12 Março 2020
Para a abertura dos arquivos vaticanos sobre o Papa Pacelli, acadêmicos e historiadores vieram de muitos países para estudar os documentos que poderiam revelar e acrescentar informações sobre a história do pontificado que gera discussões há décadas.
Entre eles, está David Kertzer, estudioso e historiador de renome mundial, Prêmio Pulitzer por “O papa e Mussolini” (Ed. Intrínseca), no qual conta a história das relações entre Pio XI e Mussolini. Kertzer é o autor, entre outros, de “Prigioniero del Papa Re” [Prisioneiro do Papa Rei] (Ed. Bur; será a base de um filme de Spielberg), sobre a história de Edgardo Mortara, o menino judeu batizado, sequestrado e criado como católico no século XIX.
Para Kertzer, a abertura do arquivo sobre Pio XII “é uma grande oportunidade de conhecimento. Mas não se pode reescrever a história”.
A entrevista é de Ariela Piattelli, publicada em La Stampa, 11-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Qual é o significado da abertura dos arquivos sobre o pontificado de Pio XII?
Os arquivos nos dão a possibilidade de conhecer melhor uma história europeia, não apenas judaica ou da Igreja. A pergunta geral é como foi possível, na civilizada Europa, matar milhões de pessoas. Talvez, com essa abertura, entenderemos melhor como a Igreja se comportou, quais eram as dinâmicas e quem aconselhava o papa sobre essas questões. Espero que conheçamos a dinâmica dentro do Vaticano quando era preciso decidir se haveria protesto contra as deportações dos judeus romanos no dia 16 de outubro de 1943 e o que levou o Papa Pacelli ao silêncio público. O risco é que se tente reescrever a história.
Como assim?
Agora, existe a tendência geral de apresentar apenas um aspecto da história. E essa tendência pertence em particular à Itália: nesse país, existem muitos institutos sobre a Resistência, não há sequer um em que se estude o fascismo, como se os italianos estivessem todos do lado dos Aliados. Os judeus capturados pelos nazistas o foram em grande parte graças à ajuda dos italianos. Mesmo uma parte da Igreja quer apresentar uma história “diferente”.
Nestes dias, no arquivo apostólico vaticano, vejo historiadores do mundo católico muito sérios e rigorosos, outros que defendem com a espada desembainhada Pio XII e, mais em geral, o papel da Igreja durante o fascismo.
As primeiras “revelações” após a abertura dos arquivos têm o sabor de sensacionalismo, embora não possamos ignorar a história já escrita: Pio XII nunca protestou contra as leis raciais, o seu antecessor era ressentido, porque Hitler queria criar uma sociedade pagã: ele percebeu as leis raciais como sinal de aproximação à Alemanha nazista e falou publicamente contra o racismo, o que Pio XII não fez. Pio XI protestou contra as leis que afetavam os casamentos mistos e o fez não para proteger os judeus, mas sim os batizados. O Papa Pacelli mudou de rota, enterrou “a encíclica fracassada”, aquela em que devia se expressar em favor dos judeus contra o racismo e contra o antissemitismo, e não proferiu uma única palavra pública sobre as deportações, nem mesmo sobre a blitz contra os judeus romanos.
O que Pio XII poderia ter feito para se opor às deportações?
A primeira deportação dos judeus italianos ocorreu no gueto de Roma, debaixo das janelas do Vaticano. O Papa Pacelli poderia ter feito muito, ameaçar Hitler, denunciar o nazismo ou fazer um gesto como ele fez no dia 19 de julho de 1943, quando Roma foi bombardeada. Mas ele não era esse tipo de líder, certamente não estava feliz com o assassinato de mais de mil judeus de Roma, mas não queria correr o risco de se comprometer.
Pode nos contar algo sobre os documentos inéditos que você entreviu nestes primeiros dias de trabalho no arquivo?
Há um documento muito interessante em que o arcebispo de Bolonha pede ao Papa Pacelli, em 1940, que abençoe o L’Avvenire d’Italia, o jornal católico mais lido do país. O papa se recusou, com a motivação de que não queria dar a bênção apostólica porque os jornais eram controlados pelo regime e não eram livres. Pareceria um aspecto positivo, mas, na minha opinião, na realidade, o papa não queria se comprometer. Ele deixou o clero italiano livre para apoiar a guerra ou não. O documento é importante, porque destaca alguns aspectos da personalidade de Pio XII e os seus comportamentos sobre esses temas.
Ou seja?
Costuma-se defender que o Papa Pacelli queria ser neutro por medo da retaliação de Hitler ao mundo católico. Mas há um motivo mais profundo: ele sabia que milhões de católicos eram nazistas e temia que, ao criticar o nazismo, corresse o risco de um cisma dentro da Igreja. No início da guerra, pensava-se que Hitler venceria, e isso provavelmente levou o papa na direção de entender como proteger o Vaticano. Depois, quando ficou claro que os Aliados venceriam em 1942, e ainda com a queda de Mussolini, a Igreja teve que se reposicionar. Tudo isso é demonstrado nas dezenas de milhares de documentos que eu estudei em outros arquivos e fontes, como a imprensa vaticana da época, a italiana e a imprensa católica nacional, por exemplo, ou o Arquivo Central do Estado, que conserva os relatórios dos espiões de Mussolini, e vários arquivos do mundo, onde há correspondências dos embaixadores junto à Santa Sé.
Quais são os seus temores, se houver, sobre o estudo dos arquivos de Pio XII?
O Papa Pacelli era um homem muito cauteloso e não queria pôr tudo por escrito. Portanto, provavelmente nunca saberemos algumas coisas.
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O silêncio de Pio XII: “Ele temia o cisma dos católicos alemães” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU