28 Abril 2023
“As relações dos povos originários com seus territórios são culturais e não simplesmente “naturais” como almeja ver uma espécie de imaginário urbano ingênuo. Suas florestas são o resultado de um complexo tecido de reciprocidades permanentes e mutáveis entre seres humanos e não humanos, incluindo o mundo dos seres espirituais. A Mãe Terra ou Pachamama, em suma, não é uma simples metáfora para os povos originários, é uma realidade da qual temos muito a aprender”, escreve Alberto Acosta, economista equatoriano, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique - Edição Chilena, 21-04-2023. A tradução é do Cepat.
“A floresta, para os povos indígenas que habitam a Amazônia, é vida. Todo o mundo do kawsak sacha (floresta vivente) tem energia e simboliza o espírito humano, tanto pela sua força como pela sua grandeza, pensamento interior, onde a alma e a vida são apenas uma com a Pachamama e faz parte da nossa formação, desde quando somos concebidos”. (Patricia Gualinga, liderança indígena kichwa de Sarayaku)
A “descoberta econômica” da região amazônica se consolidou apenas um século depois da viagem de Francisco de Orellana pelo Rio Amazonas. O jesuíta Cristóbal de Acuña, enviado especial do rei da Espanha, informou a coroa sobre as riquezas existentes nos territórios “descobertos”.
Em seu relato, além de descrever os diversos povos e culturas que encontrou pelo caminho, mencionou madeiras, cacau, açúcar, tabaco, minerais... recursos que ainda animam o aproveitamento dos diversos interesses de acumulação nacional e transnacional da Amazônia.
Superada a época colonial, na etapa republicana, a corrida atrás de “El Dorado” se mantém. Basta ver como o estilo predominante de “desenvolvimento” se baseia em extrair cada vez mais recursos naturais dessa região privilegiada por sua biodiversidade e a multiplicidade de suas culturas originárias.
Embora em muitos casos as tecnologias mudem, repete-se um padrão que remonta à época colonial: a maior parte dos recursos é apropriada de forma brutal para ser exportada. E isto está acelerando ao ritmo de uma demanda cada vez maior, vinda especialmente dos centros do capitalismo metropolitano. O angustiante é que, a partir dos centros de poder nacionais e internacionais, a Amazônia é assumida como uma terra “vazia” ou baldia, que está aí para ser conquistada e desenvolvida.
A região amazônica é tratada, na prática, como uma periferia em todos os países amazônicos, que por sua vez são a periferia do sistema político e econômico mundial.
Por outro lado, o discurso sobre a importância global da Amazônia, tão repetido em múltiplos fóruns internacionais, desmorona diante da realidade de um sistema que ao revalorizar seus recursos em função da acumulação de capital, coloca em risco a própria vida na região e em todo o planeta. Tenhamos presente que as taxas internas de retorno do capital - sejam atividades extrativistas ou não - são muito mais altas do que a capacidade de recuperação da Natureza.
Neste contexto, aos impiedosos extrativismos petrolífero, mineiro, florestal e agroexportador se somam formas “modernas” de crescente mercantilização da Natureza, como, por exemplo, a biopirataria e os vários mercados de carbono, próprios da tão propalada “economia verde”.
Ao levar a conservação das florestas para o campo dos negócios, o ar, as árvores, a biodiversidade, o solo e até a água são mercantilizados e privatizados. Isso amplia a fronteira da colonização. O que, na prática, aumenta ainda mais a extração em massa e predatória de recursos naturais, causa não só do empobrecimento de seus habitantes, mas também do desaparecimento de muitas culturas.
Também é angustiante constatar que se segue ingenuamente confiando na ciência e na tecnologia como ferramentas capazes de mudar sozinhas o rumo dessa história de morte. A verdade é que, ao destruir as florestas amazônicas, a serpente capitalista continua devorando seu próprio rabo.
No entanto, essa mesma Amazônia, que não se caracteriza por sua homogeneidade, contém muitas esperanças. Diante de tantos golpes, emergem múltiplas lutas de resistência que, ao mesmo tempo, são ações de reexistência. Nela também afloram poderosas visões de mundo, carregadas de vigorosas propostas alternativas.
Os povos da região, na prática, constituem a verdadeira vanguarda da luta contra o colapso ecológico. Ao proteger as florestas, garantem muito mais o equilíbrio ecológico e a biodiversidade do que qualquer ação nacional ou internacional. E não só isso, esses povos são portadores de outras formas de vida orientadas por relações de harmonia em suas comunidades e com a Natureza, próprias do que conhecemos como bem viver: sumak kawsay, kawsak sacha, pénker pujústin…
Um primeiro passo para compreender e proteger a Amazônia requer, então, uma aproximação realista. Sua riqueza, definitivamente, não está em seus recursos naturais comercializáveis, mas em sua diversidade cultural e ecológica.
Vamos dar um passo a mais. As relações dos povos originários com seus territórios são culturais e não simplesmente “naturais” como almeja ver uma espécie de imaginário urbano ingênuo. Suas florestas são o resultado de um complexo tecido de reciprocidades permanentes e mutáveis entre seres humanos e não humanos, incluindo o mundo dos seres espirituais. A Mãe Terra ou Pachamama, em suma, não é uma simples metáfora para os povos originários, é uma realidade da qual temos muito a aprender.
A Amazônia, sem ser o tão mencionado pulmão do mundo, funciona como um grande filtro do dióxido de carbono, cuja importância global é indiscutível. Além disso, seu volume de floresta atua como um dos mais importantes reguladores do clima mundial.
Por isso, pela sua magnitude e o volume de sua biodiversidade, a crescente destruição da Amazônia tem repercussões que afetam o equilíbrio ecológico global. E seus rios, verdadeiras bacias sagradas da vida, que não podem ser enquadrados nas fronteiras artificiais dos países amazônicos, formam um complexo emaranhado que garante a existência de seres humanos e não humanos, mesmo fora de sua área geográfica.
Então, o compromisso com a Amazônia é também um compromisso com o mundo. Isso se o dever de assumir a liderança e o controle das ações para protegê-la recaírem em seus habitantes, sobretudo os povos originários, como os gestores de qualquer processo de transformação, sem ingerência externa, por mais bem-intencionada que possa parecer. A tarefa, em suma, exige reverter o longo, doloroso e desastroso caminho da conquista e colonização.
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A Amazônia, territórios de esperança. Artigo de Alberto Acosta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU