23 Fevereiro 2019
Em uma carta inédita de 1945, o primeiro testemunho da deportação.
A carta é do químico e escritor italiano, Primo Levi (1919-1987), sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, publicada por La Stampa, 21-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caríssimos tios e primos, fui encarregado pela família de escrever a vocês, o que faço com muita satisfação também porque acredito que sou aquele que tem as coisas mais interessantes para contar. Creio que vocês já sabem do meu retorno, e também têm uma ideia do que a Itália era há dois anos, e um ano atrás. Dito isto, aqui está um resumo da minha história. Em novembro de 1943, juntei-me a um bando da resistência em Brusson (Aosta). Em 13 de dezembro de 1943, fui preso em uma blitz da milícia republicana: ainda estávamos em fase preparatória, não estávamos armados, não houve confronto. Dois companheiros foram levados comigo e duas amigas minhas judias: Vanda e Luciana.
A gente estava com documentos falsos: apesar disso, nós três decidimos admitir ser judeus, pensando que era a única maneira de justificar a nossa presença lá, e evitar a condenação por atividade de guerrilha. De fato, fomos absolvidos: mas, como judeus, nos enviaram a Carpi, em um campo de concentração.
Como nós temíamos, era apenas o prelúdio da deportação: em 22 de fevereiro de 1944, todos nós partimos, 650 desesperados, com crianças, mulheres, velhos, 50 apinhados em cada vagão, 4 dias e 4 noites de viagem sem dormir e sem água. Vemos pelas frestas desfilar os nomes de cidades austríacas, depois tchecas e polonesas. Finalmente, à noite, o trem para: já estamos cercados de arame farpado, estamos em Auschwitz, na Silésia. Os alemães nos fazem descer, rápidos e metódicos, dividindo-nos em três grupos: 95 homens válidos, 29 mulheres válidas e os outros.
As minhas duas companheiras desapareceram na escuridão: nunca mais veria Vanda. Já vou logo dizendo: de todo o comboio, quinze de nós sobraram vivos. Todo o grupo dos não válidos foi para a câmara de gás na mesma noite, entre eles estavam Ylca, Ruggero e Raimondo. Remo estava comigo entre os 95: fomos enviados para Monowitz, campo dependente de Auschwitz. Rasparam os nossos cabelos, tatuaram no braço números em ordem progressiva, tiraram nossas roupas e nos revestiram com trapos imundos listrados: não somos mais homens. Ninguém espera sair. No dia seguinte começa o trabalho, e para quem não morre continuará por 11 meses, sem um dia sequer de descanso. Há quem quebra pedras, quem descarrega tijolos, quem cava a terra, quem carrega sacos de carvão e cimento. Nenhum de nós entende alemão, então levamos pancadas a valer.
Está frio: nevou novamente em abril, o vento sopra gelado dos Cárpatos, será frio mesmo no verão, e ficamos o dia inteiro ao ar livre, mesmo na chuva. Após a primeira semana, a fome já é uma obsessão, e será nossa fiel companheira até o final: à noite, todo o campo só sonha em comer. O despertador é às quatro horas, dormimos em dois por beliche, 200 em cada pavilhão de madeira: no campo somos 10.000, fala-se todas as línguas da Europa. Quem fica levemente doente é colocado alguns dias para descansar: os doentes graves desaparecem, eles vão para um campo a 10 km daqui, onde tudo é muito bem organizado e a câmara de gases tóxicos e o crematório funcionam sem interrupção. Mas nem precisa estar doente: apenas estar fraco ou muito velho, ou mesmo apenas ter um momento de azar: as "seleções" continuam em intervalos irregulares, em uma fração de segundo se julga se estamos ou não aptos a fornecer mais trabalho útil. Quatro milhões de judeus cruzaram a soleira da câmara de gás. Por três anos a Chaminé obscureceu o céu. Mas tudo acontece de forma metódica, da maneira mais econômica: antes da cremação, são removidos os dentes de ouro dos cadáveres, as cinzas, como material fosfatado, vão para as estações experimentais de agronomia.
Fiquei em Monowitz por onze meses. Não era um campo ruim: tirando os "selecionados", os mortos por doenças ou por espancamentos eram cerca de vinte por dia. Mais tarde soube que as condições das mulheres eram ainda piores que as nossas. Passei os últimos dois meses trabalhando como químico em um laboratório: aos alemães agora faltam homens, e eu tinha ganho um concurso para o cargo. Isso ajudou a me salvar das doenças, mas não da fome. Em janeiro de 1945, os russos marcharam com suas forças sobre Cracóvia: no dia 17 os alemães decidiram evacuar a área, reuniram todos os válidos e os arrastaram com eles. Poucos deles se salvaram: alguns foram mortos pelos alemães, parte deles morreu de frio e fome. Eu havia contraído cinco dias antes escarlatina e fiquei: é difícil não pensar em um milagre; nunca tinha ficado doente antes. Parece que as SS também tinham ordens para nos eliminar, futuros acusadores: eles não tiveram tempo. Fomos abandonados à nossa sorte por 10 dias, éramos 800; durante este período, 200 morreram de fome, frio e doenças. No décimo primeiro dia, vimos a primeira patrulha russa.
Desde então, a história se torna menos trágica; fiquei em Katowice até julho, em um campo de espera russo; depois de uma viagem inexplicável pela Ucrânia, passei o verão em outro acampamento russo, dessa vez na Rússia Branca, em Bobruisk [Babrujsk]; finalmente, em 15 de setembro, chegou a ordem de repatriação. A viagem durou 35 dias, passando pela Ucrânia, Romênia, Hungria, Eslováquia e Áustria. Cheguei em casa no dia 19 de outubro [com barba longa] e vestido como um soldado russo; estou bem, estou um pouco gordo demais. Eu não tinha absolutamente nenhuma ideia se encontraria a família viva e a casa em pé. Luciana também está de volta: ela é médica, não fez trabalhos duros. Como acho que vocês sabem, Remo também se salvou. Como balanço pessoal, perdi muitos dos meus amigos mais caros e, à medida em que volto à vida civil, sua falta fica mais dolorosa; estou fora de compasso e atrasado nos estudos e no trabalho (vocês sabiam que antes eu tinha um emprego em Milão, na Wander, que é a empresa suíça que fabrica o Formitrol?), aliás, por enquanto ainda estou desempregado; mas aprendi um pouco de alemão, de russo e de polonês, e vi um bom pedaço da Europa que poucos estrangeiros viram.
As impressões gerais não são muito felizes: a Europa está velha, maldita e louca, a Itália ainda está entre as regiões privilegiadas. Os alemães não são homens; deveriam ser destruídos ou reeducados, e ambas são coisas impossíveis. Falei com alemães prisioneiros dos russos, depois do armistício: sérios, frios e convictos, eles dizem: "Desta vez deu errado. A próxima será melhor". Os russos esqueceram Marx, já sentiram o gosto do Ocidente e não querem realmente parar. Os Balcãs são mais do que nunca um barril de pólvora: todos os antigos problemas de fronteiras ainda estão abertos, e cada um aproveita da situação confusa para ganhar espaço a cotoveladas. Na Polônia, após a ocupação russa e até junho, foram mortos em "pogroms" mais de dois mil judeus que haviam escapado do massacre nazista. Centenas de milhares de prisioneiros de guerra ainda aguardam a repatriação, entre estes pelo menos 20 mil italianos que ainda passarão um inverno nos campos russos além dos Urais.
Quanto à Itália, talvez algumas coisas vocês já saibam. A melhor parte da nossa geração (no norte; no sul as coisas ocorreram de outra forma) participou da resistência contra os alemães e os neofascistas, depois na guerra da resistência e na insurreição de abril 1945. Como é de praxe, os melhores desapareceram e, no final de tudo, a cena foi invadida pela ambição e pela fé duvidosa. As consciências sobreviventes íntegras se sentem decepcionadas: o fascismo mostrou ter raízes profundas, muda de nome, de estilo e de métodos, mas não está morto, e principalmente permanece aguda a ruína material e moral a que levou o povo. Está frio, não há muito para comer, não há trabalho; o banditismo floresce e, enquanto se fala de democracia social, crescem monstruosos novos capitalismos nascidos do mercado negro: é a aristocracia mais antissocial. A guerra acabou, mas ainda não há paz.
Por todas essas razões, eu estaria bastante interessado em saber de vocês informações sobre as condições de vida em sua região, as possibilidades de trabalhos para técnicos, o grau de xenofobia, o custo de vida, o desenvolvimento da indústria. Ainda não tenho nenhum plano específico, então tudo pode me interessar.
Encontrei todos os parentes bem: alguns um pouco envelhecidos. Os hábitos mudaram, somos todos um pouco ciganos: não se costuma mais ter empregadas, se viaja com toda tranquilidade em vagões de transporte ou caminhões improvisados, se decide ficar onde e como possível, não se fazem planos para além de uma semana. Tudo isso às vezes tem suas vantagens.
Embora eu não tenha uma ideia precisa de sua situação, li com alguma surpresa que vocês estão falando em retornar. Não é mais que uma impressão pessoal, mas parece-me um pouco prematuro: acredito que na Europa ainda vão acontecer coisas interessantes. Recebemos no último dia 23 o pacote enviado para via Lamarmora e aquele enviado a Livorno, e agradecemos, há coisas que não costumamos ver aqui todos os dias. Muitos beijos a todos, estamos sempre esperando por suas notícias.
Esqueci de dizer-lhes que, em fevereiro de 1945, assim que os russos o permitiram, não podendo escrever em Turim, que ainda estava nas mãos dos alemães, eu escrevi a vocês uma longa carta, que evidentemente foi perdida.
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"Nós não éramos mais homens". Carta inédita de Primo Levi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU