Em conferência proferida no IHU ideias, de 03-11-2022, o jornalista e ativista político detecta uma série de violências imposta aos povos desde a tomada de seus espaços
O período das colonizações na América Latina, inaugurado no século XVI, impôs uma série de violências a populações humanas e ecossistemas. Levamos anos para reconhecer o que de fato houve nesses processos e, desde então, ensaiamos as chamadas visões decoloniais, que visavam restaurar, em alguma medida, os saberes, as formas de vida de populações da terra e aprender, especialmente, com suas relações com o meio ambiente. No entanto, o problema é que essas violências retornam de tempos em tempos. É o que aponta o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em conferência promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Podemos dizer que o extrativismo é uma neocolonização de nossos países e territórios”, constata.
Ele ainda explica que “no modelo de acumulação por desapropriação ou roubo, os povos são um obstáculo para a acumulação do capital. Por isso, o plano ideal das grandes empresas é o despejo de populações inteiras para poder remodelar a relação com o território, a natureza e converter os bens comuns em mercadorias, commodities”. Ou seja, com muito mais requinte do que em séculos passados, o que move atualmente é um interesse financeiro nas coisas da terra, subjugando e desapropriando as populações. “Esse é um plano que provoca grandes problemas ambientais, sociais, uma polarização crescente no cenário de todas as nações e provoca um enfraquecimento dos aparelhos institucionais e estatais”, acrescenta.
Ao longo da conferência, Zibechi detalha o quadro de conflitos que temos vivido. “Na América Latina, há mais de 250 conflitos por causa da mineração e 180 conflitos por causa da água porque o avanço do extrativismo provoca, naturalmente, nos povos camponeses, originários e quilombolas, lutas defensivas de seus territórios”, diz.
O analista também reflete sobre a conjuntura política latino-americana e é bastante cauteloso sobre a ideia de estarmos vivendo uma nova onda progressista ao sul do continente. Para ele, “teremos novos governos na Argentina, no Brasil, mas essa é uma onda muito diferente da primeira”. Isso porque, na sua visão, há bem pouco espaço para efetivas mudanças. “Não estou falando das mudanças estruturais que a primeira onda não conseguiu realizar. Estes são governos que nem sequer têm condições de ser governos progressistas. O caso mais claro é Alberto Fernández, na Argentina, que enfrenta uma crise econômica terrível e faz uma repressão muito forte aos mapuches ao sul do país”, observa. E indaga: “O governo de Lula e de Geraldo Alckmin, com uma aliança centrista, que não é o centrão tradicional, é uma aliança que dificilmente vai facilitar que Lula faça algumas mudanças. Evidentemente que, saindo do governo Bolsonaro, vai melhorar a situação, mas quanto? Que possibilidades de mudanças existem?”
Raúl Zibechi
Foto: ssb.org
Raúl Zibechi é escritor, jornalista e pensador-ativista uruguaio, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina. Entre suas publicações mais recentes, estão: Latiendo resistencia: mundos nuevos y guerras de despojo (Oaxaca: El Rebozo, 2015), Descolonizar el pensamiento crítico y las prácticas emancipatorias (Quimantú, 2014; Desdeabajo, 2015) e Preservar y compartir: bienes comunes y movimientos sociales (Buenos Aires: Mardulce, 2013).
IHU – Como descreve o modelo extrativista hoje?
Raúl Zibechi – Hoje, na América Latina existe um modelo de acumulação de capital que chamamos de acumulação por desapropriação, como expõe David Harvey. É um modelo focado na mineração, no agronegócio, nas grandes obras de infraestrutura. É isso que chamamos de extrativismo urbano ou especulação imobiliária nas cidades, que é responsável pela desigualdade crescente em nossos países.
Por um lado, o modelo extrativista é uma ocupação vertical e militarizada dos territórios, como é o caso da mineração e do agronegócio. São relações assimétricas entre as grandes empresas, corporações, multinacionais e os Estados nacionais e os povos. São economias que não se relacionam com o contexto, com os povos, com as populações que vivem ao redor da mineração ou do agronegócio. Esse modelo extrativista tem uma intervenção política muito forte e potente, com capacidade para mudar a legislação dos Estados-nação. Em quase todos os países, foram aprovados novos Códigos de Mineração por pressão das grandes empresas. Além disso, o extrativismo significa um ataque muito forte à agricultura familiar e à soberania alimentar dos países. O extrativismo é o que chamamos de o ator social total porque tem intervenções sociais capazes de limitar o poder do Estado nos territórios, nos estados e municípios, mas também tem iniciativas na educação, na saúde, no esporte, capazes de convencer as populações das benesses da sua atividade. Onde existem fortes iniciativas de extrativismo, o feminicídio, o ataque às mulheres, é uma das suas características. É muito comum, em períodos de construção dos empreendimentos minerais, os casos de feminicídio crescerem nessas regiões.
Nesse sentido, podemos dizer que o extrativismo é uma neocolonização de nossos países e territórios. No modelo de acumulação por desapropriação ou roubo, os povos são um obstáculo para a acumulação do capital. Por isso, o plano ideal das grandes empresas é o despejo de populações inteiras para poder remodelar a relação com o território, a natureza e converter os bens comuns em mercadorias, commodities. Esse é um plano que provoca grandes problemas ambientais, sociais, uma polarização crescente no cenário de todas as nações e provoca um enfraquecimento dos aparelhos institucionais e estatais. É um modelo que coloca em crise a democracia e a governabilidade dos países. Essa é uma forma muito geral de descrever os efeitos do extrativismo. Mas esse modelo também muda coisas mais profundas. Na Bolívia, por exemplo, que historicamente é um país de mineração, os economistas dizem que a exportação de soja dá mais divisas ao país e é mais importante que a exportação de minerais. Então, há uma mudança profunda. No Brasil e na Argentina, o modelo extrativista provocou uma desindustrialização e isso é dramático porque a cultura da classe trabalhadora entra em crise: todos os aparelhos, movimentos sociais e sindicatos, criados a partir do modelo industrial, entraram em crise.
No período de hegemonia da cultura operária, era normal a importância da Teologia da Libertação e das comunidades eclesiais de base. Agora, além do modelo extrativista, há um forte crescimento das igrejas evangélicas e pentecostais e isso é parte de uma mudança econômica, política, social e cultural. Outro problema que temos nessa recolonização de nossas sociedades é que uma parte importante da terra está sendo disputada pelas grandes empresas. Estudos mostram que até 40% do território brasileiro está fora do controle das grandes empresas e do agronegócio. Estamos falando de mais de 100 milhões de hectares de terras indígenas, 100 milhões de territórios de conservação onde vivem povos tradicionais, ribeirinhos, pescadores, 88 milhões de hectares de assentamentos de reforma agrária e mais propriedades quilombolas e estabelecimentos de pequenos e médios agricultores. É a mesma situação em outros países da América Latina. Estamos falando de 400 milhões de hectares fora do controle do grande capital, das mineradoras, do agronegócio e grandes multinacionais. Esse território está em disputa, está sendo desejado pela especulação e isso é parte do conflito atual.
Na América Latina, há mais de 250 conflitos por causa da mineração e 180 conflitos por causa da água porque o avanço do extrativismo provoca, naturalmente, nos povos camponeses, originários e quilombolas, lutas defensivas de seus territórios. O próprio modelo de acumulação por desapropriação modifica a luta social: lutas que na década de 1980 estavam concentradas no ABC Paulista, nas grandes empresas, agora estão nos territórios.
O centro dos conflitos atuais são os territórios onde avança o extrativismo. E aí temos uma remodelação do conflito social e uma situação nova porque, assim como as lutas operárias naturalmente se organizavam em sindicatos e organizações estabelecidas e reconhecidas pelo Estado, hoje há uma diversidade de resistências e muitas delas não são articuladas – e esse é um dos limites das resistências atuais. O modelo neocolonial é profundamente destrutivo das relações sociais. É um modelo que pode ser governado pela direita, normalmente, ou pela esquerda.
IHU – Como os Estados corroboram o extrativismo nos países da América Latina?
Raúl Zibechi – Qual é o Estado adequado para a acumulação por desapropriação? David Harvey não fala disso porque está olhando para o Norte, onde é normal que as principais formas de desapropriação sejam as privatizações e as patentes das grandes corporações. Mas, em nossos países, a situação é completamente diferente. A violência é fundamental para compreender as formas de desapropriação e do Estado nesses casos.
A primeira questão é que o Estado foi apropriado, sequestrado, pelo 1% da população, os mais ricos, o capital financeiro. É feita uma blindagem muito forte do Estado, através de leis e mecanismos internacionais. O capital financeiro mais concentrado e volátil conseguiu sequestrar os Estados através da legislação internacional, da formação de uma raça de administradores treinados para gerenciar as instituições internacionais de acordo com as necessidades da globalização e da crescente modernização em paralelo às Forças Armadas e à polícia, com um capitalismo de controle e vigilância. Qualquer governo que se afaste da organização das instituições internacionais é marcado como populista ou autoritário, como sucede na América Latina.
Desta forma, grandes corporações do Norte e agências dependentes dos EUA, como o Fundo Monetário Internacional – FMI, têm capacidade para derrubar governos, apelando a uma gama de métodos, desde golpes suaves, como o sofrido por Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009, e por Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, além de outros processos de desestabilização. O caso mais evidente é Cuba, que sofreu mais de 60 anos. Este é o panorama: o Estado mudou, foi remodelado em todo o mundo, e em toda a América Latina, para servir à acumulação por desapropriação.
Normalmente, quando olhamos para as instituições, olhamos a partir de cima. Olhamos o Congresso, os tribunais de justiça, a presidência, os ministérios, mas o que sucede se olharmos essas instituições a partir de baixo, dos bairros, territórios, favelas e outros territórios? O que observamos? Observamos uma aliança entre polícias, milícias, narcotraficantes e igrejas evangélicas, um capitalismo de controle nos territórios. Trata-se de um controle completamente militarizado, como acorre no Rio de Janeiro, diferentemente do controle que ocorre nos bairros nobres. Isso que se observa no Rio de Janeiro, mas também tenho visto em Medellín, na Colômbia, na parte sul de Bogotá, em Rosário, na Argentina, em muitos bairros de Buenos Aires, e em bairros de Santiago, no Chile. Em muitas cidades da América Latina, observamos essa forma militarizada de controle e de alianças estatais com a polícia e narcoevangélicos.
Recentemente, visitei o território Mapuche, no sul do Chile, e pude observar um crescimento incrível da militarização do Estado e do narcotráfico. No Equador e em muitas partes da América Latina, há um crescimento do narcotráfico, como no México, na Guatemala, na Colômbia, que foi o primeiro país onde o narcotráfico se instalou como sistema e conseguiu permanecer como um modelo de ataque e controle das lutas sociais.
José Cláudio Alves, do Rio de Janeiro, é um analista interessante dessas realidades. Ele diz algo muito interessante: que o matador e o miliciano se elegem e têm relações diretas com o Estado; eles são agentes do Estado, são o Estado. Então, disse ele em uma entrevista em 2019: “Não me venha falar que há uma ausência do Estado. É o Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a segurança daquela área.” Nessa mesma entrevista, ele explica o funcionamento econômico das milícias não só nas favelas, mas nas áreas de habitação do programa Minha Casa Minha Vida. Ele diz: “A base de uma milícia é o controle militarizado de áreas geográficas. Então, o espaço urbano em si se transforma em uma fonte de ganho. Quando se controla militarmente um espaço urbano, seja com armas, seja por meio da violência, ganha-se dinheiro.” Essa é a acumulação por desapropriação não na zona nobre da cidade, mas nas favelas, nas regiões onde moram as populações pobres, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, nas periferias, em São Paulo, ou nos bairros do Sul.
É importante considerar que essa mudança na forma de atuação do Estado nos territórios das populações pobres é um controle militarizado, é uma forma brutal de acumulação por desapropriação. Nas favelas, se querem ter acesso ao “gatonet”, as pessoas têm que pagar ao tráfico vinte, trinta reais mais do que às empresas privadas que não têm possibilidade de atuar nas favelas. O gás também é mais caro. Se a pessoa traz um botijão de gás de fora da favela, tem problemas. E assim é com muitos serviços. A segurança nos prédios do Minha Casa Minha Vida é controlada pelo tráfico. Então, há duas formas de controle: uma forma estatal, presente nos territórios daqueles setores sociais que precisam lutar para melhorar sua situação, e formas de apropriação por acumulação própria, com características dos territórios pobres.
Naturalmente, essa forma de controle tem uma continuidade na política. José Cláudio Alves diz que o esquadrão da morte, que começou na ditadura, legou como herdeiro as milícias que atuam na Baixada Fluminense. O resultado disso é que 70% da população vota em Bolsonaro. Em bairros de Bogotá, os moradores votam em [Álvaro] Uribe, que é o Bolsonaro da Colômbia. Então, temos essa situação muito complexa: o modelo neocolonial de acumulação é um modelo de controle territorial também militarizado. Na pandemia, isso ficou muito claro em vários países. No Chile, o governo de Sebastián [Piñera] aproveitou a pandemia para controlar, com muita intensidade, a população que estava em plena revolta.
Então, os mecanismos são esses e não existe possibilidade de mudar no curto prazo. Os governos de esquerda, chamados de “progressistas”, têm muitas dificuldades para mudar essa situação. Como poderiam mudar a cultura e a forma de agir da polícia militar? Não sei. Não há uma discussão na esquerda e no pensamento crítico de como mudar a forma de agir das forças armadas e das forças policiais. Elas são um poder muito forte, muito difícil de mudar e controlar democraticamente. Este é um dos grandes problemas da democracia atual na América Latina. Outro problema é a privatização crescente dos aparelhos repressivos e armados. Em nossos países existe uma quantidade enorme de guardas privados que trabalham no controle da população.
IHU – Que balanço faz das manifestações ocorridas nos últimos anos em países da América Latina?
Raúl Zibechi – Os três últimos anos foram muito importantes para a América Latina porque houve uma acumulação de revoltas. De 2019 a 2022, ocorreram duas grandes revoltas no Equador, protagonizadas pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador – CONAIE, que representa os povos originários organizados. Mas, na última manifestação, também foi muito importante a presença dos pobres da cidade. No Equador, as duas revoltas foram exitosas e tiveram resultados positivos.
Na Colômbia, também ocorreram duas revoltas, em 2019 e 2021, que foram as mais fortes na história da Colômbia. São revoltas urbanas porque hoje a maior parte da população é urbana. No centro da revolta, que aconteceu em Cali, cidade de população negra, foram criados 25 pontos de resistência. A revolta durou entre dois e três meses, com a paralisação das atividades e a criação de pontos onde a população, unida, liberava uma parte pequena da cidade para criar locais para alimentação, postos de saúde, espaços para brincadeiras, esporte, arte e lazer popular. O levante contou com a participação da guarda indígena de Cauca, que é uma das grandes forças sociais da América Latina. Essas duas revoltas conseguiram deslegitimar Uribe, que tinha 70, 80% das votações, mas perdeu a eleição depois de mais de 20 anos de governo.
Também ocorreu um grande levante no Chile, em 2019, que foi o que permitiu que o modelo de exploração chileno começasse a entrar em crise e fosse reconduzido pelos políticos no processo de criar uma constituição, que acabou fracassando por diversas razões. Mas no levante do Chile foram criadas 200 assembleias territoriais com duas coordenações diferentes em dois setores de Santiago. Essa foi uma força territorial organizada muito importante.
Ocorreu ainda um breve levante importante no Peru, quando a juventude ganhou as ruas e impediu a estabilização do governo Manuel Merino. Aconteceu também o levante de 2018, na Nicarágua, que é parte desse período intenso de lutas. Ocorreram também outras lutas importantes na América Latina, como a luta dos camponeses indígenas na Bolívia contra o regime ditatorial autoritário que não queria convocar eleições e foi forçado a convocá-las.
Boa parte dessas revoltas foram reconduzidas até as eleições, como é natural, através de governos progressistas, como o de Gabriel Boric, Gustavo Petro e Pedro Castillo. Mas esses são governos que têm muita dificuldade para fazer mudanças. O caso de Pedro Castillo é o mais sintomático deles.
IHU – Estamos diante de uma segunda onda de governos progressistas na América Latina? O que ela significa e em que se difere da primeira?
Raúl Zibechi – Sim, teremos novos governos na Argentina, no Brasil, mas essa é uma onda muito diferente da primeira. Os governos progressistas, hoje, não têm possibilidade de fazer mudanças. Não estou falando das mudanças estruturais que a primeira onda não conseguiu realizar. Estes são governos que nem sequer têm condições de ser governos progressistas. O caso mais claro é Alberto Fernández, na Argentina, que enfrenta uma crise econômica terrível e faz uma repressão muito forte aos mapuches ao sul do país. Então, podemos dizer que esses governos são realmente progressistas? Acho que não. Mas esta é uma discussão aberta.
O governo de Lula e de Geraldo Alckmin, com uma aliança centrista, que não é o centrão tradicional, é uma aliança que dificilmente vai facilitar que Lula faça algumas mudanças. Evidentemente que, saindo do governo Bolsonaro, vai melhorar a situação, mas quanto? Que possibilidades de mudanças existem? Seguramente, o senhor Henrique Meirelles será o Ministro da Fazenda.
Nesses períodos de rebeldia, fortaleceu-se o caminho de autonomia dos povos. Há uma série de processos autônomos importantes na América Latina: passamos de 14 protocolos de consulta autônomos criados por povos indígenas em 2019 para 26 protocolos na Amazônia, dos quais participam 64 povos indígenas em 48 territórios diferentes. Isso mostra uma expansão dos processos autônomos na Amazônia.
Além disso, há dois governos autônomos no Peru, como o governo territorial autônomo da nação wampís, que foi criada em 2015, e autogoverna-se em um espaço próprio. Também estão ocorrendo processos urbanos em Cheran, no México. Na Cidade do México, em bairros autônomos, ocorrem processos de autonomia em Chiapas. Ou seja, há uma diversidade de processos autônomos ou semiautônomos não diretamente explicitados que não falam diretamente em autonomia, mas estão criando processos pequenos de autonomia em alguns casos e, mais amplos, em outros, processos de autogoverno, de controle territorial, de autodefesa. Há uma realidade importante de guardas indígenas em muitas partes do continente latino-americano, com 64 povos da Amazônia fazendo protocolos autônomos de demarcação das terras. Esse é um sintoma de um processo que está em plena expansão. Vamos ver o que sucede nos próximos anos com a criação do ministério dos povos indígenas, que não é uma boa notícia, mas o debate está aberto.
IHU – Quais são os limites da opção pela autonomia dos povos?
Raúl Zibechi – Faço parte da corrente que defende a autonomia dos povos, mas essa corrente tem limites. O primeiro é que a questão deve aprofundar o arranjo territorial e a diferença deles em relação à sociedade hegemônica. O arranjo territorial não é simples, mas manter-se como povos diferentes nesse período tampouco é simples; a situação é mais complexa.
A segunda questão é o problema do isolamento. Essas experiências isoladas, autônomas, não podem permanecer por muito tempo. Esses povos devem se relacionar com outras experiências, provavelmente não em uma relação de unidade tradicional dos sindicatos, mas, sim, caminhar juntos, fazer juntos, sem criar uma estrutura vertical, que normalmente a cultura autonomista rejeita. É um desafio. Não é simples, mas estas são as duas tarefas: aprofundar o arranjo e coordenar e articular a luta com outras lutas. Existe uma articulação de povos indígenas no Brasil, com os acampamentos que ocorrem na Esplanada dos Ministérios todos os anos, mas ela precisa se articular com os povos camponeses, com os quilombolas, com as periferias urbanas. A coordenação deve ser mais ampla.
O terceiro problema é como enfrentar a violência estatal, paramilitar ou paraestatal, a violência dos fazendeiros e do Estado. Não sabemos como fazer; não é simples. Sabemos que não podemos fazer como fazíamos nas décadas de 1960 e 1970, isto é, responder à violência estatal com violência. Na minha organização, falávamos o seguinte: frente à violência reacionária, a violência revolucionária. Mas, agora, vamos lutar de uma forma pacífica e a resistência é importante. Isso é o que faz a maioria dos povos.
A pergunta, no entanto, é: quanto tempo é possível resistir à violência dos fazendeiros, dos jagunços, do narcotráfico e à indiferença ou apoio do Estado a essas violências? Não sabemos. Recentemente, visitei algumas aldeias zapatistas completamente isoladas e rodeadas por narcotraficantes e grupos paramilitares em Chiapas, e a resistência é muito difícil. Então, temos perguntas, mas não sabemos o que fazer nesses casos. Permanecer nessa situação não é simples, mas sair dela tampouco é simples.
Sabemos que essas decisões serão tomadas pela mão dos povos. Não vai existir uma vanguarda que dirá aos povos quais coisas devem fazer. Essa é uma mudança importante frente às décadas de 1960 e 1970, em que a luta era decidida por um pequeno grupo de pessoas brancas, homens, chegados das universidades e das cidades, como sucedeu em todo o mundo.
Para finalizar, gostaria de citar as palavras de Flavio Lazzarin, em entrevista ao IHU, na qual comentou as eleições brasileiras. Ele disse: “Estou profundamente convencido de que o voto mais consciente, mesmo nessas eleições, foi o voto das minorias indígenas e camponesas, o voto das mulheres, dos homoafetivos, dos negros, das minorias abraâmicas que lutam cotidianamente com seus corpos e territórios contra a violência e a mentira, mostrando espiritualidade e caminhos para salvar o planeta do suicídio. Esperam tudo da sua luta e não da benevolência do Estado, fiel garçom do capitalismo, como diria o subcomandante Marcos”.
Essas são as palavras do Pe. Lazzarin e acho muito interessante essa referência à espiritualidade. Em outubro, visitei uma aldeia guarani em São Paulo. Foi uma experiência muito forte para mim porque, em minha formação política marxista, a espiritualidade não existia. A coesão social da comunidade provinha, na minha ideia e na de muitos marxistas, da propriedade coletiva da terra. Mas comprovei ali a importância da espiritualidade, a importância e a centralidade da espiritualidade na casa de oração, onde eles passam muitas horas do dia cantando e dançando.
Essa espiritualidade é fundamental. Não se trata de 20 ou 30 minutos de mística, mas da centralidade da espiritualidade, que é a ligação com outras pessoas, a ligação com a terra, a ligação com a vida, com o cosmos, com os animais, com as plantas. Acredito que estamos em um período de aprendizagem para pessoas como eu. Naturalmente, não sei se para outros. Mas uma das chaves da autonomia é a espiritualidade, a mobilização interior. No Ocidente, só olhamos para a manifestação, para a rua, mas existe uma mobilização interior que é muito importante para a sobrevivência dos povos. É disso que estamos falando e acho que isso é muito importante neste período de crise do capitalismo, de crise civilizatória, de crise da humanidade. Não vamos sair dessas crises sem uma forte espiritualidade comunitária e coletiva que possa intensificar o elo com a vida.