12 Dezembro 2022
"O inferno é a aguilhoada da fome insatisfeita, a condenação a viver fora do 'festim' da vida", escreve Frédéric Boyer, em artigo publicado por La Croix, 10-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"A pior vergonha que conheço no mundo é a fome", afirmava Elie Wiesel. Recentemente, o diretor do programa alimentar mundial, David Beasley, lançou um grito de alarme: "Estamos diante da pior crise alimentar e humana desde a Segunda Guerra Mundial". A ameaça de falta de alimentos afeta milhões de pessoas. Iêmen, Afeganistão, Etiópia, Sudão e Somália estão à beira da carestia.
Infelizmente, entre os infortúnios que a humanidade encontra em sua história, nenhum é mais recorrente e crescente do que a fome. Hoje mais de um bilhão de pessoas sofrem de fome, mais de cinco milhões de crianças morrem de fome todos os anos. E mesmo só na França, o Comitê Nacional de Luta contra a Precariedade Alimentar estima em sete milhões o número de pessoas que não conseguem comer o suficiente.
A fome é um lembrete de que a humanidade é responsável por suas próprias necessidades. Coloca diante de nossos olhos tanto a nossa condição de viventes mortais quanto a nossa responsabilidade para com as necessidades de cada um. Lembra-nos de nossa animalidade, do nosso apetite como força de vida e crescimento. Mas a fome é também aquela condição que corrói a nossa dignidade elementar e pode destruir a socialidade e a vida comum. A fome "obriga o homem mais desinteressado a olhar com inveja para o prato alheio, a estimar, com o coração apertado, quanto pesa a jarra do vizinho", escreveu Alexandre Soljenitsyne em O Arquipélago Gulag.
Conhecemos também a provocação lançada pelo filósofo Emmanuel Levinas: "No princípio era a fome" (Carnets de captivité). Porque comer decentemente é a condição para uma vida digna e social, e a Criação não poderia ser celebrada sem responder à fome do outro, do ser criado, como afirma o primeiro capítulo do Gênesis.
O gesto de dar de comer a quem tem fome, em qualquer parte do mundo, constitui um dever essencial, aliás, é o primeiro dos deveres. É o começo da sabedoria que preside a criação do mundo. Levinas, novamente ele, ressalta que não há espiritualidade maior do que aquela que consiste em satisfazer a fome alheia. A humanidade não vive só de pão, lemos na Torá e nos Evangelhos, mas a expressão restritiva diz precisamente que, privada do pão, a humanidade não poderia aspirar senão ao pão. Responder incondicionalmente às necessidades materiais de cada um deve ser interpretado, no que me diz respeito, como uma necessidade espiritual.
Levinas cita um rabino lituano, Israël Salanter, quando comenta sobre as obrigações de Abraão para com os outros: "As necessidades materiais do meu próximo são necessidades espirituais para mim" (Do sagrado ao santo). A vulnerabilidade e a fome dos outros são chamadas que nos apresenta a transcendência de outros. Devemos respondê-las, sem contar, sem hesitar; não fazer isso é falhar em nosso primeiro dever humano e espiritual.
Maimônides (Leis sobre doações aos pobres X,7) hierarquizava assim os nossos deveres afirmando que o primeiro nível, o mais conforme aos pedidos da Torá, consiste em emprestar, alimentar ou ajudar a encontrar trabalho para aquele que está lutando na labuta por sua subsistência econômica. Como diz o versículo: “então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo” (Levítico 25, 35).
Sentir fome deveria ser sempre o prelúdio, não necessariamente de um festim, mas do "festim" da vida, da partilha do prazer: "Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos”, lê-se na abertura de Uma temporada no Inferno, de Rimbaud. O inferno é a aguilhoada da fome insatisfeita, a condenação a viver fora do "festim" da vida.
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O inferno é a fome - Instituto Humanitas Unisinos - IHU