10 Março 2020
O Papa mais polêmico do século XX, por seu silêncio. Ajudou ou não os judeus durante o Holocausto? Não há pontífice que desencadeie, ainda hoje, mais controvérsias em todo o século. O motivo? O papel do Vaticano durante a II Guerra Mundial. Durante esse período, a Santa Sé teve que resistir à pressão dos totalitarismos fascistas e nazistas. Mas tal resistência, segundo alguns, não foi suficiente na hora de defender o destino de muitos judeus. Os historiadores terão que explicar se, de fato, a estratégia do silêncio serviu.
A reportagem é de Manuel Tori, publicada por Público, 08-03-2020. A tradução é do Cepat.
Após décadas de espera e quase 15 anos para ordenar 16 milhões de páginas distribuídas em 15.000 envelopes e 2.500 fichas, entre 1939 e 1958, o Vaticano abre caminho para um novo capítulo em sua história. Nesta semana, sessenta anos após sua morte, foram divulgados os arquivos secretos do pontificado do Papa Pio XII. Nunca publicou uma encíclica contra o racismo e nunca pronunciou a palavra judeus, durante a II Guerra Mundial.
O Papa Francisco, em coincidência com os 81 anos da eleição de Eugenio Pacelli como Sumo Pontífice, abriu passagem para a livre divulgação de seu papado, para vários acadêmicos de todo o mundo. “Agora será necessário um longo trabalho de estudo”, afirmou recentemente Sergio Pagano, prefeito do Arquivo Apostólico do Vaticano, o novo nome atribuído por Bergoglio ao antigo Arquivo Secreto do Vaticano. “A Igreja não tem medo da História, ao contrário, a ama”, afirmou por esses dias o Papa Francisco, que também liberou o acesso a outros arquivos históricos, como o da Secretaria de Estado, o da Congregação para a Doutrina da Fé e o da Propaganda Fide, entre outros.
Um dos aspectos mais polêmicos de Eugene Pacelli como bispo de Roma tem a ver com a perseguição dos judeus, durante a II Guerra Mundial. Conforme publicado pelos meios de comunicação italianos, não apenas haveria abundante documentação acerca da ajuda do Vaticano em relação ao Holocausto, como também haveria um arquivo com a lista de cerca de 4.000 judeus que pediram ajuda a Pio XII para serem protegidos dentro edifícios pertencentes à Santa Sé.
“É uma miragem de pessoas inexperientes”, explicou, há algumas semanas, Gian Guido Vecchi, vaticanista do jornal italiano Corriere della Sera, “pensar que nos dias seguintes à abertura dos arquivos saberemos a verdade. Porque não pode haver um único documento que, isolado, possa provar o conflito em torno dos silêncios de Pio XII”. A maior controvérsia sobre o Papa Pacelli é que as duas posturas sobre seu pontificado são diametralmente opostas: para alguns ele sempre foi o Papa de Hitler e para outros o defensor pleno da justiça. Dois desenhos radicalmente diferentes: para alguns um genocida, para outros um salvador de judeus.
A divulgação desencadeou grandes polêmicas. Para o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, trata-se de algo ‘suspeito’ que existam “alguns arquivos já preparados para obter assim, rapidamente, algumas conclusões”. “Essas escassas revelações serão um bumerangue. Vê-se claramente que não houve vontade de parar o trem em 16 de outubro de 1943 e que as ajudas se destinavam a proteger os batizados”, polemiza Di Segni em relação ao conhecido trem, com cerca de 30 vagões, que levou mais de 1.000 judeus do Gueto de Roma para Auschwitz. Para os detratores de Pio XII, de fato, sua maior culpa foi a inação durante aquele dia 16 de outubro. Di Segni, por outro lado, acrescenta: “Serão necessários anos de estudo. Façamos com que os historiadores trabalhem”.
Em um livro recente do historiador italiano Giovanni Coco, intitulado El laberinto romano, demonstra-se que Benito Mussolini estava interessado, em 1939, em que Eugenio Pacelli não fosse eleito pontífice. O motivo, conforme recentemente explicado pelo jornal italiano La Repubblica, é que o futuro Pio XII tinha uma mentalidade “democrática demais” em um clima em que o totalitário Mussolini tinha o poder na Itália e Hitler na Alemanha. Em definitivo, Pacelli era “político” demais e a preferência era por um líder católico “apolítico”. Por quê? Dessa maneira, o regime de Mussolini poderia levantar, do zero, novas relações com a Santa Sé.
Hitler também olhou para o Vaticano quando Pacelli foi elevado a Pontífice da Igreja Católica. Segundo as reconstruções publicadas pelo jornal italiano Il Giornale - de acordo com algumas pessoas próximas a Pio XII, na época -, Hitler avaliava se “ocuparia o Vaticano e sequestraria o Papa, para trancá-lo em um castelo na Alemanha”, durante a II Guerra Mundial.
De acordo com diferentes depoimentos, Eugenio Pacelli não mudou seus costumes diários, “nem mesmo seus passeios nos jardins do Vaticano, sob controle aéreo”, diante da possibilidade de que o Führer invadisse o menor Estado do mundo. Por fim, o Sumo Pontífice nunca deixou a Cidade Eterna, apesar de estar no alvo de nazistas e as probabilidades de um sequestro foram cada vez maiores. “Se me querem, terão que vir aqui. Nunca abandonarei voluntariamente meu lugar, mesmo que isso me custe a vida”, teria pronunciado o Santo Padre, de acordo com os depoimentos de uma de suas cozinheiras.
Pelo que parece, a calma de Pio XII irritava o ditador alemão: “Quero saber como aquele homem tão miserável, de só pele e ossos, consegue demonstrar tanta força até o ponto de resistir a mim e me impedir de conseguir o que quero”, chegou a dizer Hitler ao cardeal Michael von Faulhaber, no conhecido Ninho da Águia. “Não posso destruir Roma, algo que teria feito com prazer. A quantidade de judeus que salvou, e que não consegui fazer nada com ele!”.
Nos últimos dias, uma das notícias irônicas desta semana é que nesta sexta-feira voltaram a fechar o Arquivo Secreto do Vaticano. Não por nada relacionado ao seu conteúdo, mas pela atual crise sanitária do coronavírus que a Itália está passando e que agora também chegou à Santa Sé. Na quinta-feira, as autoridades do Vaticano ouviram falar do primeiro caso positivo em seu território, fechando todos os ambulatórios e deixando apenas o sistema de emergência em operação. Muitos historiadores, como o Prêmio Pulitzer estadunidense David Kertzer, tiveram que sair “devido ao anúncio dramático do fechamento dos arquivos da Secretaria de Estado”. Tudo isso, “sem data de reabertura”.
Eugenio Pacelli (Roma, 1876 - Castel Gandolfo, 1958), filho de um advogado, estudou filosofia na Universidade Gregoriana, licenciando-se em Teologia. Ordenado sacerdote em 1899, com 25 anos começou a trabalhar a serviço do Vaticano. Após um período como professor de Direito Canônico, em 1917, foi nomeado núncio - embaixador da Santa Sé - na Baviera e, três anos depois, em Berlim. Em 1929, foi nomeado cardeal por Pio XI e se tornou seu secretário de Estado e, portanto, seu mais fiel colaborador e representante em diferentes viagens oficiais pela Europa e América Latina. Após a morte de Pio XI, Pacelli será seu sucessor, em 1939, justamente no ano em que começou a II Guerra Mundial.
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O papa de Hitler ou o salvador dos judeus?: Pio XII, o pontífice do silêncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU