiosos ou políticos dominantes que procuram impor à sociedade os seus interesses e as suas ficções.
Dois papéis: promover a liberdade de pensamento e redefinir uma nova coerência antropológica.
O primeiro papel da filosofia é preservar a independência da instituição educacional das intrusões dos poderes. Contradiz-se a ideia republicana em termos de educação ao identificá-la com o seu controle pelo Estado. Condorcet acreditava na legitimidade das sociedades cultas, as únicas, na sua opinião, capazes de adaptar a educação às “verdades mais prováveis” de uma época: “É a única forma de garantir que a educação seja regulada pelo sucessivo progresso das ilustrações, e não no interesse das classes poderosas da sociedade e privá-las da esperança de obter do preconceito o que a lei lhes nega” [4].
Kant tinha uma ideia republicana da universidade. Na introdução à primeira secção de Conflito das Faculdades (1794), Kant define a Universidade como “uma espécie de república culta” (das gemeine Wesen) composta por todos os “professores públicos” nomeados nos diferentes setores científicos. Esta república deveria possuir a sua autonomia porque “apenas os eruditos podem julgar os eruditos como tais”. A universidade formaria assim um “corpo de eruditos” ao lado do qual poderiam existir “eruditos livres” que não pertencem a esse corpo, mas que constituem certas corporações livres, chamadas academias ou sociedades científicas, ou que vivem no “estado de natureza do conhecimento” e lidam como entusiastas da expansão ou disseminação do conhecimento.
Lembremos, para além das características de uma época passada, esta ideia muito importante: a educação faz parte de um espaço institucional que é próprio, que tem suas regras, seus valores e sua ética. Foi, na minha opinião, Jacques Derrida quem melhor dimensionou esta afirmação da liberdade de pensamento que já encontramos de forma limitada em Kant ou Condorcet.
Para Derrida, todo professor revela em sua profissão um espaço de liberdade onde tudo pode ser questionado e discutido incondicionalmente. É o que ele chama de “universidade incondicional”: “esta universidade exige e deve ser reconhecida em princípio, além do que se chama de liberdade acadêmica, uma liberdade incondicional de questionamento e de proposição, incluindo, além disso, o direito de dizer publicamente tudo o que exige busca, conhecimento e reflexão da verdade” [5]. Para Derrida, esta universidade deveria ser, de agora em diante, através das práticas próprias dos seus membros, o indispensável “lugar de resistência crítica – e mais do que crítica – contra todos os poderes dogmáticos e injustos de apropriação” [6].
Esta resistência incondicional é suficiente para definir o espírito da Universidade democrática se lhe somarmos duas dimensões: a universalidade do seu acesso, não apenas às gerações mais jovens, mas a todos os cidadãos que desejam dedicar-se à aprendizagem e à pesquisa; e o seu carácter cosmopolita, isto é, a sua abertura à cooperação de todas as nações e à livre circulação global do conhecimento.
A universidade assim concebida é um lugar de oposição, no sentido que Derrida dá a esta palavra: “incondicional, tal resistência poderia opor a universidade a um grande número de poderes: aos poderes do Estado (e, portanto, aos poderes políticos do Estado-nação e sua fantasia de soberania indivisível: em que a universidade seria não apenas cosmopolita mas universal, estendendo-se assim para além da cidadania global e do Estado-nação em geral), aos poderes econômicos (às concentrações de capital nacional e internacional), aos meios de comunicação, aos poderes ideológicos, religiosos e culturais, etc., em suma, a todos os poderes que limitam a democracia por vir” [7].
O direito ao conhecimento e o direito político de controlar os governantes, de deliberar, de decidir, de agir em conjunto estão vinculados entre si. Esta universidade democrática, que deve ser protegida como instituição, mas alargada em princípio a toda a sociedade, deve, em última análise, andar de mãos dadas com a democracia direta e real, dando a todos os meios para julgar, deliberar, propor e decidir. Não há razão para limitar o princípio da liberdade incondicional apenas ao ensino superior, ou ao ensino da filosofia no último ano do ensino médio. É toda a escola que deve usufruir desta liberdade de questionamento.
O segundo papel da filosofia é contribuir para dar uma nova coerência antropológica à educação.
A escola hoje é ordenada por duas lógicas mais complementares do que contraditórias: o neoliberalismo e o antigo nacionalismo autoritário. Como a democracia poderia dar nova coerência aos conhecimentos ensinados? Que “princípio educativo”, para retomar a expressão de Gramsci, deveria reger a educação? Os modelos religiosos, positivistas e produtivistas do homem, todas estas figuras antropológicas, não terão mais qualquer relevância numa sociedade democrática e ecológica. O desafio da democracia futura é vincular o conhecimento dos homens na sociedade e os processos naturais. Resumindo, o chamado “Antropoceno”, e o que alguns chamam mais precisamente de “Capitaloceno”, requer uma nova coerência de conhecimentos na era das catástrofes climáticas engendradas pelo capitalismo neoliberal.
A transformação deve levar ao “espírito” da educação: modificar a imaginação industrialista e produtivista que fez as pessoas acreditarem que os homens poderiam ser os “senhores e dominadores da natureza” sem consequências para os ecossistemas. A situação atual convida a uma nova “antropologia” que daria sustentação à articulação fundamentada da filosofia, da história-geografia, das ciências sociais e das ciências da vida e da terra. A grande novidade dessa antropologia seria a importância que daria ao estudo objetivo dos diferentes sistemas sociais, culturais e econômicos que compuseram a história humana até os dias de hoje, abrindo espaço para as diversas relações, de acordo com as culturas e crenças, das sociedades com os ambientes naturais.
Ela faria mesmo dessas relações das sociedades com os seus ambientes naturais o novo fio condutor da educação, rompendo com as concepções ocidentais tradicionais baseadas no domínio tecnocientífico da natureza concebida como um reservatório de recursos disponíveis, uma visão hoje no mínimo inadequada às questões que surgirão para as novas gerações. Não estamos propondo aqui acrescentar “uma componente ecológica” aos ensinamentos existentes, mas antes reconhecer e questionar a especificidade da “ontologia” ocidental, para retomar o conceito de Philippe Descola, na sua ligação com a organização econômica capitalista, para compreender as consequências de sua expansão no planeta durante cinco séculos.
Toda a consciência histórica é afetada pelo capitaloceno porque a finitude é a partir de agora a marca no lugar e no espaço da eliminação do desenvolvimento das forças produtivas e da extensão dos mercados, e são todos os conhecimentos que foram interrompidos pouco a pouco. Agora, deste ponto de vista, já não é possível considerar a “natureza” externa como se fosse composta apenas por processos totalmente independentes da história humana. É neste espírito que a ligação entre as partes separadas da cultura, entre as ciências naturais e as ciências do homem, poderia ser reconsiderada, e é a esta recomposição do conhecimento que a filosofia no ensino poderia ser dedicada.
[1] Kant, Réflexions sur l’éducation, Paris, Vrin, 1980 (1803), p. 77.
[2] Cornelius Castoriadis, “Psychanalyse et politique”, Le Monde morcelé, Les Carrefours du labyrinthe III, Seuil, Paris, 1990, p. 146.
[3] Condorcet, Cinq mémoires sur l’instruction publique, Garnier-Flammarion, Paris, 1994, p. 86-87.
[4] Op. cit., p.170.
[5] Jacques Derrida, L’Université sans condition, Galilée, Paris, 2001, p. 11-12.
[6] J. Derrida, ibid., p. 14.
[7] J. Derrida, ibid., p. 16.
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Da escola neoliberal à educação democrática. O papel da filosofia na revolução democrática da educação. Artigo de Christian Laval - Instituto Humanitas Unisinos - IHU