23 Fevereiro 2023
A tradição bizantina se compraz em repetir essa oração, eu diria quase a deixá-la cair sobre nós para que penetre no nosso coração e marque todo o nosso caminho quaresmal, toda a nossa vida cristã. Proponho-lhes a oração de Santo Efrém como tema de reflexão no início desta Quaresma. Propondo-a a vocês, proponho que tomem nas mãos e que se aproximem de novo do Evangelho como caminho quaresmal.
O artigo é do teólogo e padre Manuel Nin, exarca apostólico e professor do Pontifício Colégio Grego, de Roma, publicado em seu blog, 17-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os primeiros quatro domingos do Triodion nos conduziram pela mão, guiados pelo Evangelho, ao encontro com o Senhor. Agora, no início do nosso caminho quaresmal, que neste ano é dramaticamente marcado pelo terrível terremoto que atingiu a Turquia e a Síria, dois países irmãos na fé e nas nossas origens cristãs, e também pelo dramático prolongamento da guerra na Ucrânia, um país que é também irmão na fé e que há mais de duas décadas se tornou o país de origem de uma parte importante do nosso exarcado, quero lhes propor uma releitura, ou talvez um reencontro, com um texto que marcará todo o nosso caminho quaresmal na tradição bizantina.
Trata-se da “Oração de Santo Efrém”, que repetimos nas diversas horas do ofício. Várias vezes me pediram para falar sobre esse texto curto, quase sintético, profundamente evangélico. É um texto atribuído a Santo Efrém, o Sírio (+373), esse grande Padre da Igreja siríaca, um padre que foi acolhido e estimado também nas outras tradições cristãs.
A tradição bizantina se compraz em repetir essa oração, eu diria quase a deixá-la cair sobre nós para que penetre no nosso coração e marque todo o nosso caminho quaresmal, toda a nossa vida cristã. Proponho-lhes a oração de Santo Efrém como tema de reflexão no início desta Quaresma. Propondo-a a vocês, proponho que tomem nas mãos e que se aproximem de novo do Evangelho como caminho quaresmal.
O texto que encontramos nas horas da Grande Quaresma bizantina é o seguinte:
Senhor e Soberano da minha vida, não me deis um espírito de preguiça, de indolência, de soberba, de vanilóquio.
Dai a mim, vosso servo, um espírito de sabedoria, de humildade, de paciência e de amor.
Sim, Senhor e Rei, concedei-me ver os meus pecados e não condenar o meu irmão, porque sois bendito pelos séculos dos séculos.
Amém.
“Senhor e Soberano da minha vida... Senhor e Rei.” A oração põe Deus no centro da nossa vida e O apresenta como Aquele que é Seu Senhor, como Aquele que é Sua fonte de esperança, sobretudo fonte de confiança. Quando dizemos: “Senhor e Soberano da minha vida”, reconhecemos n’Ele a fonte desta vida e renovamos a nossa confiança n’Ele: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração...” (Mt 11,28-29).
Quatro vícios na primeira invocação dessa oração: preguiça, indolência, soberba, vanilóquio. O texto começa com um pedido forte e claro: “não me deis...”; um pedido que nos quer despertos, vigilantes como se fôssemos monges que vigiam na noite, diante da possibilidade de deixar de lado Deus e também o irmão, de esquecer Deus e também o irmão, de atrofiar a nossa capacidade de amar, de nos maravilhar, a nossa capacidade de gratuidade. Os opostos dessa preguiça-indolência poderiam ser a gratuidade-maravilha diante de Deus e diante do irmão.
A oração continua com o desejo de nos afastar, mais uma vez, da soberba, do vanilóquio, no fundo daquelas situações que podem fazer de Deus e do irmão um simples objeto e, como tal, desprezados – soberba; ou daquelas situações-palavras que criam vazio ao nosso redor – o vanilóquio, ou seja, as palavras vazias ou que criam vazio ao nosso redor e ao redor dos outros.
Todos sabemos e somos inteligentes e despertos o suficiente para ver que existem palavras, comentários, piadas que criam um vazio ao nosso redor e ao redor dos outros.
Os vícios elencados na oração de Santo Efrém são: preguiça, indolência, soberba e vanilóquio. Ser liberto – e o texto é uma oração, e, portanto, envolvemos o Senhor para que nos liberte – de uma preguiça no nível mais concreto e material de dar uma mão aos outros. De uma indolência – in dolens – que pode ir desde o fato de o ignorar o outro ao desprezo pelo outro, até ao fato de não querer ver aquele que está ao nosso lado ou que não está ao nosso lado porque tentamos evitar até sua proximidade física. De um orgulho que deve ser contido e deriva da indolência. Se não sofro pelo/com o outro, então posso desprezá-lo.
Procuramos na nossa vida cristã de todos os dias evitar atitudes, palavras que não criam comunhão entre nós. Evitar um vanilóquio que é vazio e que, sobretudo, cria vazio, ao redor do outro e de nós mesmos. Que o nosso falar nunca crie vazio, distância, desinteresse ao nosso redor e dos outros. Que o nosso falar sempre crie comunhão.
Quatro virtudes: espírito de sabedoria, de humildade, de paciência e de amor, que são um reflexo das Bem-aventuranças propostas pelo Senhor no Evangelho de Mt 5,3-11; virtudes que constituem uma unidade, que são as características principais do ícone do próprio Cristo e que são o marco da vida de cada cristão.
Pedir ao Senhor – é sempre Ele que está envolvido – um espírito de sabedoria que nos faça saber falar e agir do modo certo, falar e agir que sejam sábios, com a sabedoria do Evangelho. Um espírito de humildade que nos configure com Aquele que se humilhou até a morte. Humildade que, no dia a dia das nossas vidas, na família, na diocese, significará, sim, debater, partilhar, mas também aceitar que nem sempre tenho razão, que posso errar. Um espírito de paciência como contraposição à indolência de que falamos acima, na primeira parte dos pedidos. Um espírito de amor, que acima de tudo crie amor.
São quatro virtudes evangélicas, cristológicas, cristãs: sabedoria, humildade, paciência, amor. Quatro virtudes que se tornam o verdadeiro ícone do próprio Cristo e nos tornam e nos configuram à sua imagem.
O terceiro pedido resume aquilo que foi proposto nos outros dois: ver, estar desperto – poderíamos traduzir – para ver os próprios pecados, não em uma contemplação estéril da própria miséria, mas porque nela se realiza salvificamente a cruz de Cristo.
Depois, a atenção ao irmão – o fato de não condená-lo, diz o texto de Santo Efrém –, seja pela soberba, pelo domínio, pelo desprezo...; seja pelo vanilóquio, ou seja, tudo aquilo – palavras ou fatos – que possam criar vazio, distância em relação ao irmão ou dos outros em relação a ele. Há palavras vãs que ferem por si mesmas, e palavras vãs que, eu diria, também ferem “por tabela”, batendo ou servindo-se de terceiros.
Ver os próprios pecados e não condenar o irmão... Ver que no nosso caminho como cristãos, como sacerdotes, não importam apenas as nossas forças, mas também a misericórdia e a graça do Senhor. Peçam ao Senhor na oração que lhes torne clarividentes não para ver os defeitos dos outros – infelizmente todos nós somos especializados demais nisso –, mas para ver onde eu mesmo talvez não vivo segundo o Evangelho e onde aparece o próprio pecado.
Não condenar o próprio irmão, aceitar que ele é diferente, que talvez muitas vezes não concordamos com ele em tudo. E isso na família, na diocese, com os sacerdotes, com o bispo... Aceitar que ele e eu, o irmão e eu, podemos errar e com certeza erramos. Aceitar que sempre há um caminho evangélico de reconciliação e de perdão até setenta vezes sete... Se nos esquecermos dessas coisas, se não as aceitarmos, o nosso coração fechar-se-á ao Evangelho.
No início da Quaresma, a liturgia nos propôs a figura de Adão expulso do Paraíso, de Adão que geme, que chora, que se lamenta devido ao Paraíso fechado.
A própria liturgia, porém, apresenta-nos um Adão – qualquer ser humano – não fechado em si mesmo, mas que, na esperança, começa um caminho que o levará de volta ao Paraíso, cujas portas serão abertas na manhã de Páscoa.
Como mencionava no início, neste ano o início dos domingos do Triodion e da própria Quaresma coincide com o dramático terremoto na Turquia e na Síria, e com o primeiro aniversário da guerra fratricida e injustificável, como todas as guerras, na Ucrânia.
Quero encorajar todos vocês, fiéis gregos, ucranianos e caldeus, que fazem parte do nosso exarcado, a se solidarizarem com esses dois lugares de sofrimento, de destruição e de morte. Uma solidariedade que ocorreu desde o primeiro momento da guerra na Ucrânia, por parte de tantos e tantos fiéis do exarcado ou não, católicos e ortodoxos da Grécia que generosamente doaram seus pertences para que fossem enviados aos locais de guerra. Uma solidariedade fraterna, verdadeiramente cristã, que me tocou muito e pela qual agradeço a todos.
E, novamente nas últimas semanas, uma solidariedade com a Turquia e a Síria, esta última país de origem ou de passagem de muitos dos nossos fiéis da comunidade caldeia do nosso exarcado, países cuja história é marcada por raízes cristãs comuns. Junto com os bispos católicos da Grécia, estamos tentando levar nossas ajudas materiais às pessoas afetadas pelo terremoto, assim como a comunhão no sofrimento e, sobretudo, na oração.
Concluo deixando-lhes um texto dos Apoftegmas dos Padres:
Conta-se que dois amigos caminhavam juntos pelo deserto. Em certo ponto, discutiram, e um deu um tapa no outro. Aquele que foi esbofeteado sentiu-se ferido em seu orgulho, mas não disse nada e escreveu na areia: ‘Hoje meu melhor amigo me esbofeteou’. Continuaram caminhando até encontrar um oásis e ali decidiram tomar banho. Aquele que havia sido esbofeteado foi engolido pela água e pela lama, até quase se afogar. Mas o amigo salvou sua vida. Então, aquele que escapou da morte escreveu em uma pedra: ‘Hoje meu melhor amigo salvou a minha vida’. O outro lhe perguntou: ‘Mas por que quando eu lhe esbofeteei você escreveu na areia e agora que salvei sua vida você escreve na rocha?’. O outro respondeu: ‘Quando alguém lhe faz mal ou lhe fere, devemos escrever na areia, para que o vento do perdão possa apagar e levar embora aquilo que escrevemos. Mas, quando alguém nos faz bem, devemos gravá-lo na rocha para que nunca se apague.
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A Quaresma a partir da oração de Santo Efrém. Artigo de Manuel Nin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU