10 Mai 2023
"Por um lado, ele se enquadra no projeto divino porque engana e flagela as nações idólatras por meio de seus emissários nocivos; por outro lado, ele é um adversário daquele plano divino através da obra de sedução hostil em relação ao povo de Deus. Percebe-se, portanto, que naquelas páginas convergem - quase como em um delta ramificado - as correntes de diferentes tradições".
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 07-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escrituras sagradas. Ryan E. Stokes revela a evolução a que a figura foi submetida até ser transformada de agente do Senhor em adversário. Não é só nas fábulas de Esopo, Fedro ou La Fontaine que os animais falam e advertem os humanos. Também na Bíblia, numa história arcaica do livro de Números, existe uma mula que questiona quem a monta, um "profeta" pagão chamado Balaão: deixamos para os leitores encontrar essa deliciosa narrativa no c. 22 do livro citado. Nós, no entanto, apontamos para um versículo, o 22, e propomos na versão oficial da CEI: “Mas acendeu-se a ira de Deus quando ele foi, e o anjo do Senhor pôs-se no caminho para impedi-lo de prosseguir". Agora, se voltarmos ao original hebraico, o final é surpreendente: “pôs-se no caminho como seu satanás”.
Aparece um termo que normalmente tem o artigo “o/um satanás” e designa um funcionário da corte divina, cujo significado é "adversário" ou "acusador". Ele entra em cena em outras passagens bíblicas com uma atribuição não necessariamente negativa; aliás, em alguns casos seu perfil parece ser quase a de um promotor que investiga a culpa de uma pessoa, informando depois o supremo juiz divino. Algo assim também parece acontecer na história de abertura daquela obra-prima literária e teológica que é o livro de Jó (cc. 1-2) onde "o satanás" é um dos "filhos de Deus", ou seja, os anjos do conselho da coroa do Senhor.
Na verdade, alguns estudiosos acreditam que ele tenha recebido naquele caso a tarefa de "justiceiro", de um verdadeiro agressor que avalia a qualidade moral dos seres humanos, no caso em questão de Jó, um homem inocente que é atingido por revezes, mas não cede e inicia uma espécie de contestação radical com o Mandante divino. O estudioso estadunidense Ryan E. Stokes interpreta assim essa figura num ensaio detalhado e empolgante revelando, contudo, também a evolução a que foi submetida a ponto de se transformar de agente de Sua Majestade o Senhor em seu tenaz adversário, um personagem envolto por todos os contornos do diabólico. Não é à toa que o título da obra do exegeta estadunidense é Como o justiceiro de Deus se tornou o inimigo por excelência, especialmente com base na literatura apócrifa judaica.
Assim, entra em campo aquela representação, também cristã, que faz de Satanás o príncipe dos anjos rebeldes contra Deus, derrotados e jogados sobre a terra, como recorda com linhas incandescentes o autor do Apocalipse do Novo Testamento: “E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele" (12.9). Para chegar a essa metamorfose demoníaca, porém, é preciso emprenhar-se na floresta luxuriante dos símbolos apócrifos, e é isso que faz com acríbia esse professor da Universidade de Jefferson City, no Tennessee.
Satana, de Ryan E. Stokes. Editora Queriniana, 352 páginas.
Os escritos examinados são muitos e têm títulos atribuídos pelos estudiosos que os manuseiam com abordagens sofisticadas dada a sua complexidade. Assim entra em cena o Livro dos Vigilantes do III século a.C.; a Epístola de Enoque que muda a ênfase sobre a responsabilidade humana pelo mal pelo exercício da liberdade; impressionante é a literatura "satânica" dos famosos manuscritos de Qumran na margem oeste do Mar Morto; curioso é o Livro dos Jubileus do III a.C. Neste último escrito, um misterioso "Príncipe de Mastema" entra em ação com sua legião de espíritos malignos.
A etimologia desse nome pode ser rastreada até a raiz hebraica stm, que denota uma atividade hostil e é um pseudônimo de Satanás.
Por um lado, ele se enquadra no projeto divino porque engana e flagela as nações idólatras por meio de seus emissários nocivos; por outro lado, ele é um adversário daquele plano divino através da obra de sedução hostil em relação ao povo de Deus. Percebe-se, portanto, que naquelas páginas convergem - quase como em um delta ramificado - as correntes de diferentes tradições. Essa fluidez torna complicada a definição de um mapa onde se aglomeram espíritos, demônios, Satanás e atores enigmáticos sobre-humanos, como Belial, que faz parceria com Satanás. Novamente é um nome comum que remete a conceitos de "indignidade" e até mesmo a conotações de morte e nulidade.
No horizonte já evocado pelos pergaminhos de Qumran tem o perfil de um anjo que atormenta os Israelitas de acordo com o duplo propósito desempenhado pelo Príncipe de Mastema. É surpreendente sua presença única no Novo Testamento em uma passagem do epistolário paulino toda entremeada de referências inesperadas qumrânicas (2 Coríntios 6, 15 com a forma Beliar: “Que concórdia há entre Cristo e Belial, ou que parte tem o fiel com o infiel?"). Essa incursão nas escrituras cristãs permite-nos concluir, como Stokes faz, interceptando Satanás na mensagem do Novo Testamento onde se apresenta 36 vezes com claras conotações diabólicas, ao lado de uma taxonomia variada de outros seres negativos sobre-humanos, em particular ho diàbolos, o "divisor", adversário de Deus e da humanidade, em duelo com Cristo.
Assim, configura-se uma série de questões candentes, como as do tradicional nexo culpa-punição, da tentação, do pecado, da liberdade e do mal. Na verdade, para além de entusiástico e enfático Hino a Satanás de Carducci, na cultura contemporânea vale o que Gide ironicamente confessava: "Eu não acredito no diabo, mas isso é exatamente o que o diabo espera".
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As mil e uma faces assumidas por Satanás. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU