30 Agosto 2023
Retomada da discussão no Supremo está marcada para a próxima quarta-feira (30).
A reportagem é de Felipe Mendes e Murilo Pajolla, publicada por Brasil de Fato, 29-08-2023.
Não é por acaso que a análise do marco temporal é tida como "o julgamento do século" para os povos indígenas no país. A votação, que está agendada para ser retomada nesta quarta-feira (30) no Supremo Tribunal Federal (STF), coloca em risco demarcações de terra, deixando em insegurança povos que já tiveram suas áreas tradicionais formalmente reconhecidas. Por isso, às vésperas da retomada da discussão entre os ministros, o clima é de expectativa e ansiedade.
A tese do marco temporal afirma que os povos indígenas só teriam direito a reivindicar terras ocupadas em 1988, quando foi promulgada a Constituição. A retomada das discussões nesta quarta é mais um capítulo de um debate que já se arrasta no STF desde 2021. Até o momento, a votação está em 2 a 1 contra o marco temporal (ou seja, a favor dos direitos dos povos indígenas). A última paralisação se deu em 7 de junho, devido a um pedido de vista do ministro André Mendonça.
O advogado Maurício Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirma que a demora no julgamento tem aberto portas para violação de direitos dos povos indígenas, já que a falta de definição faz aumentar os conflitos por terra. Terena aponta que a tese do marco temporal não tem nenhum respaldo técnico constitucional.
"Nossa expectativa é que o Supremo Tribunal Federal paute julgamento, e o ideal seria que ele finalizasse de uma vez por todas, declarando inconstitucionalidade. Essa tese não encontra nenhum respaldo jurídico ou técnico constitucional", resumiu. "A gente está com uma expectativa alta, vamos levar a lideranças indígenas para acompanhar o julgamento. Esperamos também que é haja um debate público sobre a questão do marco temporal".
Apesar da alta expectativa por um resultado, Terena não descarta um novo pedido de vista, que pode fazer com que a discussão se arraste por mais alguns meses. A postura do ministro Cristiano Zanin, que tem demonstrado posições conservadoras em suas primeiras manifestações no Supremo, é vista com cautela.
"Ele recentemente votou numa ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] que nós direcionamos à Suprema Corte, e foi um voto bem ruim, no sentido de não conhecer a ADPF. Estamos um pouco apreensivos, sabíamos que o Zanin não era tão próximo das pautas das lutas sociais, e o último voto dele nos deixou com uma 'luz amarela acesa'. A ver como isso vai se dar", pontuou, em referência a denúncia de violência policial contra indígenas do Mato Grosso do Sul.
Para a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), o Supremo já tem "maturidade suficiente" para julgar a questão. Nos últimos anos os ministros foram assessorados por muitas entidades que foram incluídas no processo na condição de amici curiae (em português, "amigos da corte", que oferecem subsídios para as discussões), o que garante um bom volume de informações para a tomada de decisão.
"A gente espera que o Tribunal exerça a principal função de uma corte constitucional, que é a tutela do direito das minorias. Essa é a razão de existir de um tribunal constitucional: ser esse poder que, diferente do Executivo e Legislativo, que são poderes majoritários, exerça essa função do poder contramajoritário, que vai tutelar o direito das minorias. Se a gente deixa esses direitos só na mão dos poderes majoritários, eles são facilmente esmagados", pontuou.
O Poder Legislativo, aliás, já tem mostrado suas garras no tema do marco temporal. Nas últimas semanas, avançou no Senado Federal o projeto de lei (PL) 2903/2023, que quer legalizar a tese de que as comunidades tradicionais só têm direito a territórios já ocupados ou disputados antes de 1988. Para a advogada, esse movimento é uma resposta às discussões no Supremo.
"Eles [parlamentares] só começaram a movimentar esse PL depois que o STF começou esse julgamento, numa tentativa de constranger o Tribunal. A maior expectativa é ver um Tribunal que não se intimida e que não se curva a esse tipo de demanda, que é uma demanda autoritária, demanda de extrema direita, que fez com que a democracia ficasse com convalescendo durante quatro anos", avaliou.
Também advogado, o coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá, reforça a argumentação sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Para ele, o tema sequer deveria estar sendo discutido no Supremo. Entretanto, diante da atual discussão, é fundamental que o STF se posicione a favor dos direitos dos povos indígenas.
"É um direito congênito, que antecede a própria formação do Estado brasileiro. Quando se fala e se trata de direitos originários, não há que se falar em um marco. O texto constitucional não trouxe um marco definindo prazo a que os povos indígenas teriam o direito. Pelo contrário: ele garantiu aos povos indígenas o direito originário. E é isso que nós estamos pleiteando: que reconheçam os nossos direitos originários sobre os nossos territórios", resumiu.
Dinamam Tuxá demonstrou preocupação com a proposta apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, que, ao votar contra a tese do marco temporal, defendeu pagamento de indenizações a pessoas que adquiriram "de boa fé" títulos de propriedade emitidos pelo Estado, numa espécie de "meio termo" para a discussão.
"Os povos indígenas vão ficar à mercê de uma indenização a ser paga ao fazendeiro para ter o seu território. Sabemos que temos um problema orçamentário. E essa 'tese do meio termo' desconsidera o direito originário dos povos indígenas, desconsidera toda lesão que os povos indígenas sofreram, e vai premiar invasores de terras, pessoas que adquiriram ou não de boa-fé esse essa área", apontou.
Faltando poucos dias para a retomada da discussão no Supremo, o vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Alcebias Constantino Sapará, resumiu seu sentimento atual dizendo que vive "uma ansiedade positiva e angustiante". Ele destaca a importância da presença de lideranças indígenas em meio às discussões junto ao Poder Judiciário.
"Estamos formando os nossos jovens, formando nossos advogados, formando nossos professores, formando nossos agentes de saúde, pessoas que cuidam do nosso território e principalmente fortalecendo nossa base. Todas as lutas vêm com seu desafios, e nesses últimos anos, elas têm nos desafiado cada vez mais, mas continuamos resistentes", apontou.
Alcebias destaca que alguns ministros têm posturas e entendimentos favoráveis à luta indígena, enquanto outros se manifestam no sentido oposto. Nessa balança, e em meio à luta dos povos originários, ele aposta que a tese do marco temporal será derrotada.
"Nós confiamos, sim, que o Judiciário brasileiro, e que um dia o Congresso Nacional, possa reconhecer os nossos direitos. A gente resistiu por 523 anos e a gente vai resistir a mais 523 anos. Nossa história vai passar de geração em geração, somos um povo de muita resistência", finalizou.
A tese do marco temporal é analisada pelo STF por meio do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que avalia o caso dos indígenas do povo Xokleng, de Santa Catarina. Entre outros pontos, os ruralistas argumentam que o marco seria uma forma de regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal. O trecho da Carta Magna aponta que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
"Esse argumento vem associado a uma possível garantia maior de segurança jurídica [para proprietários de terra] na demarcação de terras indígenas. No nosso ponto de vista, a segurança jurídica também precisa ser interpretada junto com os direitos originários às terras indígenas", contrapõe o assessor jurídico Pedro Martins, da organização Terra de Direitos, que acompanha o andamento do processo no STF.
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Povos indígenas vivem ansiedade às portas da retomada da votação do marco temporal no STF - Instituto Humanitas Unisinos - IHU