14 Março 2023
Enquanto os católicos alemães concluem o Caminho Sinodal com apelos por grandes mudanças na governança da Igreja, na moral sexual e no lugar das mulheres, alguns se perguntam se o cisma está se aproximando.
A reportagem é de Héloïse de Neuville, publicada por La Croix International, 10-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É um projeto titânico e inédito que chega ao fim exatamente como começou: em tensão. Os católicos na Alemanha realizam a quinta e última assembleia de seu Synodaler Weg – ou Caminho Sinodal – neste sábado, encerrando uma revolução reformadora que vem balançando o pequeno barco de sua Igreja há quase três anos.
Os participantes fizeram propostas ousadas, como, por exemplo, tornar opcional o celibato sacerdotal e oferecer bênçãos da Igreja para as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Esses e outros temas estão na ordem do dia dessa última reunião em Frankfurt e provavelmente deverão suscitar, mais uma vez, debates acalorados entre uma maioria favorável a esses desdobramentos e uma minoria que os tem criticado.
O Caminho Sinodal, iniciado em 2019 sob a direção conjunta da Conferência dos Bispos da Alemanha – DBK e do Comitê Central dos Católicos Alemães – ZdK, enfrentou fortes ventos contrários de autoridades do Vaticano, que se mostraram muito céticos em relação ao processo.
“A Alemanha tem uma Igreja protestante muito boa, não precisamos de uma segunda”, resmungou o Papa Francisco em maio passado.
As autoridades da Cúria Romana temem que as orientações progressistas e democráticas do Caminho Sinodal possam ameaçar a unidade da Igreja mundial. A maioria dos católicos na Alemanha, por outro lado, temem que a manutenção do status quo apenas afaste mais pessoas da Igreja em seu país. De fato, nunca a hemorragia foi tão forte. Cerca de 360.000 alemães deixaram a Igreja Católica em 2021, de acordo com a DBK.
Unidos pelos números alarmantes, os 230 delegados membros do Caminho Sinodal – metade leigos, a outra metade composta por todos os bispos e outros clérigos – mantiveram-se firmes, ao ponto de parecerem inflexíveis e levando a sérios mal-entendidos sobre suas intenções. Dom Georg Bätzing, presidente da DBK, fez declarações que alguns acharam confusas.
“Queremos ser católicos, mas de um jeito diferente”, disse ele em novembro, depois que os bispos alemães estiveram em Roma para se encontrar com o papa e outras autoridades da Cúria.
Para entender como a rixa com o Vaticano cresceu, é preciso voltar a 2018. Um estudo divulgado naquele ano revelou a extensão da crise dos abusos sexuais na Alemanha e a culpabilidade dos bispos que protegeram padres abusadores. A investigação não deixou dúvidas: o mal era “sistêmico”. O diagnóstico chocou os católicos do país. Em resposta a essas consequências, os bispos, em sua assembleia plenária de março de 2019, decidiram lançar o Caminho Sinodal.
Os organizadores disseram que o desafio era fundamental: a crise dos abusos levou à perda de credibilidade da Igreja e, por tabela, do Evangelho. A Igreja, portanto, precisava absolutamente se reformar. A questão era como fazer isso.
Esse talvez seja o cerne do problema. Desde o início, “foram expressadas diferentes expectativas individuais, mas não claramente definidas em nível coletivo”, admite Matthias Kopp, porta-voz da DBK.
Foram organizados fóruns sinodais para discutir quatro temas: “Poder e separação dos poderes na Igreja”, “Viver o amor na sexualidade e na parceria”, “Existência sacerdotal hoje” e “Mulheres nos ministérios e ofícios na Igreja”.
“Os progressistas encontraram uma plataforma nesse processo e encheram a agenda com todos os temas que são importantes para eles”, observa o Pe. Johanness Schann, pároco da Arquidiocese de Berlim. Esse enérgico homem de 43 anos disse que não poderia votar “em consciência” a favor do texto que promove uma moral sexual “atualizada” na Igreja.
Esse documento, elaborado pelos delegados sinodais e adotado quase unanimemente pelos leigos, foi rejeitado, no fim, por 40% dos bispos. Seu conteúdo carrega sementes revolucionárias para a Igreja universal: propõe uma reavaliação doutrinal da homossexualidade como uma orientação “legítima”, assim como a aceitação da “diversidade” das identidades de gênero. Ainda mais profundamente, estabelece que “a ética sexual da Igreja tem fomentado crimes de violência sexual dentro dela”.
Aqueles que defenderam o texto, que foi rejeitado, estão certos de que a verdadeira divisão na assembleia sinodal não é aquela que se poderia esperar – “progressistas” contra “conservadores” ou clérigos versus leigos. Pelo contrário, a divisão está entre aqueles que pensam que os “avanços da ciência” devem ajudar a revisar o catecismo da Igreja e aqueles que não; entre aqueles que acreditam que o ensino moral da Igreja está “ultrapassado” e aqueles que acreditam que ele deve ser defendido.
No plano intelectual, a assembleia fez um movimento forte, reconhecendo como uma quarta fonte teológica os “sinais dos tempos” – além da Escritura, da Tradição e do Magistério. A expressão, que veio à tona durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), refere-se aos acontecimentos por meio dos quais Deus fala ao mundo e chama à ação.
Viola Kohlberger está entre aqueles que veem uma necessidade urgente de “atualizar” o catecismo católico. Essa mulher de 31 anos, de estilo descontraído, responsável pelos escoteiros na Diocese de Augsburg, na Baviera, recentemente postou uma foto de si mesma em sua página no Facebook usando um colarinho romano. A postagem provocativa, disse ela, rendeu-lhe uma onda de assédio online por parte da esfera “tradicionalista”.
“Não devemos ter medo de deixar o catecismo evoluir”, diz Kohlberger, que está fazendo seu doutorado em Teologia. “Até recentemente, a Igreja considerava a pena de morte uma resposta adequada à gravidade de certos delitos. Hoje, à luz de novos trabalhos teológicos, o Catecismo diz que a pena de morte é uma medida desumana que atenta contra a dignidade pessoal”, aponta ela como um exemplo.
Mas ela usa a analogia para se referir também às minorias sexuais: “Somos todos amados por Deus e todos devemos ter os mesmos direitos na Igreja”.
Quando o texto sobre moral sexual foi rejeitado em setembro, o fórum de Frankfurt entrou em frenesi: os delegados abandonaram a sala, outros começaram a chorar, e anátemas foram lançados contra os clérigos que votaram contra o documento. Ao mesmo tempo, muitos outros bispos anunciaram sua determinação de aplicar essas mudanças em suas dioceses, custasse o que custasse. É o que já ocorre em Basel e Limburg.
Não é uma contradição querer importar uma cultura democrática para a Igreja e depois anular uma votação?
“Nossos pastores são constantemente confrontados com a necessidade de dar respostas aos católicos que os questionam sobre essas questões. Na minha opinião, é necessário abrir um caminho”, objeta Ulrich Hoffmann, presidente da União da Família Católica, que encontramos em Berlim.
Essas “transgressões” levaram quatro leigas a renunciar ao Caminho Sinodal no fim de fevereiro. Em um artigo publicado no jornal Die Welt, elas denunciaram o “questionamento” e a “redefinição às vezes total dos fundamentos essenciais da teologia, da antropologia e da prática da Igreja católica”.
“Não podemos mais seguir esse caminho, no qual, em nossa opinião, a Igreja na Alemanha está se afastando cada vez mais da Igreja universal”, lamentaram essas católicas, entre as quais se encontram duas respeitadas teólogas e uma filósofa.
Será que Igreja na Alemanha embarcou em uma aventura solitária? Em todo o caso, há uma constante entre um grande número de católicos alemães que o La Croix entrevistou: a ideia de estar diante de uma situação “excepcional”, que o restante da Igreja teria dificuldade em entender.
De fato, o lugar central que o catolicismo ocupa na Alemanha contribui para exercer uma pressão constante. Em muitas regiões, a Igreja Católica é o segundo maior empregador do país depois do Estado, empregando um total de 800.000 pessoas em várias instituições ligadas à Igreja.
A política e a prática da Igreja em questões como o lugar das mulheres e a inclusão das minorias sexuais muitas vezes entram em conflito com as normas civis e são agora percebidas como discriminatórias. Os católicos que trabalham em estreita colaboração com o governo e a Igreja Protestante são fortemente encorajados a adotar seus padrões.
A singularidade que diferencia a Igreja Católica na Alemanha da Igreja na maioria dos outros países não acaba por aí. Há um imposto religioso na Alemanha. Ele é recolhido na fonte a partir da renda dos fiéis e pago às denominações às quais a pessoa está administrativamente ligada. Em 2019, a Igreja Católica alemã, uma das mais ricas do mundo, recebeu 6,76 bilhões de euros.
Aqueles que se recusam a pagá-lo, saindo administrativamente da Igreja, são excluídos dos sacramentos (batismo, casamento etc.). E “quem continua pagando quer ter voz nas decisões financeiras mais importantes”, explica o professor de teologia Thomas Söding, um dos organizadores do Caminho Sinodal.
A última singularidade: os fiéis são muito bem formados em Teologia e muito bem estruturados, por meio do Comitê Central dos Católicos Alemães (ZdK).
“Essa constelação de particularidades é única no mundo”, diz Söding, que também é vice-presidente do ZdK. “É por isso que é difícil deixar claro que o clero e a maioria dos bispos aqui aspiram a uma colaboração mais forte com os leigos.”
Por enquanto, a discordância com o Vaticano continua forte, especialmente sobre a governança da Igreja. A Igreja na Alemanha planeja criar um “conselho sinodal”, para um governo compartilhado entre leigos, padres, diáconos e bispos. Essa é uma revolução democrática sem precedentes em uma instituição hierárquica.
E isso é visto de forma muito negativa pelas altas autoridades vaticanas que, em janeiro, enviaram aos bispos uma carta de advertência com palavras fortes. A Santa Sé disse que as decisões de tal conselho não poderão de forma alguma “limitar a autoridade da Conferência Episcopal” ou ser “vinculante” para os bispos.
Essa foi uma boa notícia para cinco bispos alemães (quatro da Baviera) que se opõem ao projeto dos conselhos sinodais. Mas eles temem que tais órgãos de governo se tornem inevitáveis com o passar do tempo, devido à forte pressão moral e midiática que pode ser exercida sobre eles. Alguns podem simplesmente desistir de colocar esses conselhos em prática.
“O risco é ver a criação de uma Igreja em várias velocidades, com dioceses que irão implementar todo o trabalho do Caminho Sinodal e outras que não o farão”, teme o porta-voz da Conferência Episcopal, Matthias Kopp. “A questão que enfrentamos agora é como renovar o diálogo entre os bispos e aqueles católicos que se manifestaram contra a maioria dos textos votados.”
Embora flertando com os limites da autoridade, os bispos reafirmaram repetidamente seu desejo de permanecer em comunhão com a Igreja universal. Eles insistiram que a ameaça de um cisma formal é exagerada, mas será que as sementes de uma divisão silenciosa não estão começando a brotar? Essa é, de fato, a opinião de vários católicos alemães que o La Croix entrevistou.
Alguns acreditam que o trabalho teológico feito sobre a moral sexual e a governança criou uma lacuna muito grande com o Vaticano. Outros, mais otimistas, esperam que as reflexões alemãs possam ser ouvidas durante a grande consulta mundial sobre o futuro da Igreja (o Sínodo sobre a Sinodalidade), lançada pelo papa em 2021. É uma das últimas esperanças de Roma para pôr a Igreja na Alemanha de novo nos trilhos.
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Igreja Católica na Alemanha corre o risco de um cisma silencioso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU