17 Abril 2014
O tom imperativo, friamente imperativo das poesias é muito distante do tom comunicativo e pacato típico da escrita do Levi romancista. É o tom injuntivo dos Profetas, e, além disso, todas as poesias de Primo Levi têm algo que nos leva aos salmos e aos livros proféticos.
A opinião é do filólogo e semiólogo italiano Cesare Segre (1928-2014), falecido em março passado, professor emérito da Universidade de Pavia e membro da Accademia dei Lincei, em artigo publicado no jornal Avvenire, 10-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em 1991, Franco Fortini – crítico e poeta, na época muito em voga na Itália – escreveu um artigo sobre a obra em verso de Primo Levi, principalmente reunida no livro Ad ora incerta (primeira edição de 1984). Nesse artigo, Fortini expressa o seguinte juízo: "Esses versos não são excelentes, mesmo que, como tentarei dizer, há alguns que devem ser lidos com atenção, porque têm uma verdade e um carimbo próprio a nos comunicar" [...]
É conhecido o tom de condescendência: "Esses versos não são excelentes"; e depois, mais adiante: "Há versos que têm uma verdade própria e um carimbo próprio a nos comunicar". No entanto, reconhece Fortini logo depois, esses versos são, "em sua maioria, fracos como versos, isto é, pois se apresentam como que inscritos no gênero que, no nosso século e também no século passado, é o das chamadas 'poesias'", concluindo: "Acredito que faltava em Levi – e ele sabia muito bem disso – um ferramental retórico capaz de sustentar em verso os temas diários e anedóticos que lhe eram mais congênitos".
Mas, agora, sobre os conhecimentos literários de Primo Levi, sabemos muito mais do que Fortini: basta olhar as suas citações para ver que não pode ser definido como ignorante de poesia quem sabe recuperar, nos seus versos, Catulo, Lucrécio, Heine, Coleridge, Rilke, Eliot, Trakl, Celan, além, naturalmente, do predileto Dante.
A crítica de Fortini, em geral, é justa, mas sintomática da cultura não de Levi, mas sua, pessoal. Fortini, de fato, não tem nenhuma ideia do gênero poético a que Levi se refere, porque ele mesmo está culturalmente ligado demais à tradição de Petrarca-Leopardi: esse vínculo produziu nele uma surdez a qualquer evasão das linhas tradicionais da poesia italiana. É quase incrível que um poeta como Fortini, atualizado sobre todas as novidades europeias, sempre tenha permanecido substancialmente submisso à nossa tradição.
É característico a esse propósito o comentário à poesia Shemà, que Levi quis na abertura do seu primeiro romance, Se questo è un uomo (é preciso notar que o próprio título do romance é tirado de um verso dessa poesia). Fortini escreve: "A força desses versos me parece se concentrar no uso de um léxico antiquado e nobre para um tema ou, melhor, para uma intimação que é de feroz realidade".
Fortini fala de "léxico antiquado e nobre": mas antiquado em relação à língua italiana? Antiquado nada! O léxico de Levi é, na realidade, um léxico milenar: os textos que logo citarei em relação a isso provêm, de fato, do Deuteronômio e do Livro dos Números, que os biblistas datam de cerca de 600 a.C.
Nessa poesia, Levi combina passagens dos dois livros bíblicos, reecoando, assim, o Shemá, a oração que, à luz desses mesmos livros, os judeus adotaram como fórmula de expressão da unidade de Deus e, portanto, como fórmula identitária: qualquer judeu – mesmo que não praticante, mesmo que convertido – se lembra dos versículos do Shemá. Os judeus partiam nos vagões que os levariam a Auschwitz recitando o Shemá.
Shemá significa "escuta": "Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um". A oração continua assim: "Amarás o Senhor Deus com todo teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Estas palavras que Eu te ordeno hoje ficarão sobre teu coração. Inculca-las-ás em teus filhos e falarás a respeito delas, estando em tua casa e andando por teu caminho, e ao te deitares e ao te levantares".
Pois bem, todas essas expressões são reecoadas, embora com um sentido completamente diferente, por Primo Levi, justamente na terceira parte da sua poesia, em que, além de convidar a considerar a vida terrível que os internos de Auschwitz levavam, diz: "Ordeno-lhes estas palavras. / Esculpam-nas no vosso coração, / Estando em casa, andando pelo caminho / Deitando-se, levantando-se: / Repitam-nas aos vossos filhos".
"Esculpam-nas" e "repitam-nas": a obrigação, posta pelo Deuteronômio, de pensar continuamente em Deus, portanto, é invertida por Levi na obrigação de pensar no horror da deportação e da aniquilação dos judeus: na obrigação da memória. Por um lado, há vocês, nas suas casas quentes e seguras, por outro, esses homens desumanizados e essas mulheres desumanizadas dos quais que Levi descreve a situação no campo, para que permaneça para sempre impressa no coração de quem tem a sorte de viver depois daqueles horrores.
Às imagens puramente descritivas, misturam-se aquelas com implicação moral: "Considerem se este é um homem / [...] / que luta por um pedaço de pão / Quem morre por um sim ou por um não. / Considerem se esta é uma mulher / Sem cabelos e sem nome / Sem mais força para recordar" […].
Esse tom imperativo, friamente imperativo, é muito distante – se poderia dizer – do tom comunicativo e pacato típico da escrita do Levi romancista. É o tom injuntivo dos Profetas, e, além disso, todas as poesias de Primo Levi têm algo que nos leva aos salmos e aos livros proféticos: "Eu também tenho sangue do profeta, como todo filho de Israel, e de vez em quando brinco de ser profeta".
Mas, olhando bem, o sujeito que aqui dirige as suas ameaças e preanuncia consequências horríveis para aqueles que não se recordam da Shoah, não é Levi, mas Moisés, porque, no Deuteronômio, e portanto também naquele ponto do Shemá, quem fala é Moisés justamente.
E mais, nos versículos do Deuteronômio anteriores aos que o Shemá retoma são listados os Dez Mandamentos: e, portanto, os Mandamentos e a obrigação de pensar, em toda lugar e em todo lugar, em Deus, obrigação que em Levi é transformada depois no modo recém-mencionado.
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Primo Levi, poeta segundo a Bíblia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU