24 Junho 2022
"Devemos nos perguntar o que era a Igreja em uma Europa dominada pelos totalitarismos e que espaço tinha o papado. Diante de um drama vasto e único como o Holocausto, o Papa poderia ter feito outra escolha. Não a fez, mas procurou manter unidos os vários catolicismos nacionais, conduziu uma importante ação humanitária através das fronteiras marcadas pela guerra, chamou de volta aos princípios, sobretudo o valor da paz", escreve o historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 23-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
E ele recorda a severa constatação de Elie Wiesel afirmando que o Holocausto e a guerra são uma derrota para o cristianismo:
“Os assassinos eram em sua maioria batizados, tinham sido educados no cristianismo, alguns deles até frequentavam a igreja, a missa, e certamente se confessaram. No entanto, matavam. É a prova de que o cristianismo foi incapaz de erguer um muro que impedisse os assassinos de fazer o mal... É a derrota da política, do empenho, a derrota de todos os sistemas, da filosofia e da arte”.
Segundo Riccardi, "isso é evidente e não deve ser esquecido".
A recente abertura dos Arquivos do Vaticano para os anos de Pio XII oferece a oportunidade de rediscutir a história da Igreja na Segunda Guerra Mundial. A abertura tardia desses arquivos, ao contrário de outros arquivos, não favoreceu o intenso debate historiográfico, que se baseou em fontes arquivísticas indiretas. Desde 1963, a partir da peça de Rolf Hochhuth, O Vigário, os "silêncios" de Pio XII foram um dos eixos em torno dos quais a discussão se desenvolveu, especialmente em relação ao Holocausto.
Hoje é claro: os "silêncios" não diziam respeito apenas ao Holocausto, mas também à atitude da Santa Sé em relação à Polônia ocupada pelos nazistas, que desagradou o governo polonês no exílio e o primaz polonês August Hlond (que o havia seguido no exterior).
A estratégia do Vaticano na guerra baseia-se na doutrina da "imparcialidade", adotada na Primeira Guerra Mundial, embora em um contexto diferente e não na presença de Estados totalitários. Acumulam-se questionamentos sobre essa doutrina, que tem parcial continuidade inclusive na atual atitude da Santa Sé, como acontece com a invasão russa da Ucrânia, quando, apesar das posições severas sobre o conflito, o Papa não nomeia Putin como responsável. O que desagrada poloneses e ucranianos.
O exame dos arquivos vaticanos inaugurará uma nova temporada historiográfica sobre um período de grande importância para a relação entre a Igreja e a guerra e a Igreja e os genocídios: uma história que não passa e que, de certa forma, os novos conflitos voltam a propor. Um dos primeiros frutos da abertura dos Arquivos é o grande volume de David I. Kertzer, Um Papa em Guerra, a história secreta de Mussolini, Hitler e Pio XII (em tradução livre), publicado pela Garzanti. O historiador estadunidense já escreveu sobre Igreja e papado, Pio XI e Mussolini, sobre o caso Mortara (a criança judia batizada no estado pontifício).
Kertzer conclui o livro com uma lembrança tocante. Seu pai, rabino do exército estadunidense, após a libertação de Roma, celebrou com o rabino chefe Zolli a reabertura do templo maior, fechado em 8 de setembro e testemunha de tanta dor para os judeus romanos. Zolli logo depois se tornaria católico, causando desconforto em uma comunidade já traumatizada. No templo, naquele dia, estava também o frade capuchinho Padre Benoît (que salvou tantos judeus), saudado por um "trovejar de aplausos" após seu discurso.
O livro é sobre Pio XII e as relações com Hitler e Mussolini (e a relação entre eles): é baseado em uma extensa pesquisa nos arquivos alemães, franceses, italianos e estadunidenses. Para os arquivos do Vaticano, o autor contou com a colaboração de um historiador especialista, Roberto Benedetti, com quem fez algumas publicações. As figuras do Duce e Hitler são registradas com muitos detalhes. Fala-se da variegada classe dominante fascista, em parte em relação com o Vaticano (como Galeazzo Ciano que convida Giovanni Battista Montini a se empenhar pela paz). A figura de Mussolini é esboçada com cuidado (muito se fala sobre seu mundo familiar e sentimental).
Uma partida dramática se desenrola entre os três personagens na Europa em chamas. Pio XII está no centro do interesse de Kertzer, mas ele é retratado como uma figura bastante cinzenta: um homem travado pela prudência que deseja salvar as relações com o fascismo e o nazismo. Isso se mostra de várias maneiras, inclusive com a interessante descoberta de negociações entre Pio XII e Berlim através do príncipe de Hesse (marido de Mafalda de Savoia, que mais tarde morreu no campo de concentração nazista de Buchenwald após o armistício italiano). As negociações secretas se estenderam por um tempo, propiciadas pelo Marquês Travaglini (uma figura da Ordem de Malta, presidente do ente provincial de turismo de Roma após a guerra), sem chegar a um acordo.
Kertzer não vê Pio XII como “o papa de Hitler”, segundo a expressão do escritor John Cornwell, mas como uma figura fraca, incapaz de uma política incisiva, preocupada com a vitória nazifascista pelo menos até 1942, depois excessivamente marcada pela prudência. Partilha a opinião do secretário de Defesa estadunidense, Sumner Welles, que visita Pio XII, e nota "a sua inteligência analítica", mas sobretudo: "falta-lhe força de carácter...". O autor fala de um homem, marcado por uma “aparente invisibilidade no meio do drama que assolava a Europa”. Pio XII - escreve ele - não tinha ilusões sobre o nazismo e seu anticatolicismo.
Na realidade, devemos nos perguntar o que era a Igreja em uma Europa dominada pelos totalitarismos e que espaço tinha o papado. Diante de um drama vasto e único como o Holocausto, o Papa poderia ter feito outra escolha. Não a fez, mas procurou manter unidos os vários catolicismos nacionais, conduziu uma importante ação humanitária através das fronteiras marcadas pela guerra, chamou de volta aos princípios, sobretudo o valor da paz. Kertzer fala de mensagens retóricas e esfumaçadas. Certamente houve prudência.
Mas se tratava de uma linguagem religiosa que os católicos (e não só) entendiam.
O historiador Pierre Milza, há alguns anos, concluiu a biografia de Pio XII, não aderindo à tese dos silêncios: "O historiador não desmerece se oferecer...’um não-lugar a seguir para Pio XII’, no processo que foi feito a este último pelos seguidores de Hochhuth e seus admiradores hoje".
Poderia ser um juízo equilibrado se, afinal, não tivesse demasiado sabor judicial. A história recorre às certezas judiciais.
O livro de Kertzer, apesar da notável originalidade da documentação e da brilhante escrita, não escapa a uma lógica que já colocou Pio XII num papel algo cúmplice devido à sua prudência diplomática. Podemos vê-lo, olhando apenas para Roma entre 1943 e 1944, na reconstrução que ele fez sobre a hospitalidade a pessoas procuradas e judeus, quando o guarda-chuva vaticano à ação clandestina e a vontade de Pio XII nesse sentido são fatos confirmados da historiografia. Ou, na subestimação da grande reunião popular que Pio XII realizou em Roma em 12 de março de 1944, a maior manifestação livre na Europa ocupada pelos nazistas, que impressiona muito o socialista Pietro Nenni como expressão de liberdade. Não se trata de julgar ou condenar, mas de compreender.
Kertzer com razão ressalta a preocupação papal pelos quarenta milhões de católicos do Terceiro Reich.
O quadro, testado pelos documentos, é complexo, também pela extrema fragilidade do Vaticano e das Igrejas da época (em parte divergentes). Talvez um contato maior com a historiografia italiana, que trabalhou muito sobre esses temas com diferentes interpretações, tivesse ajudado. De fato, a historiografia italiana não é fruto de uma miríade de "centros de estudo da Resistência como templos onde honrar um passado tão heroico quanto enganador", como escreve o autor. Basta pensar no Instituto Nacional da História da Resistência, fundado em 1949, que teve Ferruccio Parri como seu primeiro presidente.
Além disso, o Holocausto e a guerra são uma derrota para o cristianismo. Elie Wiesel escreve:
“Os assassinos eram em sua maioria batizados, tinham sido educados no cristianismo, alguns deles até frequentavam a igreja, a missa, e certamente se confessaram. No entanto, matavam. É a prova de que o cristianismo foi incapaz de erguer um muro que impedisse os assassinos de fazer o mal... É a derrota da política, do empenho, a derrota de todos os sistemas, da filosofia e da arte”. Isso é evidente e não deve ser esquecido.
Aliás, é o doloroso ponto de partida de onde se move a pesquisa que quer reconstruir os complicados percursos da história.
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O tormento de Pio XII: manter os católicos unidos diante da 2ª guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU