27 Junho 2023
Parece que observa de muito longe. De fato, vive na Europa, mas a filósofa e cientista política belga Chantal Mouffe acompanha detalhadamente os rumos da política chilena. E observa com especial atenção a nova geração de esquerda que se instalou no governo: a Frente Ampla e o presidente Gabriel Boric.
Mouffe é uma intelectual influente e é a inspiradora de Pablo Iglesias e Iñigo Errejón, fundadores do partido Podemos, na Espanha. Então, para a geração que cresceu sob o guarda-chuva da Frente Ampla, Chantal Mouffe é também uma guia em suas ações políticas.
Com o filósofo Ernesto Laclau, escreveu o ensaio Hegemonia e estratégia socialista, considerado um texto-base da nova esquerda. Agora, acaba de publicar um novo livro: El poder de los afectos en la política: Hacia una revolución democrática y verde.
Com um espanhol perfeito e através do Zoom, esta influente intelectual defende que as paixões desempenham um papel fundamental no novo esquema político. Acredita que a ascensão da direita se deve ao fato de ter conseguido canalizar melhor a raiva, a desesperança e a vulnerabilidade dos cidadãos. Em sua avaliação, a esquerda é prisioneira de sua racionalidade e olha para o mundo dos afetos com certo desdém. Aqui, explica o porquê.
A entrevista é de Claudia Alamo, publicada por La Tercera, 25-06-2023. A tradução é do Cepat.
Você é uma fonte de inspiração para a nova geração da esquerda chilena e do Podemos, na Espanha. Como as vê? Diria que conseguiram produzir mudanças ou que fracassaram em não conseguir captar bem os anseios dos cidadãos?
Sobretudo no caso do Chile, penso que é muito cedo para dizer que fracassaram. É verdade que essa abordagem também depende de como se vê o êxito. Mas, quando se pensa que o êxito consiste em representar e chegar ao poder, é evidente que foi isso que aconteceu no Chile.
Referia-me muito mais ao fato de que a nova esquerda chilena sofreu duas grandes derrotas no processo constituinte. E no caso espanhol, a ultradireita avançou...
Sim, mas insisto: tanto no caso espanhol quanto no chileno, é prematuro dizer que fracassaram. É evidente que o governo de Boric tem dificuldades. A rejeição à nova Constituição foi uma coisa negativa, mas o processo segue o seu curso. Em dezembro, veremos o que acontece. A verdade é que não era o que se esperava, nem o que queriam.
Foi uma espécie de eclipse da realidade?
Talvez tenha sido muito idealista acreditar que uma Constituição tão progressista poderia ser aceita no Chile. Quando eu vi que a imprensa internacional dizia: “É a Constituição mais progressista do mundo, que maravilha!”, eu dizia: “Mas, o Chile não é um país progressista!”. Claramente, havia algo que não batia.
Por que se pensa que, agora, poderia funcionar?
Porque agora está sendo apresentada de uma forma mais realista. O que seria terrível, e essa será finalmente a batalha, é que uma nova Constituição não conseguisse abandonar certas coisas deixadas por Pinochet. Fundamentalmente, refiro-me à importância de avançar nas mudanças sociais.
Para o governo de Gabriel Boric, a nova Constituição era uma condição ‘sine qua non’ para realizar suas reformas. Politicamente, considera que se tornou difícil avançar nas reformas sociais?
Não sou tão pessimista. Efetivamente, o governo de Boric foi muito estreitamente ligado à Assembleia Constituinte, mas, na realidade, são dois processos distintos. Ocorreram ao mesmo tempo, e isso foi muito difícil para Boric.
Continua olhando para ele assim?
Bem, minha impressão é que ele teve um acúmulo de dificuldades. Chegou ao poder em um momento muito complexo do ponto de vista econômico. Mesmo assim, conseguiu avançar em algumas reformas. Contudo, penso que o mais importante é que Boric aprendeu o exercício de governar. É capaz de saber como se mover. Sei que o criticaram por ter pessoas da ex-Concertacão em seu governo, mas precisamos ser realistas...
E o que implicaria assumir esse realismo?
Bom, essa nova geração de jovens não tinha nenhuma experiência de governo e, chegado o momento, era necessário que fizessem entrar pessoas com mais experiência. Não foi em absoluto, como alguns diziam, um abandono ou uma traição. Pelo contrário, é entender que o exercício do poder é muito diferente de quando você está na oposição. Especialmente, quando se trata de um conglomerado tão novo, tão jovem.
Em comparação com a esquerda espanhola, Boric entende melhor o desafio?
Eu acredito que sim. Boric não é um esquerdista dogmático. Procuram apresentá-lo assim, mas não é de modo algum. Volto ao ponto: o fato de ter aberto o seu governo a pessoas da ex-Concertação mostra que possui um sentido pragmático da política. E digo isso no bom sentido, porque existem pessoas que pensam que pragmático é alguém que não tem princípios. Boric tem princípios, mas percebe que a política não é incondicional.
E o resto da esquerda acredita na mesma coisa?
As pessoas de esquerda, em geral, e isso me preocupa porque me considero de esquerda, pensam que qualquer forma de se adaptar às circunstâncias é dar razão à direita. Há um certo dogmatismo de esquerda que diz: “Nós temos a verdade. Se as pessoas não entendem é porque são estúpidas ou têm pouca consciência”. Vi isso em muitos países. Argumentam que “não nos entendem”, mas, na realidade, não questionam se eles entendem as demandas dessas pessoas.
Um dos partidos da Frente Ampla vive uma situação complexa. Um militante entrega o dinheiro dos impostos para uma fundação dirigida por outro militante, que também é casado com uma parlamentar do mesmo partido. Isso acontece com uma geração que chegou com a promessa de ser diferente, de que tinha outro padrão moral. Como vê situações assim?
É completamente impossível evitar que haja alguns casos dessa natureza, mesmo em partidos que anunciam uma ruptura com práticas políticas anteriores e que prometem uma política de alta exigência moral. O importante é como se reage quando acontecem e, neste caso, parece-me que o governo reagiu muito bem condenando claramente o que aconteceu e expulsando os responsáveis.
Há pouco, Boric ganhou com ampla maioria. Hoje, a direita mais dura ganha terreno. O que pode explicar esse avanço?
Não é apenas um fenômeno chileno. Vemos isso na Europa também. Isso nos obriga a pensar sobre quais são as razões. Eu começaria dizendo que estamos diante de uma nova esquerda que rompe tanto com o reformismo social-democrata quanto com a estratégia revolucionária, bolchevique, a estratégia de guerrilha no caso da América Latina. É uma estratégia que eu chamo de “reformismo radical”.
E como cabe, aqui, o avanço da direita?
É que relaciono esse fenômeno com a crise da hegemonia neoliberal. Esta crise provocou um retorno do político. Por quê? Porque durante 30 anos tivemos uma hegemonia neoliberal em que o consenso se inclinou para o centro. Instalou-se a ideia de que não havia alternativa e que falar de esquerda ou de direita não fazia sentido. Era melhor que a questão da política fosse tratada pelos especialistas.
E isso entrou em crise?
Claro que sim, porque ao sustentar que não havia alternativa, nem diferenças claras, também não havia a possibilidade de escolher entre diferentes concepções de sociedade. Na Europa, por exemplo, era muito interessante ver que não havia qualquer diferença entre centro-direita e centro-esquerda. Tinham variações muito pequenas em aceitar a globalização neoliberal.
A famosa “Terceira via” de Tony Blair?
Exatamente. Contudo, isso levou a um fenômeno de abstenção muito grande. As pessoas diziam: “Por que vamos votar se é como escolher entre a Coca-Cola e a Pepsi Cola?”. Não havia qualquer motivação. E isso tem a ver com as paixões.
Quais paixões?
Para que as pessoas se interessem por política, devem sentir que quando votam têm uma voz e que sua posição realmente importa. A hegemonia neoliberal não permitia marcar as diferenças. Contudo, na crise financeira de 2008, essa hegemonia começa a se romper. Viu-se que não era o fim da história e que, sim, havia outras possibilidades de oferecer prosperidade às pessoas.
Assim, rompe-se a promessa que o neoliberalismo trazia consigo?
Com certeza. No caso chileno, isso ocorreu em 2011, quando surgem os movimentos estudantis levantando bandeiras de uma nova esquerda. Isso foi quase ao mesmo tempo em que nasce o Podemos, na Espanha. Também ocorreu na Grécia e em muitos outros lugares o famoso movimento “das praças”. No fundo, instala-se uma ruptura com esse consenso que havia no centro. Rompe-se com a ideia de que não há alternativa. É o que eu chamo de retorno do político, pois surgem movimentos que dizem: “vamos romper com o status quo”.
Mas, de fato, os modelos tradicionais da política são rompidos?
Na esquerda, claramente, ocorre uma ruptura. Ou seja, manifesta-se uma quebra dos postulados da esquerda tradicional, tanto com a social-democracia quanto com a revolucionária. Esses eram os dois modos com os quais se pensava a esquerda antes. E a grande diferença do que eu chamo de “reformismo radical” é que, agora, você tem que se envolver com as instituições. Não para romper com elas, mas para transformá-las profundamente. Há um cientista político francês, André Gorz, que dizia: “É preciso fazer reformas, não ser reformistas”. É uma estratégia totalmente diferente.
Talvez isso possa ser relacionado com uma discussão que está ocorrendo no Chile pela comemoração dos 50 anos do golpe militar. O dilema de Salvador Allende de fazer as reformas por dentro frente a uma esquerda que queria a revolução...
Justamente. É por isso que a experiência de Allende teve tanto impacto na Europa. Colocou em questão a estratégia bolchevique. Ou seja, a única forma de chegar ao poder era romper com tudo. Allende foi a revolução pelas urnas. E é interessante ver como Boric faz muitas referências a Allende. De certa forma, eles se sentem como os herdeiros dessa política.
Qual sua opinião acerca desses acenos de Boric para a figura de Allende?
Parece-me um ponto interessante. É inscrever essa nova esquerda na história chilena. É abandonar a ideia de que a revolução significa, necessariamente, uma ruptura total com as instituições, com a história do país. Eu vejo o projeto dessa nova esquerda como uma radicalização da democracia.
Como é isso?
Muitas pessoas acreditam que a democracia liberal é uma democracia capitalista. Não é assim. O liberalismo político, compreendendo o Estado de Direito, a pluralidade, a separação de poderes, é uma contribuição essencial da democracia. A esquerda deveria se aprofundar nisso e demonstrar como os princípios da democracia liberal se traduzem em mais liberdade e igualdade para todos.
Seu mais recente livro fala das paixões como um fator político e argumenta que a direita captura melhor a frustração e o medo do que a esquerda. Por quê?
Meu interesse tem sido pesquisar o porquê a direita tem mais êxito em mobilizar as pessoas. Meu argumento é que a esquerda, em geral, tem o problema de ser muito “racionalista”. Dizem: “Nós usamos argumentos. Damos razões”. Eu cito muito o filósofo Spinoza. Ele diz que as ideias só têm força quando encontram afetos. Ou seja, é preciso ter ideias, mas ideias que tenham ressonância nas pessoas, ideias nas quais possam reconhecer seus desejos. Isso a esquerda não entende.
Por que se distanciam?
Porque pensam: “Se nós tivermos um bom programa, automaticamente, as pessoas vão aceitá-lo”. E não é assim. Os programas são importantes, mas é preciso ver como as pessoas o sentem em seu dia a dia.
Isso explicaria o avanço da direita dura?
É que o auge da extrema direita deve ser visto no contexto da conjuntura em que vivemos. A Covid implicou uma crise múltipla: sanitária, econômica-social, climática, geopolítica. Isso provocou uma sensação de vulnerabilidade, uma demanda muito grande nas pessoas por proteção, por segurança. Aí entra o papel dos afetos.
Ou seja, estamos apenas começando a ver as consequências políticas da pandemia?
Vimos as consequências a nível afetivo e as de índole econômica-social, mas agora estão articuladas com a crise climática, que se aprofundou, e com uma crise geopolítica por causa da guerra na Ucrânia. É um momento muito angustiante. Há muita vulnerabilidade. E vemos que a direita está mais preparada para entender os afetos das pessoas, suas demandas por segurança. Essa é uma questão fundamental para entender.
Por quê?
Porque se constatou em todos os lugares que a esquerda tem um problema com o tema da segurança. Não sabem bem o que fazer, preferem ignorá-lo. Por sua parte, a extrema direita tem soluções muito simplistas: expulsar os imigrantes, fechar as fronteiras. A esquerda não sabe responder a isso. Pensa que falar de segurança é entrar automaticamente no campo da direita. Parece-me absolutamente crucial que a esquerda perceba que na segurança também há um discurso possível para ela.
Qual?
Lutar contra as desigualdades é também uma forma de criar uma sociedade onde as pessoas se sintam protegidas. A esquerda deve mostrar que existem outras formas de oferecer proteção às pessoas. Não apenas com medidas autoritárias, mas com um discurso progressista. Acredito que Boric está entendendo isso. Sei que no Chile a insegurança é uma coisa que preocupa muitíssimo as pessoas.
Sim, é uma das principais preocupações dos cidadãos...
É uma conjuntura global. Por isso, é necessário levar a sério a demanda por proteção e segurança. Qual é a estratégia da esquerda? Deve articulá-la, mas com base em um projeto que ressoe tanto nas classes populares quanto nas classes médias. Enfatizar que a contribuição será uma vida melhor para todos.
Apresentar uma esquerda mais amável...?
Não acha que a esquerda de Boric é amável?
Refiro-me a que seja uma proposta amável, que não gere medo...
Sim. A esquerda deve mobilizar as pessoas, mas não a partir das “paixões tristes”, como dizia Spinoza, mas das paixões amáveis e nos fazer ver que uma vida melhor é possível.
Para isso, qual é a emoção que a esquerda deveria encarnar?
A esperança. Mas, eu prefiro falar de paixões e de afetos, porque as emoções são algo muito individual. Na política, os afetos importantes são os afetos comuns, que unem as pessoas, que estão à margem da criação de um “nós”. Para mim, os sujeitos políticos são coletivos.
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“A esquerda, em geral, tem o problema de ser muito ‘racionalista’”. Entrevista com Chantal Mouffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU