03 Dezembro 2022
“Dos documentos emergem dois grandes homens, Pio XII e Giovanni Battista Montini, futuro Papa Paulo VI, seu principal colaborador, dedicados até o limite ao serviço da Igreja. E eles deixam claro como a Secretaria de Estado do Vaticano era então o cérebro e o motor do governo da Santa Sé. Hoje, infelizmente, esse não é mais assim". O barnabita monsenhor Sergio Pagano, há um quarto de século prefeito do Arquivo Secreto do Vaticano, desde 2019 renomeado “Apostólico”, ainda hoje envolto em uma aura de mistério, respeito e temor, afaga os dois volumes intitulados In quotidiana conversazione (Em cotidiana conversa, em tradução livre).
São 1.850 "folhas de audiência" que recolhem as notas tomadas pelo então número dois da Secretaria de Estado, Montini. Vão de 5 de julho de 1945 a 20 de novembro de 1954, às vésperas da passagem de Montini para Milão como arcebispo. Mais de 1.200 páginas, precedidas por uma introdução na qual o prefeito do Vaticano explica e enquadra historicamente anotações de outra forma incompreensíveis.
Como arquivista experiente, recém-acolhido na prestigiosa e secular Accademia Nazionale dei Lincei, Pagano examinou e estudou esses folhetos escritos a lápis, e destacados por Montini, explica minuciosamente, de blocos da marca Velox de “F. Selvatico e figli. Premiato stablimento cartotecnico di Milano”. O prefeito nem omite as dimensões: 15 centímetros e meio por 11 centímetros e meio. Acompanha essas parcas notas com referências que deixam adivinhar a imensa variedade de relatórios e contatos de Pio XII e do seu fiel colaborador: de fato, um secretário de Estado sombra, muito apreciado pelos diplomatas. E explica que aquelas notas serviam para “parar a mente do pontífice”, sem expressar juízos ou avaliações de qualquer tipo. No entanto, chama a atenção a falta de qualquer traço que abranja o período da Segunda Guerra Mundial.
E, no entanto, desde 1942 Montini havia adquirido um peso significativo na hierarquia eclesiástica. Por quê? É um bom ponto de partida para esta entrevista com “La Lettura” que monsenhor Pagano aceitou conceder.
A entrevista com Sergio Pagano é de Franco Mônaco, publicada por La Lettura, 27-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Chama a atenção essa ausência do período que vai de 1939 a 1944. Como explica isso?
Admito que isso também me chamou a atenção. E eu me perguntei por quê. Imaginemos quantas notícias poderíamos ter sobre os anos da Segunda Guerra Mundial. A partir de 1942, Montini estava no círculo mais próximo dos colaboradores de Pio XII. Ou ainda não escrevia as notas porque o secretário de Estado, Luigi Maglione, estava vivo até agosto de 1944, ou não as fazia para as audiências da Secretaria de Estado, ou, se as escreveu, as levou com ele para Milão quando se tornou arcebispo, no final de 1954.
Imagino que tenha investigado isso. Foi um período crucial: a guerra, as relações com o nazismo, a questão do silêncio de Pio XII sobre o extermínio dos judeus...
Claro, fiz pesquisas em todo lugar. Também pedi ao atual substituto da Secretaria de Estado, Edgar Peña Parra, que verificasse os documentos mais sigilosos guardados em seu cofre. Escrevi ao arquivo do Instituto Paulo VI de Brescia. Ouvi os jesuítas da "Civiltà Cattolica", pensando que talvez ele os tivesse entregue a eles. Mas não há nada. Ou não existem, ou, pela delicadeza das questões ligadas à guerra e pelo receio de que algumas notícias fossem equivocadas e manipuladas, Montini talvez as tenha entregado a alguém de sua absoluta confiança em Milão, ou então se perderam.
Claro que isso é uma lástima. Se existiam, não poder vê-las e consultá-las é um vulnus. Pense na fase de Roma como cidade aberta, na saída dos nazistas da capital, na forma como eles controlavam o Vaticano.
Quanto aos silêncios de Pio XII: não há dúvida de que existiram. Quem faz apologética independentemente deles não presta um bom serviço à Igreja. Estudei bem os documentos sobre ele. Mas seus silêncios devem ser enquadrados naquela fase histórica e avaliados em conjunto com todas as iniciativas que tomadas para defender os judeus. Sobre este aspecto, parece-me que a verdade histórica está emergindo, e que está se reconhecendo o que fez também de positivo.
Teve possibilidade de apurar se a transferência de Montini para Milão ocorreu depois que uma comissão secreta sugeriu ao Papa que ele deveria ser afastado porque havia se tornado muito poderoso?
Não me resulta a existência dessa comissão composta por dois, três cardeais para julgar Montini. O problema era aquele de suas relações com a Ação Católica de Luigi Gedda. Montini defendia a escolha da DC de Alcide De Gasperi de não se aliar aos fascistas para a junta municipal de Roma, e por isso entrou em choque com Gedda e parte da Cúria. Mas a notícia, que foi dada pelo Cardeal Siri de Gênova, pelo que me resulta é inconsistente. Não há sinais nos documentos da Secretaria de Estado. E me parece difícil para Pio XII tomasse uma decisão sem ter nada de base.
Foi um boato infundado espalhado por Siri quando Montini já tinha morrido. Além disso, Siri é o mesmo cardeal que morreu fazendo crer ter tido chance de ser eleito no Conclave: chance que, na minha opinião, nunca teve. Foi um cardeal que sempre teve o cuidado de fazer revelações de forma que nenhuma pessoa viva pudesse desmenti-lo.
É fato que o futuro Papa Paulo VI fosse mal visto por uma parte da Cúria e por católicos influentes.
Claro, porque era poderoso, eficiente e fiel ao Papa. Basta ler o que os embaixadores diziam sobre ele, com o coração partido por ter sido enviado a Milão. Em certos ambientes conservadores da Cúria existiam invejas há tempo. E é verdade que Pio XII recebeu pressões crescentes para afastá-lo. Em 1953-54 Montini sentia e compreendia, sofrendo, que se multiplicavam as vozes contra ele, as tentativas de marginalizá-lo.
E Pio XII o enviou para ser arcebispo em Milão...
O cardeal Alfredo Ildefonso Schuster havia morrido, e isso lhe permitiu nomeá-lo arcebispo em seu lugar. Assim apaziguou a ala invejosa da Cúria, e ofereceu-lhe uma sede de grande prestígio como o topo da Igreja Ambrosiana.
Isso significa que não foi um “promoveatur ut amoveatur”, mas o contrário: removido para promovê-lo?
Acho que sim. Pio XII o tinha em alta estima, afinal ele o havia formado e era seu colaborador mais próximo. Tanto que alguém lastimava: mandá-lo para Milão o prepara para ser papa... Como efetivamente foi.
Na sua introdução, o senhor enumera entre os tantos assuntos abordados as "doenças do Papa", tema sempre misterioso. De que se trata?
Nos últimos anos da sua vida, Pio XII estava doente. Tinha os famosos soluços que o impediam de falar, podiam durar até um ou dois meses. E às vezes o obrigavam a suspender as audiências.
E o que os médicos diziam?
Não consegui encontrar nenhum relatório médico. Parece que dependia de problemas de estômago, que dificultava até sua alimentação.
Também há várias as referências ao cinema, rádio e televisão.
Pio XII tinha compreendido o enorme alcance dos meios de comunicação de massa. Ele estava obcecado por seu impacto. Ele censurou um filme de uma coprodução estadunidense e alemã sobre Lutero porque era contra o catolicismo. Ele ficava alarmado se comunistas fossem convidados no rádio para debates políticos. Ele foi o primeiro a deixar a TV entrar no Vaticano. Os franceses deram de presente a ele uma televisão e ele concordou em ser filmado. Mas ele decidia as poses, o fundo: era o diretor de si mesmo. Até os gestos, as pausas em seus discursos eram estudadas. Ele era um perfeccionista.
De seus dois livros emerge uma Secretaria de Estado central, no governo do Vaticano.
É verdade. Era o motor do governo da Igreja, o cérebro do Vaticano, que se movia através das Congregações, dos tribunais da cúria, dos núncios no mundo, da rede das paróquias. Com o Papa como última referência.
Na sua opinião, a Santa Sé contava mais do que agora?
Sim, mas aqueles eram outros tempos. Havia uma Igreja organizada e unida. Hoje está mais dividida. Para Pio XII a Igreja era a sociedade perfeita, guardiã da verdade, chamada a moldar o mundo ou pelo menos a inspirá-lo aos valores evangélicos. E a máquina política, religiosa e diplomática refletia essa visão. Se havia medo da influência dos comunistas em uma área remota da Sardenha, Pio XII tinha condições de conhecer com clareza a situação pelos párocos e intervir. Os comunistas estavam muito preocupados, mas os governos europeus estavam atentos, curiosos e respeitosos: até os britânicos que pareciam desatentos sabiam de muitas coisas. E os estadunidenses também.
A relação de Pio XII com os Estados Unidos era estreita: fica claro também pelo seu livro.
Era uma relação ambivalente. Por um lado, Pio XII os mantinha, por assim dizer, à distância porque temia a influência das seitas protestantes, muito ativas e inimigas da Igreja de Roma. Além disso, quando as autoridades estadunidenses vinham em audiência, ele tinha o cuidado de evitar referências à política. Mas, ao mesmo tempo, ele entendia que depois de 1945 o novo império ocidental com o qual contar era aquele, não mais a Grã-Bretanha.
Qual foi a evolução da Secretaria de Estado como centro nevrálgico do poder papal?
Até Paulo VI, todo o governo estava concentrado na Secretaria de Estado. E era uma máquina que funcionava bem. Depois começou uma progressiva redução. As conferências episcopais, as congregações romanas, assumiram maior poder. E depois do Concílio Vaticano II, o fenômeno se acentuou. A Secretaria recuperou alguma centralidade com João Paulo II. Depois, com fases de oscilações, perdeu poder e prestígio. E a última reforma da Cúria oficializou o enxugamento.
O que mais lhe impressionou estudando esses documentos?
A figura de Pio XII, um homem titânico. E sua capacidade de escolher Montini e prepará-lo para o papado. Pio XII se entregou até o fim pela Igreja: tinha uma forte consciência de ser o Papa. Dirigia o barco, mantinha firme o leme. E ele sempre estudava, porque queria estar por dentro de tudo. Ele havia entendido que depois da guerra o mundo estava mudando. Talvez não tenha conseguido, mas tentou interpretar as mudanças, com todas as suas forças. Para mim, ele foi um dos governantes mais esclarecidos de sua época.
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Papa Pacelli: Os silêncios de um gigante. Entrevista com Sergio Pagano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU