25 Novembro 2022
"Estamos diante de uma obra que é uma grande contribuição para repensar os direitos humanos à luz da Doutrina Social da Igreja e do magistério do Papa Francisco", escreve em artigo Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), da Província do Sul, e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). O artigo é sobre o livro Direitos humanos e doutrina social da Igreja: da globalização da indiferença à globalização da solidariedade", organizado por Rosana Manzini e Ronaldo Zacharias e publicado pela editora Paulus em 2022.
MANZINI, Rosana; ZACHARIAS, Ronaldo (Org.). Direitos humanos e doutrina social da Igreja: da globalização da indiferença à globalização da solidariedade. São Paulo: Paulus, 2022, 336 p. (Coleção Ministérios)
Foto: Divulgação
Os direitos humanos constituem uma temática fundamental para a Igreja. O fato de derivarem da própria dignidade da pessoa humana, fez com que a Igreja assumisse a sua promoção e defesa como um serviço concreto à humanidade, isto é, como parte da sua missão, a exemplo de Jesus, o qual sempre se mostrou atento às necessidades humanas, particularmente dos mais pobres – “os direitos humanos são considerados no mundo todo, de modo virtualmente unânime – ao menos no plano do discurso –, como o fundamento irrenunciável da vida social e política. A Igreja, hoje, é uma promotora decidida e incansável desses direitos, entendidos por ela como expressão da dignidade inviolável da pessoa humana como imagem de Deus” (p. 31).
Nesta perspectiva está situada a obra: Direitos humanos e doutrina social da Igreja: da globalização da indiferença à globalização da solidariedade (Paulus, 2022, 336 p.), organizada por Rosana Manzini e Ronaldo Zacharias, respectivamente, mestra e doutor em Teologia Moral. Os referidos organizadores observam que vivemos num contexto em que, apesar de reconhecidos e assegurados por leis e acordos nacionais e internacionais, direitos elementares e fundamentais são violados e negados à boa parte de pessoas e da humanidade. Parece que respiramos uma espécie de legitimação da indiferença nesse campo. É exatamente nesse contexto que a Doutrina Social da Igreja tem algo de significativo e urgente a dizer: a defesa e a promoção da dignidade humana e dos direitos inalienáveis de cada ser humano e de todos os seres humanos são caminho concreto de humanização, tanto das pessoas quanto das sociedades. Não há outro caminho para combater a globalização da indiferença senão a globalização da solidariedade, que passa, necessariamente, pela superação de tudo o que atenta contra a dignidade e os direitos das pessoas.
Estruturada em onze (11) capítulos, os autores desta obra sabem que não podem ser cúmplices da indiferença globalizada, muitas vezes sem rosto, mas que conduz à morte boa parte dos filhos e filhas de Deus. Por isso, fazem questão de, ao revelar o rosto humano de um Deus comprometido com a justiça e o direito, reafirmar que o rosto divino presente em cada ser humano feito à imagem de Deus não pode ser desfigurado sem que isso clame aos céus. Vejamos, de forma sintética, o conteúdo de cada um dos capítulos.
1) Direitos humanos: alternativa humana diante da globalização da indiferença? (p. 11-30): escrito pelo cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, o primeiro capítulo parte da celebração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (p. 11-12) e da denúncia feita pelo Papa Francisco feita na sede das Nações Unidas, em setembro de 2015, de que é preciso superar o “declaracionismo” e fazer mais pelos direitos humanos (p. 12), para propor uma reflexão que considere a possibilidade efetiva de os direitos humanos (p. 13-21) constituírem uma alternativa humana à globalização da indiferença (p. 21-25). Para Maradiaga, “os direitos humanos são, sim, uma clara alternativa contra a globalização da indiferença, mas se dermos prioridade ao ‘humano’, pois é graças a ele que todo ‘direito’ subsiste. Além da tutela do bem do outro – reponsabilidade de todas as pessoas –, não há nada que nos humanize mais do que nos aproximarmos do outro – do outro que tem nome e sobrenome, identidade e personalidade – como se estivéssemos pisando em solo sagrado” (p. 28).
2) Direitos humanos e Magistério Pontifício (p. 31-58): o capítulo é de autoria de Gustavo Irrazábal, doutor em Teologia Moral. Pontualizando as contribuições de Leão XIII (p. 33-36), Jacques Maritain (p. 36-38), João XXIII (p. 38-43) – especialmente a encíclica Pacem in Terris (p. 43-51) –, o autor sustenta que a evolução da atitude da Igreja diante dos direitos humanos está vinculada a um avanço na sua concepção de Estado (p. 33-54). Faz notar que o “problema fundamental que a Igreja se traçava com referência a este tema – e que hoje continua tão vigente como então – é o da relação entre a liberdade subjetiva e a verdade, não apenas do ponto de vista filosófico, mas também do contexto da comunidade política e, portanto, a questão do papel do Estado na preservação do vínculo da vida social com Deus, como fonte transcendente da verdade. Daí que a atitude da Igreja diante dos direitos humanos tenha evoluído junto com o pensamento político” (p. 33). No entender de Irrazábal “a salvaguardada dos direitos humanos e sua adequada composição e implementação demandam uma profunda e constante reflexão sobre o Estado, suas funções essenciais e seus limites, assim como sua vinculação com a verdade transcendente” (p. 33).
3) Doutrina Social da Igreja, dignidade humana e libertação das injustiças (p. 59-80): escrito pela doutora em Teologia, Maria Isabel Gil Espinosa, o capítulo parte do princípio de que “refletir sobre os direitos humanos, na perspectiva da Doutrina Social da Igreja, não é uma tarefa simples, porque além do pensamento social da Igreja, temos de considerar a Teologia Social e a Antropologia Teológica, se quisermos propor algo significativo para a superação das injustiças” (p. 59). A autora aborda o conceito de dignidade humana como princípio articulador da questão social (p. 59-64); em seguida, afirma ser a justiça uma conditio sine qua non para o cristão, a ponto de o trabalho pela libertação das injustiças ser uma tarefa inevitável (p. 64-71) e conclui apresentando algumas tarefas imperativas em relação à libertação das injustiças (p. 71-77).
4) Teologia da Libertação e a necessidade de novos direitos humanos (p. 81-95): o autor deste capítulo, Ney de Souza, doutor em História Eclesiástica, entende que “as teologias progressistas têm desempenhado importante papel no reforço do inconformismo perante a hipocrisia do pensamento e das práticas convencionais dos direitos humanos, diante da clivagem social e econômica entre o Norte global e o Sul global”, a ponto de ser longa “a história das relações desiguais entre tipos de conhecimento e entre formas diferenciadas de ver o mundo”. Para Souza, “as teologias progressistas podem funcionar como fonte de energia radical para as lutas contra-hegemônicas e para a renovação dos direitos humanos” (p. 93-94), e a Teologia da Libertação, genuinamente latino-americana, é uma das melhores expressões de tal luta (p. 83-88), constituindo-se como uma releitura dos direitos humanos a partir da realidade latino-americana (p. 88-93). Por outro lado, para ele, embora a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, apesar de ser um marco histórico de incomparável importância, a humanidade precisa, hoje, de novos direitos humanos, que refiram-se, sobretudo, aos “ausentes” ou “exclusos” da história.
5) Igreja e direitos humanos na América Latina (p. 97-124): de autoria de Maria Luisa Aspe Armella, doutora em História, o capítulo constitui um significativo testemunho do empenho da Igreja católica na defesa dos direitos humanos na América Latina, pelo menos desde os finais dos anos 1960. Passando por diferentes contextos – ditaduras militares no Cone Sul (p. 99-108), guerrilhas na América Central (p. 108-113) e regime constitucional com processos democráticos formais no México (p. 114-118) – a autora mostra como os diversos agentes dentro da Igreja têm acompanhado as pessoas mais vulneráveis seja por sua condição econômica, seja pelo fato de serem vítimas dos governos autoritários e ditatoriais de seus países (p. 118). Armella observa ainda que os “tempos mudaram e, com eles, a forma como a Igreja trabalha na promoção dos Direitos Humanos. Conforme floresceram novas expressões e apareceram novos problemas sociais, a população latino-americana solicitou novas formas de apoio. Alguns temas, como a atenção aos indígenas e aos pobres, representam continuidade histórica em nosso continente. Embora a Igreja não os tenha deixado de lado, surgiram problemáticas diferentes, como as dificuldades que enfrentam os migrantes em sua passagem pelo México e a violações dos direitos humanos, produto da violência gerada pelo narcotráfico” (p. 119).
6) Direitos humanos no Brasil: promoção humana e defesa da cidadania (p. 125-150): o capítulo, escrito pela doutora em Teologia, Clélia Peretti, apresenta um panorama dos direitos humanos no Brasil, com base na Doutrina Social da Igreja, sua configuração política e as práticas de promoção humana e defesa da cidadania (p. 125-129). Para tanto, a autora busca, por meio da análise dos principais documentos da Igreja acerca do ensino dos direitos humanos, efetivar a interlocução entre teoria e práxis (p. 129-137), apresentando figuras simbólicas de engajamento na luta e na defesa dos direitos humanos (p. 141-143), analisando a trajetória histórica dos direitos humanos na Igreja católica do Brasil (p. 137-141), apontando o deslocamento do discurso político para o discurso moral, evidenciando. Peretti deixa claro o protagonismo da Igreja católica no campo dos direitos humanos, a necessária vinculação entre teologia e direito e aponta, assim, caminhos para a promoção e ampliação da noção de direitos humanos na atualidade (p. 143-148).
7) Unidade na diferença nas relações de trabalho: a chave hermenêutica de Francisco (p. 151-175): escrito por Emilce Cuda, doutora em Teologia, o capítulo evidencia que, “na perspectiva de uma ética teológica situada e não relativa, e como aporte a um conflito atual que envolve milhões de trabalhadores na região, empurrados para as bordas da agonia ao impedir o diálogo entre as partes – capital, trabalho e Estado –”, a Convenção Coletiva do Trabalho é “a única realidade efetiva do diálogo social em contextos de desigualdade, já que manifesta de maneira concreta a chave hermenêutica proposta pelo papa Francisco: unidade na diferença” (p. 152). Num primeiro momento, a autora destaca a legitimidade do discurso ético-teológico no contexto de um diálogo plural, que deve sempre distinguir-se do discurso religioso, ético e político (p. 152-156), para, em seguida, mostrar porque o trabalhador deve ser o ponto de partida de um discurso ético-teológico pós-fundacional (p. 156-165) e propor uma ética teológica latino-americana situada nas relações de trabalho (p. 165-169), chamando a atenção para as convenções trabalhistas como realidade efetiva de diálogo social tripartido e do fundamento ético-teológico de unidade na diferença (p. 169-173).
8) Direitos da Terra, direitos do povo: a encíclica Laudato Si' na perspectiva do Sul (p. 177-237): escrito pelo doutor em Teologia, Marcial Maçaneiro, o capítulo destaca as vozes do Sul presentes na Laudato Si', verificando cada uma das fontes utilizadas e referenciadas por Francisco ao longo dos seis capítulos do documento. Para isso, Maçaneiro, após localizar cada fonte do hemisfério Sul explicitamente citada no documento, as distingue, destacando, sobretudo, as Conferências Episcopais, o Documento de Aparecida e os eventos relevantes sobre a questão ecológica, tal como a Cúpula da Terra (1992). O autor ainda refere-se às fontes implícitas, nem sempre referenciadas pelo Papa, mas verificáveis por via documental, com a menção discreta de uma obra de Leonardo Boff e a inserção, mais perceptível no texto, do documento “A Igreja e a questão ecológica” (p. 179-235). Maçaneiro propõe-se “não simplesmente individuar e classificar as fontes do Sul (explícitas ou implícitas) do ponto de vista material e/ou quantitativo, mas, sim, verificar como Francisco as insere no corpus da encíclica do ponto de vista formal e quantitativo: que noções ali se inscrevem e qual sua participação nos argumentos desenvolvidos pelo pontífice, em cada capítulo” (p. 179).
9) Questões de gênero, questões profundamente humanas: desafios para a Igreja católica (p. 239-305) tem como autor o doutor em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias. Tendo em conta que “as questões de gênero constituem um desafio antropológico e um desafio ético” (p. 295), as reflexões propostas pelo autor querem ser “uma contribuição para resgatar o sentido positivo e a importância que os estudos de gênero tiveram na edificação de uma sociedade que há muito tem pretendido ser mais justa” (p. 242). Para isso, Zacharias procura, num primeiro momento, contextualizar a origem da “guerra” – que não deixa de ser ideológica –contra a agenda de gênero (p. 242-252); em seguida, apresenta de forma crítica o que o magistério da Igreja diz sobre o tema (p. 252-279); e conclui apontando alguns desafios que derivam de uma abordagem honesta sobre gênero – que transcende tanto o mero essencialismo natural quanto o mero construcionismo sociocultural –, para que seja possível edificar uma nova cultura de gênero (p. 279-293).
10) Da indiferença narcisista à consciência social: repropondo a alteridade de base cristã na era globalizada (p. 307-326): escrito por André Luiz Boccato de Almeida, doutor em Teologia Moral, o capítulo visa compreender a gênese da compreensão narcísica que o sujeito tem de si (p. 308-315) e a urgência da formação de uma consciência social (p. 315-319), a fim de que seja possível dar prioridade à alteridade numa era em que a globalização da indiferença em relação outro e à “casa comum” impôs-se de forma inescrupulosa (p. 320-323). Almeida destaca que “repropor o valor ético da alteridade e da consciência social é um desafio contínuo em plena era de contrastes e de afirmação do pluralismo antropológico e ético. Vemos como relevante repropor um processo educativo que centralize suas forças no sujeito aberto ao diálogo e sensível às necessidades do próximo” (p. 324).
11) Não à indiferença diante da pessoa que sofre: meditações de um pastor (p. 327-334): de autoria de Bruno-Marie Duffé, doutor em Filosofia e Ética Social, o capítulo conclusivo da obra ressalta que a “indiferença é a recusa da diferença” por parte daqueles que não querem se tornar próximos ou fazer-se solidários com quem sofre. Meditando como um pastor responsável pelo seu rebanho, Duffé reconhece “que a diferença é a condição do encontro e do enriquecimento mútuo, que brota no diálogo dos caminhos e na complementaridade dos carismas, dos talentos e das experiências” (p. 327). Por isso, ele destaca ser importante saber de onde surge a indiferença para poder dizer a ela um grande “não”, pois ninguém tem o direito de ser indiferente diante de quem sofre (p. 328-329). Depois de propor alguns elementos que podem ajudar a compreender as causas da indiferença face ao sofrimento do outro (p. 329-330), o autor observa que o sofrimento e a solidão estão unidos (p. 330-331), afetam e comprometem os laços comunitários (p. 331-333) e, por isso, devem ser combatidos por meio do resgate da memória e da afirmação da esperança (p. 333-334).
***
Estamos diante de uma obra que é uma grande contribuição para repensar os direitos humanos à luz da Doutrina Social da Igreja e do magistério do Papa Francisco, que não se canse de afirmar que “diante da globalização da indiferença, a alternativa é humana” (p.8).
O confronto entre o conteúdo do rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja e a complexidade da realidade concreta nos instiga sempre a repensar tanto a leitura quanto a interpretação de ambas: um sólido e proveitoso ensino da Doutrina Social da Igreja, embora permanecendo ligado a um núcleo essencial de verdades e de princípios imprescindíveis e comuns a todos, não pode prescindir da realidade – “numa sociedade que convive pacificamente com o fato de que esses direitos são continuamente violados e age de modo como se eles não existissem ou não fizessem nenhuma diferença” (p. 8). Pelo contrário, em coerência com a mensagem evangélica causa-nos “uma forte indignação, questiona nossa própria humanidade” (p. 8).
Ao propor seus temas, os autores desta obra assumiram a postura de não serem cúmplices da indiferença globalizada e, por isso, ousaram nos provocar. Cumpriram, sem dúvida alguma, a tarefa de lembrar que a Doutrina Social da Igreja é chamada cada vez mais com urgência a dar o seu contributo específico à evangelização e que, hoje, tal contributo implica compromisso efetivo com os direitos fundamentais do humano. Faço minhas as palavras de Rosana Manzini: “os autores desta obra não se calaram. Em cada texto, buscaram a nossa humanidade; em cada palavra, defenderam a justiça e o direito; em cada página, revelaram o rosto humano de Deus e o rosto divino em cada um de seus filhos e filhas” (p. 9). É preciosa a leitura de cada página.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Direitos humanos e doutrina social da igreja: da globalização da indiferença à globalização da solidariedade”. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU