19 Dezembro 2022
“Os eurocentristas acreditam que compreendem o que acontece na América Latina e consideram nossas lutas como laboratórios que confirmariam suas elucubrações. Alguns deles se sentem teoricamente desarmados diante da guerra, mas não querem aprender com as experiências de povos que sobrevivem há cinco séculos de massacres e extermínios. Atendem apenas à produção teórica das academias e das esquerdas que se referenciam nos Estados-nação, ou seja, na colonialidade do poder”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 16-12-2022. A tradução é do Cepat.
A invasão russa da Ucrânia e a consequente guerra entre potências está provocando efeitos profundos no pensamento crítico e nos movimentos, mas de forma divergente no Norte e na América Latina. Aprofundam-se as diferenças e as distâncias nas formas de conceber e praticar as transformações anticapitalistas, bem como as formas de pensar a realidade.
Na história do pensamento crítico, a guerra e a revolução caminham entrelaçadas, de tal forma que é quase impossível não relacionar a segunda com a primeira. O recente livro de Maurizio Lazzarato, Guerra o revolución: porque la paz no es una alternativa (Tinta Limón, 2022), recupera o conceito de guerra que, em sua opinião, tinha sido expulso pelo pensamento crítico, nos últimos 50 anos.
O núcleo de seu trabalho retorna à proposta de Lenin de 1914, no sentido de transformar a guerra imperialista entre os povos em uma guerra civil das classes oprimidas contra seus opressores. Argumenta que o grande problema tem sido, paralelamente, o abandono do conceito de classe, além do de guerra e revolução. E afirma que a conjuntura atual é muito semelhante à de 1914.
Esta é uma primeira e decisiva diferença: neste continente, a guerra está presente e é inocultável, particularmente contra os povos originários e negros, camponeses e habitantes das periferias urbanas. As guerras contra as drogas e a apropriação de territórios pelo extrativismo são apenas a última versão de uma guerra de séculos contra os povos.
No entanto, o aspecto central a ser destacado é outro. Os povos estão enfrentando as guerras contra eles de forma assimétrica, não porque sejam pacifistas, mas porque uma longa experiência de cinco séculos os convenceu de que para sobreviver como povos devem seguir outros caminhos.
O zapatismo conseguiu romper os laços que existiam entre revolução e guerra e, no mesmo processo, extirpou da revolução suas adesões estatistas, para deixar seu núcleo intacto: recuperação dos meios de produção e troca, criação de novas relações sociais e de poderes não estatais. As autonomias são o caminho, tanto para resistir à guerra de espoliação quanto para se afirmar como povos que se autogovernam.
É verdade que as esquerdas europeias e também as latino-americanas ficaram sem política, sem propostas concretas diante da guerra. Contudo, os povos deste continente, especialistas em sobreviver às guerras de espoliação, estão trilhando caminhos inéditos, como fazem os mapuches, os nasa e misak, as dezenas de povos amazônicos e os povos negros e camponeses para enfrentar esta guerra. Começam a colocar a autonomia em um lugar central de suas construções e reflexões, algo que parece escapar dos intelectuais dos dois lados do oceano.
Uma demonstração a mais desse eurocentrismo que pretende falar pelos povos oprimidos é quando Lazzarato aponta que o grande mérito da revolução russa foi abrir caminho para a revolução dos povos oprimidos. Esquece nada menos que a Revolução Mexicana e a primeira revolução chinesa. Os processos mais profundos nascem nas periferias e muito mais tarde se expandem para o centro.
Não é verdade que a posição mais clara em relação à guerra continue sendo a socialista revolucionária da Primeira Guerra Mundial. Foi muito valiosa, no seu tempo, para as classes trabalhadoras da Rússia e da Europa. Fracassou na China, onde os comunistas seguiram caminhos bem diferentes, criando bases vermelhas libertadas pelo exército camponês, processo seguido por outros povos do sul.
Os eurocentristas acreditam que compreendem o que acontece na América Latina e consideram nossas lutas como laboratórios que confirmariam suas elucubrações. Alguns deles se sentem teoricamente desarmados diante da guerra, mas não querem aprender com as experiências de povos que sobrevivem há cinco séculos de massacres e extermínios. Atendem apenas à produção teórica das academias e das esquerdas que se referenciam nos Estados-nação, ou seja, na colonialidade do poder.
Parece-me necessário refletir sobre como os povos de raiz maia, organizados no EZLN [Exército Zapatista de Libertação Nacional], desarticularam o casamento revolução-guerra, que tanto dano nos causou no passado imediato, e obteve resultados muito ruins.
Não dá mais para ignorar aqueles que foram exterminados nas guerras centro-americanas, e como as vanguardas se reposicionaram na legalidade, abandonando os povos que usaram (sim, usaram) para a sua guerra revolucionária.
A decisão de encarar a resistência civil pacífica para enfrentar a guerra assimétrica e de extermínio do Estado mexicano é uma decisão estratégica, mas não tem a menor relação com o pacifismo, se compreendi algo sobre o zapatismo. Trata-se de uma leitura de baixo, dos povos, dos desafios que o sistema nos lança.
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Olhar sem ver, pensar sem sentir: os limites do eurocentrismo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU