02 Março 2012
Há um ano e meio, enquanto eu procurava por uma gravação da Matthäus-Passion de Bach para compartilhar com um amigo, me deparei com um vídeo no YouTube intitulado simplesmente: "St Matthew Passion. No. 1".
Com um pouco de curiosidade musical, fui clicando e, em alguns instantes, me dei conta de que havia descoberto algo extraordinário. Essa era uma música de tirar o fôlego; grandiosa, embora contida; uma peça que falava de forma mais eloquente das dores e da esperança do sofrimento de Cristo do que qualquer coisa que eu tinha experimentado desde ouvir a própria Matthäus-Passion de Bach pela primeira vez.
No entanto, apesar das óbvias influências do Kapellmeister [responsável pela orquestra] de Leipzig, as sombrias sensibilidades russas da obra eram igualmente inconfundíveis. Quem era esse compositor? E por que demorou tanto tempo para que eu descobrisse o seu trabalho?
Um pouco de pesquisa revelou uma resposta tão inesperada quanto a minha (afortunada) descoberta inicial: essa obra impressionante foi escrita há apenas cinco anos. E seu criador, apesar de produzir algumas das músicas sacras mais bonitas e influenciadas pela tradição que eu já tive o prazer de descobrir, não é nem mesmo um "compositor de tempo integral". Ele é um bispo ortodoxo.
Conheça Hilarion Alfeyev (hilarion.ru/en), metropolita de Volokolamsk, vigário da diocese de Moscou e presidente do Departamento de Relações Exteriores da Igreja Ortodoxa Russa.
Recentemente, o metropolita encontrou algum tempo em sua agenda (sobre-humanamente ocupada) para falar sobre a sua Paixão e suas influências musicais, sobre a incomum oportunidade de ele ser compositor e celebrante, e sobre suas esperanças para o futuro diálogo entre as Igrejas Ortodoxa Russa e Católica.
A reportagem é de Joseph Susanka, publicada no sítio da revista Crisis, 28-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
A sua Matthäus-Passion foi fortemente influenciada por Johann Sebastian Bach, cuja música você chama de "ecumênica no sentido original da palavra, pois pertence ao mundo como um todo e a cada cidadão separadamente". O que lhe atrai na música de Bach, e quais as características do seu método de composição – tanto musical quanto espiritual – que você mais se esforça para imitar em suas próprias obras?
Eu não conheço nada em música clássica mais sublime, significativo, profundo e espiritual do que as obras de Bach. Bach é um colosso. A sua música contém um elemento universal que é totalmente abrangente. Como disse o poeta Joseph Brodsky, "em cada trecho de música, lá está Bach. Em cada um de nós, lá está Deus".
Bach foi um homem que, em seu trabalho criativo, conseguiu combinar uma habilidade magnífica e insuperável na composição, uma diversidade rara, uma beleza melódica e uma espiritualidade muito profunda. Sua música, mesmo a sua música secular, é permeada por um sentimento de amor a Deus, de estar na presença de Deus, de temor diante dele. Pode-se dizer até que a música para ele era o louvor a Deus.
Bach era um verdadeiro "católico", na compreensão original da palavra grega katholikos, que significa "universal", "totalmente abrangente", pois ele percebia a Igreja como um organismo universal, como uma doxologia comum voltada a Deus, e ele acreditava que a sua música nada mais era do que uma única voz no coro de louvor à glória de Deus.
A música de Bach é profundamente mística, porque se baseia em uma experiência de oração e de celebração de Deus, que transcende as fronteiras confessionais e é uma herança para toda a humanidade.
A música de Bach é profundamente cristocêntrica. Eu acredito que, escondido na música de Bach, repleta de simbolismo e de conteúdo espirituais, está o segredo da sua relevância para os povos de todas as épocas. Essa é uma música que não se torna obsoleta, porque toca os temas centrais da vida humana. Ela se dirige principalmente àquilo pelo qual as pessoas vivem – por Deus.
Você disse que a minha Paixão segundo São Mateus foi fortemente influenciada por Bach. Isso é e não é verdade. De fato, a ideia de compor essa peça me veio no dia 19 de agosto de 2006, festa da Transfiguração do Senhor, e eu, em primeiro lugar, pensei na Paixão de Bach. No entanto, eu queria preencher a forma de Bach com conteúdo ortodoxo. Em primeiro lugar e acima de tudo, eu pensava em transportar a atmosfera dos serviços divinos ortodoxos da Semana Santa para o meu Oratório, que não se destina para a Igreja. Gostaria de chamar a sua atenção para o fato de que, ao contrário da Paixão de Bach, não há nenhum libretto na minha composição, mas apenas os textos do Evangelho e os textos dos serviços divinos da Semana Santa.
As suas obras Vigília Noturna e Liturgia Divina são evocativas das obras sacras de outros grandes nomes russos: vêm à mente as Liturgias de São João Crisóstomo de Tchaikovsky e Rachmaninov, ou as Vésperas de Rachmaninov. Você estava consciente da influência deles sobre o seu trabalho, ou as semelhanças eram mais um resultado dos textos sagrados para os quais você estava compondo, ao invés de uma homenagem intencional a seus antecessores?
Sergei Rachmaninov é um dos meus compositores favoritos. No entanto, penso que seria muito difícil de executar a sua Vigília Noturna na igreja. Ela é mais adequada para um palco de concertos. Ao mesmo tempo, é uma obra tão profunda, imbuída de um espírito verdadeiramente eclesiástico, que se abre muito para as pessoas, incluindo aquelas que não fazem parte da Igreja.
Ao lidar com a composição da Liturgia, eu pensava primeiramente em como escrever uma música que permitisse oração. Hoje, muitos hinos são executados por coros ou com voz muito alta, de modo que o padre tem que cobrir o coro, ou muito rápido, de modo que o padre não tem tempo para ler as orações apropriadas. E, às vezes, ao contrário, porque o canto é muito lento, a celebração se estica artificialmente. Acontece que, durante a celebração, o santuário tem a sua vida, enquanto o espaço do coro tem outra. No santuário, está acontecendo uma ação sagrada, enquanto no espaço do coro algo completamente diferente está acontecendo. É mais como um concerto do que com um culto divino.
A razão disso, eu acho, é que a maioria dos compositores que escrevem e escreveram a música da Igreja não são sacerdotes e ouvem a celebração "externamente", não de dentro do santuário. Pela graça de Deus, eu sou capaz de ouvi-la de pé diante do altar, e é essa experiência que eu queria transmitir na Liturgia e na Vigília Noturna. Eu gostaria de escrever música que não me distraísse ao exercer as ações sagradas e ao ler as orações apropriadas, e nem distraísse os fiéis da participação orante na celebração.
As melodias que compõem a Liturgia são simples e fáceis de lembrar, são semelhantes ao canto comum. Quando a composição é executada no culto, a pessoa que está rezando na Igreja deveria ter a sensação de que está ouvindo cânticos familiares, e o seu ouvido não deveria ser distraído pela natureza nova ou incomum da música.
Em uma palestra proferida na Universidade Católica dos Estados Unidos no ano passado, você disse que, "no alvorecer do século XXI, os melhores representantes da arte da música" dirigiram a sua habilidade "novamente a Deus, louvando-O 'com cordas e flautas'". Quem lhe dá a maior esperança entre os compositores da nossa era contemporânea?
Quanto aos compositores da nossa era contemporânea que me dão maiores esperanças, eu gostaria de citar o estoniano Arvo Pärt, o polonês Henryk Mikołaj Górecki, e o britânico John Tavener. Embora haja diferenças em seus trabalhos, muito os une, não apenas em um plano musical, mas também espiritual. Todos experimentamos a profunda influência da religião e são cristãos "praticantes": Pärt e Tavener são ortodoxos, enquanto Górecki é católico. Os seus trabalhos criativos são permeados pelo tema da religião, repleta de um profundo conteúdo espiritual e estão indissociavelmente ligados à tradição litúrgica.
A vida criativa e o destino criativos de Pärt como compositor é típico do seu tempo e muito semelhante aos de Henryk Górecki (foto à direita). Ambos começaram na década de 1960 como compositores vanguardistas de obras serialistas. Górecki se afastou do seu modernismo inicial nos anos 1970 para estudar música medieval da Igreja Católica, e compôs a Terceira Sinfonia, também conhecida como Symphony of Sorrowful Songs, em 1976. Tornou-se um sucesso mundial.
Pärt se afastou da composição para estudar polifonia primitiva, em busca de um estilo próprio nos anos 1970. O período de seu silêncio e reclusão voluntários terminou em 1976: ele compôs suas primeiras peças em uma nova técnica própria, que ele chamou de "tintinabulação" (do latim, tintinnabulum, campainha). O estilo "tintinabular" caracteriza-se por buscar o máximo de simplicidade da linguagem musical. Ao mesmo tempo, essa música exerce uma forte impressão nos ouvintes, incluindo até mesmo aqueles sofisticados em música clássica.
Uma vez, um membro da equipe hospitalar me disse que as pessoas moribundas chamavam a Tabula Rasa de Pärt de "música angelical" e pediam para deixá-los ouvi-la em seu leito de morte. Pode ser que a simplicidade, a harmonia e até mesmo uma certa monotonia da música de Pärt correspondam à busca espiritual do ser humano contemporâneo.
Após sua emigração da União Soviética em 1980, Pärt compôs apenas música sacra, que era destinada, porém, para a execução em concertos. Entre 1980 e 1990, ele escreveu muitas composições sobre textos tradicionalmente católicos, incluindo a Paixão de São João, Te Deum, Stabat Mater, Magnificat, Miserere, Messe Berliner e As Bem-Aventuranças.
A influência da tradição católica se mostra pelo uso do órgão e da orquestra, juntamente com o coro e o conjunto dos solistas. A influência do canto sacro da Igreja Ortodoxa e da tradição espiritual ortodoxa tornaram-se apreciáveis na obra criativa de Pärt (foto à esquerda) desde o início dos anos 1990. Ele escreveu muitas composições sobre textos ortodoxos, principalmente para coro a capela, incluindo Kanon Pokajanen (Cânone de Arrependimento) sobre os versos de Santo André de Creta, Eu sou a videira verdadeira e Triodion sobre os textos do Triodion quaresmal [período de três semanas antes da Quaresma]. Suas obras para orquestra, como Silouan’s Song para orquestra de cordas, também são marcadas por uma profunda influência da ortodoxia.
Recentemente, eu descobri um compositor muito interessante, Karl Jenkins. Ele vive no País de Gales e escreve uma bela música, que é brilhante, acessível e simples. Eu considero o seu Réquiem uma verdadeira obra-prima da música contemporânea.
Vladimir Martynov, com quem eu estudei na minha juventude, compôs um Réquiem maravilhoso. É um réquiem maior. Certas partes dele são um pastiche aberto de Mozart ou Schubert. É uma música encantadora, positiva, leve e harmoniosa, que, creio eu, o ser humano contemporâneo precisa, já que está cansado do negativo, da dissonância e da cacofonia.
O poder da Liturgia Divina muitas vezes se perdeu entre os católicos "ocidentais" como eu, que raramente têm a oportunidade de experimentá-la. O seu arranjo realça algumas das suas características mais distintas: a sua dependência ao canto dos textos sagrados, por exemplo; o uso da repetição; a sua ênfase na natureza misteriosa e incompreensível do que está ocorrendo. Que desafios essas características pré-existentes e incontestáveis apresentam para um compositor como você? E quais são as vantagens de compor uma liturgia com uma tradição musical tão longa e venerável?
Eu gostaria de citar um dos maiores santos russos que viveu na virada do século XX, São João de Kronstadt: "A Igreja e o culto são a encarnação e a realização de todo o Cristianismo: aqui, em palavras, em pessoas e em ações transmite-se toda a economia da nossa salvação, toda a história sagrada e eclesial, tudo que é bom, sábio, eterno e imutável em Deus... A sua justiça e santidade, seu poder eterno. Aí encontramos uma harmonia que é maravilhosa em todas as coisas, uma conexão lógica incrível com o todo e com suas partes: é a verdadeira sabedoria divina acessível aos corações simples e amorosos".
Essas palavras expressam a essência do culto ortodoxo como uma escola para a oração, a teologia e o discurso sobre o divino. Todos os elementos do culto, incluindo a decoração da igreja, as exclamações do padre e o canto do coro estão subordinadas a um único objetivo – dirigir o fiel à oração, permitir que o seu coração e a sua mente se unam ao Senhor.
Com relação às diferenças entre o culto cristão no Ocidente e no Oriente, eu acho que todos nós – ortodoxos e católicos - deveríamos refletir profundamente sobre as raízes comuns da liturgia. De fato, quando falamos da Missa Latina, nós geralmente imaginamos ou a versão curta, que foi adotada no Concílio Vaticano II ou, não tão geralmente, a Missa Tridentina, que, devemos lembrar, foi composta há relativamente pouco tempo.
E, claro, o culto da Igreja Russa – em particular a música que é nela executada – está longe de ser antiga.
No entanto, se nos voltarmos para as fontes das nossas tradições litúrgicas, para o canto gregoriano no Ocidente e para os cantos bizantino e Znamenny no Oriente –, vemos que temos mais em comum do que aquilo que nos separa.
A partir do século XVII, a música da Igreja Russa começou a sentir a influência do Ocidente. De um lado, isso levou a uma ruptura com as suas tradições medievais – particularmente, o canto uníssono caiu em desuso quase completamente. No entanto, por outro lado, a música litúrgica russa contemporânea é mais compreensível para o ocidental, e, quando este entra em uma igreja russa, ele não sente nenhum tipo de "choque cultural".
Quando eu escrevia música litúrgica, eu tentava me inspirar nas tradições musicais da ortodoxia russa em toda a sua plenitude. Quero dizer com isso que, seguindo os cânones, não existe nenhum impedimento ao processo criativo. Exatamente o contrário – eles ajudam o compositor, o artista e o hinógrafo.
Qual seria o maior benefício de uma maior familiaridade entre os católicos orientais e ocidentais com suas liturgias alternativas – um esforço mais concentrado para, nas palavras de João Paulo II, "respirar com dois pulmões"? Se lhe pedissem para descrever a característica mais fundamental da Igreja Ortodoxa e dos seus seguidores a um "ocidental" como eu, o que você diria?
Uma resposta detalhada à sua pergunta levaria muito tempo. Mas, sendo breve, eu diria que o cristianismo ortodoxo é uma religião de beleza e liberdade, uma religião de amor e luz. A ortodoxia nos abre a uma vastidão sem limites para a criatividade espiritual, para a autoeducação interior e – o que é mais importante – para um encontro com Deus. Na ortodoxia, ninguém deveria se sentir constrangido, sem ar ou desconfortável. Há um lugar na ortodoxia para o erudito, para o poeta e para o artista, para o rico e para o pobre, para os dotados e para aqueles que não foram abençoados com grandes talentos, para os educados e para os simples.
Em uma recente entrevista após a sua visita ao Papa Bento XVI em Castel Gandolfo, você mencionou que ficou muito encorajado pela atenção do pontífice ao diálogo entre católicos e ortodoxos. Quais são, a seu ver, os maiores obstáculos teológicos e hierárquicos que se interpõem entre as nossas duas Igrejas? Que papel nós podemos desempenhar, como leigos e leigas, na unificação tão desejada do Oriente e do Ocidente?
No diálogo com a Igreja Católica Romana, nós partimos do fato de que essa é uma Igreja que preservou a sucessão apostólica em sua hierarquia, e que também tem uma doutrina sobre os sacramentos que é muito similar à nossa doutrina. Também é muito importante que tanto os ortodoxos quanto os católicos têm os mesmos fundamentos morais e uma doutrina social muito semelhante.
As diferenças teológicas entre Roma e o Oriente Ortodoxo são bem conhecidas. Além de uma série de aspectos no campo da teologia dogmática, são o ensino sobre o primado na Igreja e, mais especificamente, sobre o papel do bispo de Roma. Esse assunto é discutido no âmbito do diálogo ortodoxo-católico, que vem ocorrendo há várias décadas em sessões de uma comissão conjunta especialmente criada para esse propósito.
Mas hoje um problema diferente está adquirindo uma importância primordial – o problema da unidade de ortodoxos e católicos na causa da defesa do cristianismo tradicional. Para o nosso grande pesar, uma parte significativa das confissões protestantes, até ao início do século XXI, adotou os valores liberais do mundo moderno e, em essência, renunciou à fidelidade aos princípios bíblicos no campo da moral. Hoje, no Ocidente, a Igreja Católica Romana continua sendo o principal baluarte na defesa dos valores morais tradicionais – como, por exemplo, a fidelidade conjugal, a inadmissibilidade de acabar artificialmente com a vida humana, a possibilidade da união conjugal como uma união somente entre homem e mulher.
Portanto, quando falamos de diálogo com a Igreja Católica Romana, eu acredito que a prioridade nesse diálogo hoje não deveria ser a questão do filioque ou do primado do papa. Devemos aprender a interagir na situação em que nos encontramos hoje – em um estado de divisão e de ausência da Comunhão eucarística. Devemos aprender a perceber uns aos outros não como rivais, mas como aliados, entendendo que temos um campo missionário comum e encontramos desafios comuns. Encontramo-nos diante da tarefa comum de defender os valores cristãos tradicionais, e os esforços conjuntos são essenciais hoje, não por causa de certas considerações teológicas, mas principalmente porque devemos ajudar os nossos países a sobreviver. Essas são as prioridades que nós compartilhamos nesse diálogo.
Estou convencido de que os leigos – tanto católicos quanto ortodoxos – podem desempenhar e já estão desempenhando um papel muito importante nessa causa, cada um em seu lugar, para o qual o Senhor os chamou, dando testemunho dos valores do Evangelho que as nossas Igrejas preservam.
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Música sacra: uma experiência como celebrante e compositor. Entrevista com Hilarion Alfeyev - Instituto Humanitas Unisinos - IHU