31 Agosto 2023
“As empresas de combustíveis fósseis utilizam cada vez mais as compensações de carbono para atestar que estão alcançando a neutralidade climática. Entretanto, estudos revelam que a compensação de carbono viola os direitos dos povos indígenas através da desapropriação de terras, da violência, da militarização dos seus territórios ancestrais, da perda de acesso a recursos naturais vitais e da privação de direitos”. A reflexão é de Nathaniel Rugh e Marcel Llavero-Pasquina, publicado por The Ecologist e reproduzido por Ctxt, 30-08-2023. A tradução é do Cepat.
Nathaniel Rugh e Marcel Llavero-Pasquina são pesquisadores do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autônoma de Barcelona (ICTA-UAB) e membros da equipe do Atlas Global de Justiça Ambiental.
As empresas de combustíveis fósseis utilizam cada vez mais as compensações de carbono para atestar que estão alcançando a neutralidade climática. Gigantes do petróleo e do gás como a BP, a Shell, a Total Energies e a Eni utilizaram créditos de carbono para fornecer os combustíveis fósseis chamados “neutros em carbono”.
Além disso, as estratégias de longo prazo para alcançar a neutralidade climática da Eni, Shell, Total Energies, Chevron e ExxonMobil incluem quantidades substanciais de compensação de carbono.
De acordo com um relatório publicado pela Shell, até 2030 serão compensadas até 1,5 milhão de toneladas de CO2 em todo o mundo, num valor que varia entre 10 e 40 bilhões de dólares, acima dos 2 bilhões de dólares em 2021.
Agora, quatro estudos de caso registrados no Atlas Global de Justiça Ambiental (EJAtlas) revelam que a compensação de carbono viola os direitos dos povos indígenas através da desapropriação de terras, da violência, da militarização dos seus territórios ancestrais, da perda de acesso a recursos naturais vitais e da privação de direitos.
Ao mesmo tempo, todos os projetos estudados vendem empréstimos inúteis e, em três deles, o rendimento está sujeito a acordos financeiros obscuros que marginalizam e excluem as comunidades locais.
As empresas de combustíveis fósseis compram créditos de carbono no mercado voluntário para compensar as emissões associadas aos seus produtos. Cada crédito de carbono compensa uma tonelada de CO2.
Os créditos são produzidos por projetos privados de compensação que visam absorver CO2, como as plantações florestais, ou por iniciativas que procuram evitar emissões, como projetos de energias renováveis ou de prevenção do desmatamento, também chamados de projetos REDD+, que representam aproximadamente 40% dos créditos de carbono do mercado voluntário.
Os certificadores de créditos de carbono, em princípio, garantem que qualquer projeto de prevenção de emissões traz benefícios climáticos reais.
A chave para conceder créditos de carbono de um projeto REDD+ é determinar a taxa básica de desmatamento em zonas de referência que tenham características semelhantes às do projeto.
A taxa de desmatamento observada na área do projeto é então subtraída da base de referência para determinar a “adicionalidade” – desmatamento evitado – que resultou da implementação do projeto.
No entanto, uma pesquisa conjunta do The Guardian, Die Zeit e Material Source revelou que 94% das compensações de carbono REDD+ certificadas pela Verra, a principal certificadora de créditos de carbono do mundo, são “inúteis”.
Basicamente, as bases de referência são calculadas por conveniência e os programas de conservação florestal não proporcionam qualquer redução adicional de CO2 que possa ser medida.
A Verra recebe uma comissão por cada crédito que aprova, o que cria um claro conflito de interesses que incentiva a superestimação dos créditos de carbono que podem ser vendidos.
Os críticos argumentam há muito tempo que as compensações de carbono nada mais são do que “inúteis”. Mas para que servem, então? Para que a indústria dos combustíveis fósseis os venda sem culpa. Até mesmo alguns corretores de créditos de carbono qualificaram os combustíveis fósseis neutros em carbono de "absurdos óbvios".
Nos quatro estudos de caso recentes adicionados ao EJAtlas, descobriu-se que todos os projetos de REDD+ investigados tinham uma “base de referência inflacionada” que exagerava enormemente a necessidade de evitar o desmatamento.
Nos casos do Parque Nacional Cordilheira Azul (PNCAZ), no Peru, e da Reserva Indígena Unificada-Selva de Matavén, os pesquisadores não encontraram “adicionalidade”, porque as áreas já tinham estatuto de proteção legal garantido antes do estabelecimento dos projetos REDD+.
Com outras palavras, o projeto de carbono não pode parar o desmatamento numa área que já tem medidas preventivas em vigor.
Da mesma forma, nos casos de Kariba REDD+, no Zimbábue, e do Projeto Florestal Comunitário de Luangwa, na Zâmbia, as áreas do projeto estão localizadas em torno de Parques Nacionais que têm estatuto de proteção. Em Luangwa, descobriu-se que os principais fatores de desmatamento na área de referência eram completamente diferentes daqueles da área do projeto.
Supõe-se que os rendimentos da venda de compensações por emissões de carbono beneficiem as comunidades que vivem na área do projeto, proporcionando alternativas aos meios de subsistência que, em teoria,provocam o desmatamento.
Contudo, é comum que os comerciantes de carbono que fazem a mediação entre as empresas privadas e as organizações que administram os projetos de compensação recebam uma parte significativa das vendas.
A corretora de créditos de carbono South Pole, que assessora a Verra, também recebe uma comissão por cada crédito vendido a compradores internacionais.
A South Pole recebeu duras críticas depois de se descobrir que um dos seus principais projetos, o Kariba REDD+, emitiu até 30 vezes mais crédito do que devia. As pesquisas revelaram que os executivos da South Pole sabiam que isso era um problema, e alguns funcionários chegaram a pedir demissão devido às revelações.
Além disso, a South Pole ganhou 73% mais em comissões do Kariba REDD+ do que havia sido formalmente acordado através da especulação no mercado de carbono.
As ONG e as empresas que implementaram os projetos REDD+ nos quatro estudos de caso têm contratos de distribuição financeira não verificáveis.
Estes intermediários devem garantir que as receitas da venda de créditos sejam distribuídas às comunidades mediante acordos juridicamente vinculantes, mas na ausência de reguladores, as comunidades territoriais estão à mercê dos promotores dos projetos.
Em ambos os casos da África, descobriu-se que as empresas do projeto estavam registradas em paraísos fiscais, e até se criou uma criptomoeda num paraíso fiscal para vender os créditos do projeto Kariba REDD+.
No caso do PNCAZ, as comunidades quéchuas não têm conhecimento claro das vendas de créditos de carbono e não receberam qualquer benefício financeiro ou econômico da ONG que administra o projeto.
A falta de transparência das transações financeiras deixa uma enorme lacuna de responsabilização que transforma os beneficiários previstos das comunidades indígenas e territoriais em potenciais vítimas da corrupção.
No PNCAZ, algumas comunidades agrícolas foram expulsas das terras para dar lugar à área protegida e, em vez de expulsar algumas aldeias quéchuas, os limites do parque foram traçados de tal forma que as excluíram da área protegida.
Para estas comunidades quéchuas, isto significava que estavam impedidas de caçar, pescar, coletar ou cultivar no seu território ancestral sem licenças oficiais que limitassem o número de dias em que podem entrar na área protegida, resultando na perda de meios de subsistência e inclusive de desnutrição em alguns casos.
As comunidades quéchuas também sofrem a invasão dos seus territórios por madeireiros ilegais e produtores de coca e, quando os membros da comunidade denunciam estes casos, são ignorados pelas autoridades locais porque não têm direitos de posse da terra legalmente reconhecidos. Até mesmo membros da comunidade quéchua receberam ameaças de morte de traficantes de drogas para mantê-los calados.
Em Kariba e Luangwa, os estudos de caso revelaram a privação de direitos das comunidades locais no que diz respeito ao gerenciamento do projeto.
Os membros da comunidade não compreendem o projeto e perdem a sua relação tradicional com os seus territórios por medo de patrulhas armadas e de restrições sobre quem pode usar a terra para procurar alimentos ou caçar. No entanto, estas restrições não se aplicam a clientes pagantes que viajam para as áreas do projeto para turismo de safari.
No caso de Luangwa, a Eni tornou-se inclusive membro do conselho de administração do projeto REDD+, sem cumprir as promessas feitas aos moradores.
No início deste ano, uma equipe de notícias italiana descobriu que a gigante petrolífera tinha construído uma nova sala de aula em Luangwa, mas se recusou a entregar o equipamento à escola, deixando-a vazia durante mais de um ano.
Os padrões da ONU exigem processos de consentimento livre, prévio e informado (CLPI) com as comunidades indígenas para implementar projetos de REDD+.
No entanto, no caso do PNCAZ, as comunidades quéchuas venceram uma ação judicial em abril deste ano contra o governo peruano por violação dos seus direitos ao CLPI, o que levou o Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial a exigir formalmente medidas urgentes ao Estado.
Que comunidade daria seu consentimento se entendesse que a venda de compensações de carbono justificaria mais emissões?
Em Luangwa, um dos parceiros do projeto, a USAID, chegou a admitir que o processo de CLPI era insuficiente e, em todos os estudos de caso, as comunidades territoriais não compreenderam o conceito abstrato de créditos de carbono.
A questão permanece: que comunidade daria seu consentimento se entendesse que a venda de compensações de carbono justificaria mais emissões e, em última análise, representasse a ameaça de sobrevivência a longo prazo dos seus territórios devido às consequências do aumento das temperaturas e de eventos climáticos extremos?
No caso da Reserva Matavén, as 16 comunidades indígenas criaram uma estrutura política que as ajudou a obter direitos de posse da terra reconhecidos constitucionalmente antes de iniciar o projeto REDD+ no seu território.
Dos quatro estudos de caso, este foi o fator determinante que reduziu os efeitos negativos e maximizou os benefícios do projeto de carbono para as seis Primeiras Nações que administram a terra.
Mesmo assim, algumas conversas com a população local revelaram reclamações sobre uma visão estreita de conservação que afeta as práticas e os conhecimentos tradicionais indígenas, que, segundo estudos, são vitais para a manutenção da biodiversidade.
Os projetos de compensação de carbono REDD+ não estão apenas vendendo créditos de carbono inúteis que justificam a perpetuação do modelo de combustível fóssil.
Também reproduzem injustiças históricas e relações de poder assimétricas, nas quais os ricos, ocidentais brancos e minorias, se beneficiam, e as comunidades indígenas racializadas, especialmente no Sul global, sofrem os impactos.
É uma extensão da lógica que viu uma minoria colher os benefícios do sistema fóssil ao longo do último século e meio, enquanto uma maioria é deixada a sofrer os piores impactos da crise climática e ecológica.
As elites ricas e ocidentais têm uma dívida climática e ecológica para com todos aqueles que pouco contribuíram para a crise atual, mas que são os primeiros e mais duramente atingidos por ela.
Para quem luta por um clima mais seguro e por justiça global, é imperativo opor-se aos mercados voluntários de carbono e à sua utilização para fazer reivindicações fraudulentas de neutralidade de carbono por parte de empresas de combustíveis fósseis.
Paralelamente, deve-se exigir que os piores criminosos climáticos paguem às comunidades locais que defendem as florestas, não como um quid pro quo, não como compensação de carbono, mas como uma dívida climática e ecológica.
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Desmascarando os créditos de carbono. Artigo de Nathaniel Rugh e Marcel Llavero-Pasquina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU