28 Agosto 2017
O atual presidente do Senado pela Frente Guazú conta como entrou na política e fala sobre sua relação com o Vaticano, suas recordações de Perón, seus vínculos com a Teologia da Libertação e a necessidade de uma reforma agrária.
“Amiga, vem tomar um mate com absinto e carqueja, amargo como a verdade”, convida. Fernando Lugo, ex-presidente do Paraguai de 15 de agosto de 2008 até 22 de junho de 2012, recebe o Página/12 em sua casa, em um bairro operário de Assunção. Tudo no lugar é simples: as poltronas floreadas, as imagens de Nossa Senhora, crucifixos e um enorme quadro do general José Gaspar Rodríguez de Francia y Velasco (1776-1840), o principal representante do movimento independentista e ideólogo da emancipação paraguaia.
A casa deve ter mais de 30 anos à qual foram anexados um escritório e um lugar que é uma mistura de churrasqueira e sala de jantar, onde mais tarde, naquele domingo, seus dois filhos iriam almoçar. Antes, durante uma hora e meia de conversa e mate, o atual presidente do Senado pela Frente Guazú preocupa-se em responder a cada uma das perguntas.
A entrevista é de Any Ventura, publicada por Página/12, 26-08-23017. A tradução é de André Langer.
Como foi sua relação com a Igreja e especialmente com o Vaticano? Foi preciso falar com o Papa para deixar de ser bispo e dedicar-se à política.
De acordo com a teologia, eu não podia ser candidato a presidente. Porque há dois sacramentos na Igreja que imprimem caráter, ou seja, que têm caráter indelével, que não se apagam nunca, e um deles é o sacerdócio; o outro é o batismo. Por isso, não existe o rebatismo, não existe o re-sacerdócio; uma pessoa é sacerdote in aeternum até a morte.
Qual foi a relação que a sua história e a sua maneira de pensar tiveram com a revolução cubana, com Fidel Castro?
Nenhuma. O Equador me abre os olhos para a perspectiva Latino-Americana. Aqui no Paraguai tínhamos uma formação muito fechada; aqui, nos seis anos de formação, nunca ouvimos falar da Teologia da Libertação. Eu fui o primeiro professor de Teologia da Libertação quando voltei para o Paraguai em 1982. Porque eu fiz minha tese sobre a Teologia da Libertação. O Equador me abre os olhos. Em 1978, aconteceram os preparativos para a Conferência de Puebla e nasceu no Equador a famosa Coordenação da Igreja dos Pobres. Com um grupo de sacerdotes pastoralistas, muito avançados, biblistas. Isso marca uma certa consciência pastoral, social também, muito comprometida.
Ou seja, você demorou para se relacionar com os movimentos da Igreja para a libertação.
É verdade. Quando aconteceu a revolução sandinista eles vieram pedir alfabetizadores no Paraguai. E foram cerca de 100 rapazes da paróquia, desse grupo de fundadores da Igreja dos Pobres. Até esse momento eu não tinha nenhuma relação com nenhum movimento socialista da América Latina. Ouvia-se lá por 1976 certa relação clandestina com certos movimentos que vinham da Argentina, do Chile, mas nunca tivemos relação com eles.
O que pensava do peronismo?
Eu nasci em 1951, em um povoado pequeno e tenho uma recordação muito infantil, de um homem muito generoso que amava os pobres e que mandava brinquedos às crianças. Mas, na América Latina, também se tinha conhecimento da relação de Perón com alguns líderes vinculados ao fascismo.
Bom, a relação de Perón com Stroessner não era nenhum segredo.
Ele esteve exilado aqui alguns meses.
Como você deixou de ser militante religioso para tornar-se político e chegar à presidência do Paraguai?
Eu nunca tomo uma decisão sozinho, sempre tenho amigos companheiros, a família, minha irmã, a que foi primeira dama e que viveu a minha transformação. Lembro perfeitamente do que tínhamos conversado com ela; nesse dia eu pergunto a ela e a outro irmão o que pensavam sobre isso. E me disseram: “se pudeste dedicar-te 30 anos à Igreja, podes dedicar-te a um país”. A missão era agregar um ingrediente ético à política, evangelizar o ambiente político. Em dezembro de 2006, iriam fazer um abaixo-assinado para reunir 10 mil assinaturas e me trouxeram 120 mil. E isso não me deixou dormir. Aí decidi pedir a redução ao estado laical para poder me dedicar à política. Para os bispos e os sacerdotes é muito fácil criticar as deficiências. Um professor meu de teologia me disse: “a política é um pântano de onde ninguém sai limpo”.
E decidiu entrar no barro.
Decidi embarrar-me, entrar no campo com todas as normas e leis. Jogar em campo alheio. Sou o único político do Paraguai que não está filiado a nenhum partido. Estou por afinidade ideológica, afinidade estratégica, na Frente Guazú.
A questão dos camponeses e a reforma agrária sempre rondaram em sua cabeça.
Sim, eu costumo dizer que enquanto não se fizer uma genuína reforma agrária no Paraguai, aqui não se poderá respirar certa paz social. Eu coloquei isso na medula. Esse foi o foco central, inclusive da minha destituição.
Não tenho a menor dúvida sobre isso.
Com uma desigualdade na posse da terra dessas, não se pode ficar calado. Como dizia em San Pedro, se nós calarmos, a terra gritará.
Entre a reforma agrária que sonhou e a reforma agrária possível, não havia uma negociação intermediária?
Aqui o problema da posse da terra é muito complexo. Há 8 milhões de hectares de terras adquiridas ilegalmente, distribuídas abundantemente nos tempos da ditadura e essa gente continua no poder. Eu não quis fazer uma reforma agrária; eu simplesmente pedia aos fazendeiros para que mostrassem seus títulos. Mas há tantos títulos ilegais no país que é impossível provar que essas terras foram adquiridas legítima e legalmente.
Vamos falar do julgamento político que você sofreu. Qual foi, para você, a verdadeira explicação?
Na política, muitas vezes é mais importante o que se cala do que aquilo que se diz. Porque por trás de tudo o que se disse sobre esse chamado julgamento político há muitos silêncios. Por que Lugo? Por que Dilma? Por que tentaram com Correa? Por que tentaram com Evo? Eu acredito que os Estados Unidos, a dominação do império, não podem permitir que estes governos continuem a crescer.
O que exatamente aconteceu com você?
Eles se puseram a investigar até a última gota de combustível que eu usava na presidência. E aí houve um reconhecimento de que fui um dos presidentes que não meteu a mão na botija. E o sistema funciona com corrupção. Há corrupção nos Estados Unidos, em Genebra, na Itália, na Argentina; em todas as partes há corrupção.
A corrupção é mais funcional ao sistema do que a ética.
Sem dúvida. Sem dúvida alguma. Por quê? Porque também é uma forma de dominação.
Como repercutiram em você e na sociedade as denúncias sobre a paternidade?
Bem, em primeiro lugar, eu assumi a paternidade com absoluta responsabilidade, como disse Francisco em seu livro sobre a terra (a Encíclica Laudato Si’), na página 58: “Fernando Lugo, um bispo que teve um tropeço e se arrependeu”. Isso foi em 2002. O outro caso aconteceu em 2007. Quando eu já estava fora de San Pedro (da diocese). É claro que a corporação midiática, que responde à oligarquia carregou na tinta, mas bem. Eu assumo. Quem não tem erros? E aqueles que mais denunciavam são aqueles que tinham filhos não reconhecidos aí no Parlamento. E os empresários.
O celibato já foi questionado na Igreja?
Eu penso que é uma reflexão que precisa ser feita na Igreja; aqui temos inclusive a experiência dos diáconos casados. Eu reconheço que tropecei, foi um momento de fraqueza, reconheço que não fui um bom exemplo, digamos, em termos de assumir o compromisso de uma vida casta dentro da Igreja e ser um testemunho. Muitas pessoas ficaram escandalizadas, muitas pessoas me diziam que eu era como uma punhalada nas costas da Igreja.
Durante a sua presidência você teve um câncer.
Eu tive um câncer em três lugares: na região da virilha, no mediastino e numa parte óssea da coluna. Eu me curei do câncer porque reagi imediatamente. Aqui eu tenho duas, três coisas muito claras. Aí está o meu santo padroeiro dos enfermos de câncer, a quem rezo todos os dias... Tenho um pé de graviola, coração da Índia, araticuguazu e a quimioterapia. As três coisas, uma santíssima trindade que me limpou o câncer, junto com o profissionalismo dos médicos que me atenderam a tempo.
Como era a sua relação com Néstor Kirchner?
A Cristina chegou quando eu assumi, mas com Néstor, depois, na Secretaria da Unasul, eu tinha uma relação muito boa; ele veio ao Paraguai, tínhamos longas conversas; a mesma aconteceu com Lula e com Chávez, os três presidentes que, de alguma maneira, me ensinaram muitíssimo sobre a política, o que é o governo, o que são as relações internacionais. Evidentemente, também tenho uma boa amizade com Correa, com Evo, eh, com Michelle, com Tabaré.
Como analisa o governo de Horacio Cartes?
É um governo diferente do nosso, é um governo para alguns poucos. O mais revolucionário que tínhamos era fazer um governo para todos. Nosso lema era “Um Paraguai para todos e todas”. Este é um governo para alguns, um governo para os ricos; aqui há gente que vive muito bem, os fazendeiros, os bancos, as financeiras, os investidores, eh, eles têm um Paraguai fantástico, não é verdade? Um país de maravilhas. Eu costumo dizer que o presidente é um empresário, não um político. Ele não vai deixar de ser empresário, vai continuar pensando como um empresário e, infelizmente, quer administrar o país como se fosse sua empresa. Não dialoga, não pergunta. Infelizmente, deu muito poder aos seus gerentes e não à classe política.
Ele se parece com Mauricio Macri?
Eu conheço pouco o Macri, certo? Não tenho informações de dentro. Mas, sim, eu acredito que mais que Macri há uma matriz; há algo em comum com o Brasil, a Argentina e o Paraguai.
Como é ser presidente do Senado em franca minoria?
O Palácio do Governo era como uma panela de pressão, porque havia a pressão de todo o país, e aqui é uma panela de pressão onde tenho 44 colegas, de igual para igual. Eu sou o diretor inter pares, não sou mais que eles; há dois vice-presidentes de dois partidos diferentes e sou presidente de todos, dos 44. Tenho que escutar os 44, estar a serviço dos 44, de diferentes partidos políticos. Podemos concordar em determinadas votações, em determinados interesses, ou estar totalmente em desacordo, mas procuro propiciar um ambiente de convivência democrática.
Você pode concorrer novamente à presidência?
Estou com as portas fechadas para ser presidente. Muitos do meu círculo político dizem que veem com esperança [uma possível nova candidatura], mas eu não acredito. Eu quero ser realista, não quero vender espelhinhos, não quero vender ilusões às pessoas.
Neste país, é possível neste país pensar no matrimônio igualitário?
A população é muito conservadora, o Paraguai é um país conservador. Também há uma questão, talvez muito pessoal. Eu não daria à união entre homens ou entre mulheres o estatuto jurídico de matrimônio. Porque a finalidade do matrimônio, a primeira finalidade é a felicidade, a segunda é a procriação, e eles estão impossibilitados para a procriação.
Onde acredita que errou?
Eu me tornei presidente na hora errada, cheguei com muita ingenuidade. Sem a astúcia da política, sem conhecer os meandros, sem saber como se resolvem os problemas políticos. Aqui havia uma prática política muito ativa do toma lá, dá cá... e eu não entendi isso.
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“A minha missão era evangelizar o ambiente político”. Entrevista com Fernando Lugo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU