O poder revela o caráter ou a falta de caráter da pessoa. Reconhecer que o poder é expressão imediata do ser não nos permite apelar simplesmente para a imperfeição moral para justificar os recursos antiéticos usados por muitos agentes políticos. Tais recursos fazem parte de jogos políticos – e, socialmente, o poder é um jogo de influências mútuas na ordem da convivência social –, produzidos por um sistema que supõe e produz poder. Graças a esse sistema o poder é assegurado e ampliado. Se, por um lado, o poder revela o caráter ou a falta de caráter da pessoa, por outro, ele também expressa a ausência de moralidade de sistemas para os quais o ser humano é apenas um meio para que eles funcionem e alcancem suas metas.
A opinião é de Ronaldo Zacharias, filósofo e teólogo salesiano, coordenador da Pós-Graduação em Educação em Sexualidade do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal) e professor de Teologia Moral na mesma instituição, da qual também foi reitor de 2012 a 2017. É membro da Comissão Internacional para a Pastoral Juvenil e Família desde 2018 e ex-secretário da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM) durante vários mandatos.
O que há em comum a respeito do que diz Maquiavel – “dê poder ao homem, e descobrirá quem ele realmente é” –, Abraham Lincoln – “se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dê-lhe poder”, Ivan Teorilang – “O verdadeiro caráter de um homem irá se manifestar apenas quando lhe for delegado poderes, pois quando tiveres o destino de outros à sua mercê, é chegada a hora de avaliar que tipo de animal habita o teu ser”, Lord Acton – “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de modo absoluto” e Aislan Dlano – “quer conhecer uma pessoa, dê poder a ela; mas se quiser verdadeiramente conhecê-la, retire o poder dela”?
Não é difícil perceber o que há de comum nas afirmações de tais pensadores: por um lado, a ambiguidade do poder; por outro, a sua evidente relação com o caráter da pessoa. Justamente por isso, entender o seu significado é algo fascinante. Procurarei, aqui, refletir sobre o sentido do poder no contexto da relação entre verdade e hipocrisia, à luz da atividade política. Em seguida, proporei a devolução da verdade à verdade como caminho de superação da hipocrisia no exercício do poder. Por fim, defenderei que o poder pode ser libertador se vivido na perspectiva evangélica de serviço e sacrifício de si pelo bem do outro. Espero, com isso, conseguir demonstrar que é possível, até mesmo para a atividade política, servir-se do poder como instrumento de superação da hipocrisia e da corrupção e de promoção da justiça e da verdade.
Se considerarmos, por exemplo, a atividade política, resulta mais fácil compreender o significado do poder. A política, considerada a mais nobre de todas as ciências, visa a realização da justiça e a consecução do bem comum, como caminhos concretos de realização e felicidade das pessoas e da sociedade. No entanto, para alcançar os seus fins, a ciência política deveria ser exercida por pessoas sábias, justas, honradas, virtuosas. É um bom político aquele que reúne consensos sem precisar recorrer a mecanismos de repressão e de intimidação. E isso depende, em grande parte, da sua competência e habilidade. E muito mais do seu caráter.
Com 367 votos a favor, 137 contra, sete abstenções e duas ausências, a instauração do processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rouseff foi aprovada na Câmara dos Deputados, processo hoje chamado de Golpe de 2016.
Foto: Nilson Bastian | Câmara dos Deputados
Mas sabemos que a realidade difere da noção ideal de atividade política, a começar pelo fato de ela poder ser exercida por demagogos, isto é, por pessoas que se revestem de falsa sabedoria e falsa virtude para enganar o povo, obter a simpatia e o apoio popular para mais facilmente conseguir realizar os próprios interesses, sobretudo quando esses passam quilômetros de distância da justiça e da honradez. Apesar de demagogos, tais pessoas revelam ter um grande poder, pois suas ações resultam eficazes, isto é, expressam a capacidade que eles têm de alcançar os fins desejados, mesmo se os meios forem antiéticos. Para os demagogos interessa o que parecem ser e não o que, de fato, são. Por isso, a preocupação com a verdade e com a coerência pouco lhes interessa. Os demagogos, embora poderosos, são essencialmente hipócritas. E a hipocrisia só pode ser superada por meio da verdade e da transparência (SILVEIRA, 2001, p. 148).
Não se trata de afirmar, aqui, a pretensão de uma verdade absoluta, válida universal e eternamente, até porque isso implicaria o reconhecimento de um saber que fosse dominante, com a consequente negação da legitimidade de formas de saber diferentes e da gradativa e relativa capacidade de conhecimento por parte dos sujeitos. Além disso, a pretensão de uma verdade absoluta implicaria também a definição do que é certo e errado, com a consequente impossibilidade de questionamento e refutação do que possa vir a ser considerado um erro. Como nos lembra Michel Foucault, as verdades descobertas correspondem à política geral de verdade de cada sociedade e estão socialmente associadas a mecanismos e relações de poder (FOUCAULT, 1981). Por isso é que “todo exercício do poder supõe a produção de discursos de verdade, que justifiquem as regras (jurídicas, políticas) de regulamentação da ordem social, e garantam o seu funcionamento. Para exercer este papel, no entanto, a verdade é obrigada a mentir. Ela precisa negar o seu caráter monopólico, aparecendo como naturalmente a única; negar a sua capacidade de produzir sanções em defesa de si mesma, para excluir ideias distintas; negar o seu inevitável vínculo com o poder, a relação de poder que ela supõe, os seus efeitos de poder, e a hipocrisia contida nas relações de poder. A verdade não pode aceitar que ela mesma carrega hipocrisia. Assim, precisa dissimular o seu caráter hipócrita” (SILVEIRA, 2001, p. 157).
O fato de as verdades serem limitadas, relativas e definidas socialmente por um regime que não apenas supõe, mas produz poder, chama a atenção para a natureza das relações e das estruturas de poder. Isso explica o porquê as pessoas se posicionam de modo diferente diante das mesmas verdades. Existe pluralidade na interpretação das verdades socialmente estabelecidas e, exatamente por isso, cada um procura afirmar a sua, movendo-se como pode no terreno do poder. Hoje, as redes sociais constituem o espaço em que cada um advoga para si o direito de dar voz às suas verdades, mesmo se socialmente rejeitadas, e às suas mentiras, muitas vezes revestidas de omissão, negação e dissimulação do que é tido como verdade. Em outras palavras, cada um acredita no que quer acreditar, mesmo se, externamente, usa esta ou aquela máscara para exteriorizar um discurso que, conscientemente, vai na contramão das próprias verdades (GREENE, 2000). Discutir a partir do que se acredita ser verdade não vale mais a pena, pois, como afirma Silveira, “recursos da racionalização” que transformaram, maquiaram ou disfarçaram as próprias verdades permite que elas mesmas “orientem efetivamente o sentido da ação e os seus resultados” (SILVEIRA, 2001, p. 158). No jogo do poder, cada um lida com a verdade como quer e de acordo com os próprios interesses.
Por outro lado, admitir a não existência de verdades inquestionáveis não significa poder assumir o maquiavelismo como atitude diante da realidade e dos fatos, maquiavelismo entendido como procedimento dissimulado, ardiloso, traiçoeiro, mal intencionado. Mas, na realidade, é isso que acontece. O que importa é parecer e, ao mesmo tempo, não parecer. Uma mentira não pode ser reconhecida como mentira; ela tem de parecer verdade. A hipocrisia não pode ser percebida como hipocrisia; ela tem de parecer verdade. E, com isso, o sujeito se dá o direito de reduzir a visibilidade da sua mentira e da sua hipocrisia por meio “do controle e da obstrução de informações e da opacidade do poder” (SILVEIRA, 2001, p. 158). Instaura-se, sem nenhum pudor, a dissimulação que visa assegurar o exercício do poder, poder que, nesse sentido, domestica, alicia, seduz, mesmo enganando, induzindo ao erro, mentindo, iludindo. A questão se torna ainda mais grave quando os produtores de mentiras acreditam veementemente nas próprias mentiras e criam realidades alienantes para mantê-las.
As fake news são, nessa perspectiva, entendidas como meios válidos para alcançar o que se deseja. Não importa se ferem a dignidade das pessoas, se atentam contra seus direitos, se dizimam ou condenam à exclusão, se acabam com a verdade e destroem a sociedade; o modo e a finalidade para os quais são usadas pouco importam. Vale a sua eficácia instrumental. No campo político, por exemplo, é o que Silveira denomina como “extermínio político”, isto é, a arma de combate é a que serve para “desgastar a imagem dos adversários até provocar a completa eliminação da sua credibilidade” (SILVEIRA, 2001, p. 160). Distorcer os fatos, forjar situações, acusar sem provas, levantar suspeitas são os recursos mais utilizados, mesmo tendo consciência de atentar contra a verdade objetiva dos fatos. A precisão da descrição feita por Silveira é impressionante, embora ao mesmo tempo chocante: “A distância entre as intenções e a realidade da ação prática dos agentes políticos, entre os discursos e a atividade política é grande não por um problema pessoal relativo ao caráter dos políticos. Estes não agem livremente de acordo com as suas intenções e projetos, mas em um sistema político que possui regras e em condições que eles não determinam.
Entre as regras do jogo político, há a necessidade de eficácia. Se um agente político não for eficaz ele será eliminado do jogo, será um profeta desarmado, vencido, fracassado. Ele precisará agir, em determinadas circunstâncias, de forma dissimulada, deixando de cumprir certas promessas, modificando oportunamente o seu ponto de vista. Precisará agir de forma hipócrita, mas sem ser visto como tal. Necessitará parecer íntegro, sincero e totalmente ético. Mas se agir sempre conforme esta aparência isto causará a sua ruína. O que impossibilita a política ética não é a falta de intenção ou vontade, mas o problema da eficácia. O agente ético é totalmente previsível e facilmente será vencido no jogo político. O fato dos políticos defenderem uma política ética é compreensível: eles precisam ser vistos como éticos para manter e ampliar a sua credibilidade. (...) A hipocrisia, portanto, está visceralmente associada ao poder. Ela não é um vício eliminável, mas um instrumento eficaz que assegura poder. Sua existência deve-se a sua utilidade no jogo de poder. O agente que realiza a operação hipócrita de modo eficiente maximiza a sua ação neste jogo. A hipocrisia constitui uma forma de poder que produz poder, do mesmo modo que ela é necessária para o exercício do poder” (SILVEIRA, 2001, p. 161-162).
Diante de um panorama como o descrito acima, podemos nos perguntar qual é o significado do apelo à ética na política e do apelo da ética à política. Se considerarmos que, no jogo do poder, é recompensado o sujeito que melhor conseguir tornar imperceptível a sua dissimulação; que a hipocrisia é justificada racionalmente como um mal necessário para se alcançar os fins desejados; que a lógica que preside as decisões é a de que os fins justificam os meios; que não há limites para a promoção narcísica, mesmo que ela implique na eliminação dos adversários; que princípios e valores são relativos diante das demandas do jogo do poder; que as leis e as normas jurídicas podem ser violadas quando se trata de defender certos interesses, resulta evidente que a razão política “torna-se serva do poder” (SILVEIRA, 2001, p. 164). Nesse sentido, “a desejável ética na política não faz parte da natureza do poder político. Como valor socialmente aceito e utopia querida, faz parte das estratégias discursivas utilizadas pelos agentes políticos para conquistar simpatias e adesões. Mas, na política efetivamente praticada, as ações éticas não são dominantes e, muitas vezes, estão associadas aos insucessos ou à produção de fatos simbólicos relevantes para a construção, alteração ou reposicionamento da imagem dos agentes” (SILVEIRA, 2001, p. 167).
Eliane Brum nos apresenta uma chave de leitura muito interessante para enfrentarmos a hipocrisia que se instaurou na sociedade atual. Para ela, precisamos reconhecer a distinção entre o fenômeno da pós-verdade e o da autoverdade: “no fenômeno da pós-verdade, as mentiras que falsificam a realidade passam elas mesmas a produzir realidades. (...) A autoverdade se articula com esse fenômeno, mas segue uma outra lógica. O valor da autoverdade está muito menos no que é dito e muito mais no fato de dizer. ‘Dizer tudo’ é o único fato que importa. Ou, pelo menos, é o fato que mais importa” (BRUM, 2018).
É o deslocamento do conteúdo do que é dito para o ato de dizer que nos ajuda a compreender a hipocrisia como instrumento que assegura o poder. A verdade pessoal e autoproclamada, a verdade do sujeito, é absolutizada de forma tal que qualquer tentativa de argumentação racional se torna ineficaz.
Para Brum, “o valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos. Nem seu apagamento está na produção de mentiras ou notícias falsas (“fake news”). Essa é uma relação que já não opera no mundo da autoverdade. O valor da autoverdade está em outro lugar e obedece a uma lógica distinta. O valor não está na verdade em si, como não estaria na mentira em si. Não está no que é dito. Ou está muito menos no que é dito. Assim, a questão da autoverdade também não está na substituição de verdades ancoradas nos fatos por mentiras produzidas para falsificar a realidade” (BRUM, 2018).
Se o que vale é o ato de dizer, o conteúdo do que é dito pouco importa. Em geral, os argumentos utilizados para justificar o “dizer tudo” referem-se ao exercício da liberdade de expressão, à importância de ser sincero, verdadeiro, autêntico, honesto e até mesmo politicamente incorreto. Para Brum, “a estética é decodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E este não é um dado qualquer” (BRUM, 2018). A tentativa de desconstruir o conteúdo não produz efeito algum, pois ele pouco importa. O mesmo se dá em relação ao esforço para checar a veracidade das informações como instrumento para combater as fake news. Não interessa a verdade dos fatos, mas a verdade do sujeito, mesmo se ela seja a mais falsa, mentirosa e hipócrita possível. É a triste realidade da dramaturgia que substitui o conteúdo. Importam a retórica e a forma. Num contexto como esse, a criação de inimigos a serem combatidos se torna muito conveniente. A luta entre o bem e o mal, o fiel e o infiel, o perseguido e o perseguidor serve como palco de distração dos reais problemas e urgências. Com o tempo, vai se formatando um determinado olhar sobre a realidade: “não há mais interpretação, a decodificação passa a ser por reflexo” (BRUM, 2018).
Como para o fenômeno da autoverdade o que vale é o que é dito, a pluralidade de saberes, o respeito às diferenças e o diálogo honesto cedem lugar a movimentos ideológicos que se travestem de combate às ideologias, às ações políticas que se fantasiam de antipolíticas, aos apoios partidários que se pretendem apartidários, à abdicação do pensamento em favor da fé e à adesão à política por causa da fé professada e, sobretudo, da religião seguida. Resulta evidente que passar de tal dinâmica para a demonização, perseguição e eliminação dos adversários não custa muito. O fundamentalismo, com seu consequente fanatismo, é elevado ao pedestal da mais sagrada adoração e, com isso, dá-se o que Brum chama de ‘religiosização’ da política, que provoca efeitos devastadores, como o de endeusar um sujeito que se proclama como o enviado de Deus e, por isso, reivindica a absolvição de todos os seus pecados e crimes (BRUM, 2018).
Para Brum, “só será possível passar da hipocrisia à verdade, se a verdade for devolvida à verdade: O desafio imposto tanto pela pós-verdade quanto pela autoverdade é como devolver a verdade à verdade. Não faremos isso sem tomar partido por escola de qualidade para todos, apoiando aqueles que lutam por isso de maneira muito mais contundente do que fazemos hoje, assim como pressionando por políticas públicas e investimento, e questionando fortemente os candidatos para além da retórica fácil. Nem faremos isso sem a recuperação do sentido de comunidade, o que implica a reapropriação do espaço público para a convivência entre os diferentes, assim como a retomada da cidade. Temos que voltar a conviver com o corpo presente, compartilhando os espaços mesmo e – principalmente – quando as opiniões divergem. Temos que resgatar o hábito tão humano de conversar. E conversar em todas as oportunidades possíveis. E isso não amanhã. Ontem. A verdade do momento é que estamos ferrados. Outra verdade é que, ainda assim, precisamos nos mover. Juntos. Não por esperança, um luxo que já não temos. Mas por imperativo ético” (BRUM, 2018).
Brum não poderia ser mais honesta diante da realidade na qual nos encontramos. Se, por um lado, o panorama é desolador, e a esperança, um luxo para poucos, por outro, precisamos acreditar que, como cristãos, podemos anunciar uma novidade capaz de ressignificar o exercício do poder e as bases para a edificação de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária.
A novidade a ser anunciada é a verdade de Deus e, portanto, uma verdade diferente das outras. A verdade de Deus é que, em Jesus, Deus assumiu a humanidade e a tornou participante da sua divindade. Trata-se de uma novidade que não pode ser comunicada totalmente por meio de uma doutrina e que, se não comunicada como verdade de Deus degenera facilmente em ideologias distantes dos interesses do próprio Deus.
A constante busca e acolhida da verdade de Deus se concretiza por meio do seguimento a Jesus. Seguimento que conduz à progressiva conformação aos seus sentimentos e às opções feitas por Ele. É a prática do conteúdo da boa nova, da verdade de Deus, que dá credibilidade ao seguimento. No seguimento a Jesus, o cristão se confronta com suas palavras (pregação) e suas ações (práticas de cura) e descobre o significado da verdade de Deus revelada por Ele: o amor de Deus pela humanidade tinha de se expressar por meio de gestos históricos desse amor, isto é, era impossível revelar Deus como Pai misericordioso sem que as pessoas “tocassem com as mãos” a presença do Deus-Pai-Misericordioso no meio delas (SOBRINO, 1992, p. 158-162).
Tanto a pregação quanto as práticas de cura de Jesus manifestam a verdade do amor de Deus pela humanidade: trata-se de um amor inclusivo e salvífico. Vistas à luz do que Jesus ensinou, as suas práticas de cura revelam um Deus que fez opção por aqueles que tinham sido “feitos” pobres e, por isso, “postos” à margem da sociedade e do templo. Por meio das práticas de cura, Jesus reintegra os marginalizados à sociedade e anuncia a vontade de Deus de que a sociedade se distinguisse pela inclusão, compaixão e solidariedade.
Jesus, a verdade de Deus, é o paradigma para aqueles que querem responder ao chamado de Deus. Consequentemente, a solidariedade com os oprimidos – a radical inclusão que está no âmago da fé cristã – exigirá a cruz daqueles que O seguem, exatamente como a prática do Seu ministério provocou a Sua morte. Como bem afirma William Spohn, “o ‘indicativo’ da história de Jesus funda o ‘imperativo’ do que os cristãos são chamados a ser e a fazer” (SOPHN, 1999, p. 25).
Jon Sobrino, de forma magistral, sintetiza as consequências da verdade de Deus na vida dos seguidores de Jesus. De acordo com ele, os seguidores de Jesus devem “refazer a encarnação de Jesus e concebê-la como um processo de encarnação que gera sua própria dinâmica” (SOBRINO, 1992, p. 163). A profunda misericórdia para com os mais oprimidos deve transformar-se em ativa defesa da sua dignidade e dos seus direitos, o que leva – como aconteceu com Jesus – à controvérsia, à denúncia e ao desmascaramento daqueles que os oprimem e empobrecem. A ativa misericórdia leva ao conflito, à perseguição e à cruz. Para Sobrino, no anúncio da verdade de Deus o cristão “vai deixando sua própria vida” (SOBRINO, 1992, p. 163). Ou, como afirma Sebastião Gameleira, “a radicalidade do poder, de ser ‘todo-poderoso’, é poder ‘renunciar’ ao poder, ou seja, é a capacidade suprema de dispor de si a ponto de entregar-se, não ‘necessitar’ mais de si, já não ser mais ‘carente’, como Deus se revela em Cristo” (GAMELEIRA, 2003, p. 10-11).
Outro aspecto importante manifestado pela pregação e pelas práticas de cura de Jesus refere-se à natureza do poder. Também esta não pode ser evangelicamente compreendida senão à luz da kenosis de Jesus. Como bem afirma Sallie McFague, ao anunciarmos que a Palavra se fez carne, não podemos menosprezar "a forma particular tomada pela carne" ao se fazer palavra (McFAGUE, 1993, p. 167). Isto é, a verdade de Deus exige que entremos numa nova lógica, na lógica de Jesus, o qual transformou sua existência em dom para os outros, se inclinou para lavar os pés dos discípulos, foi capaz de um amor tão grande a ponto de dar a sua vida. A lógica de Jesus é kenótica: é grande quem se faz pequeno; o último é o primeiro; o maior é aquele que serve; salva a própria vida quem a perde; ama aquele que dá a própria vida; renasce aquele que morre; ressuscita quem se esvazia de si para encher-se de Deus. Por isso, na última ceia com seus discípulos, ele lhes dá um “novo” mandamento: que amem como “Ele” os amou (Jo 13,34). A verdade de Deus é que Jesus é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Como afirma Omar César Albado, “num momento histórico em que a exclusão assume formas cada vez mais descaradas, o paradigma kenótico se converte em anúncio profético do qual a teologia não pode se esquivar. A desapropriação é considerada como a proposição de um outro modo de construir a história e como uma forma distinta de pensar o humano” (ALBADO, 2017, p. 501).
Aplicada à atividade política, essa reflexão implicaria um novo modo de conceber o poder e de exercê-lo. Mais ainda, ela seria capaz de devolver a verdade à verdade e superar as tentações ligadas à pós-verdade e à autoverdade, pois “a” verdade é um fato concreto – “o Verbo se fez carne” –, uma boa nova capaz de transformar as pessoas e o mundo – “e habitou entre nós”. Diante do Verbo feito carne é possível compreender que, além de a humanidade ser assumida a sério na sua integralidade, é uma questão de integridade pôr-se a seu serviço considerando-a sempre como fim e nunca como meio. A verdade do Verbo que se fez carne e, portanto, “esvaziou-se e humilhou-se a si mesmo”, “tomando a condição de servo e obedecendo até à morte” (Fl 2,7-8) é paradigmática e ao mesmo tempo imperativa para aqueles que exercem qualquer forma de poder.
O Papa Francisco tem alertado a Igreja sobre o perigo de um novo paradigma que afeta a sua identidade: o paradigma da autorreferencialidade (FRANCISCO, 2013, n. 94). Para ele, quando a Igreja se volta para si mesma, ela acaba buscando sua segurança na doutrina e na disciplina, tornando-se, assim, narcisista e autoritária. A autorreferencialidade não está tanto em falar sobre si mesma, mas em acreditar poder ocupar o lugar de Deus, convertendo-se em intérprete autorizada da sua vontade. Quando isso acontece, Deus deixa de ser o centro e a verdade de Deus deixa de ser Aquele cujo caminho ela mesma deveria percorrer (ALBADO, 2017, p. 499). Ousaria dizer que, quando isso acontece, a Igreja se torna mais uma entre tantas instâncias de poder e converte-se, ela mesma, em serva do poder. Não podemos ignorar que o poder pode subir à cabeça, e isso se explica pelo simples fato de que ele, mesmo chamado ao serviço, não deixa de se inclinar à dominação. Como afirma Clodovis Boff, “a raiz disso é que a potência busca a onipotência” (BOFF, 2003, p. 4).
A parábola do samaritano (Lc 10,25-37), se interpretada à luz da verdade de Deus, evidencia alguns aspectos centrais do anúncio da Boa Nova, essenciais para ressignificarmos o poder em nosso meio. Em primeiro lugar, a pergunta inicial – “quem é o meu próximo?” – é uma formulação que coloca no centro da indagação a própria pessoa. A resposta de Jesus, no final, é outra pergunta – “quem foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?” Jesus põe no centro a pessoa ferida, único personagem sobre o qual não sabemos coisa alguma, a não ser que tinha sido deixado no caminho meio-morto. O anônimo, nas palavras de Gustavo Gutiérrez, “aquele que não é ninguém, é o que move todo o relato” (GUTIERREZ, 2017, p. 133). Aquele que não é ninguém é privado de defesa e de palavra e se encontra na mais extrema pobreza. Aquele que não é ninguém precisa de ajuda. Sua sobrevivência depende da sensibilidade dos que se encontram com ele, da atitude de superar a indiferença e deixar-se interpelar pela realidade na qual se encontra.
Em segundo lugar, ao colocar no centro do debate a pessoa ferida, Jesus revela que, “estritamente falando, não temos próximos, mas nos fazemos próximos” (GUTIERREZ, 2017, p. 134). Fazer-se próximo significa deixar-se tocar pelo sofrimento do outro, sair do próprio mundo e pôr-se no caminho de quem mais precisa, ter a coragem de enlamear-se e ser ferido, romper os próprios esquemas e preconceitos, optar pela reciprocidade que caracteriza a relação de quem decide ser significativo na vida de alguém. Foi o que fez o samaritano. Ele pôde usar de misericórdia para com aquele que estava ferido porque decidiu, antes de tudo, colocar-se no seu caminho.
Em terceiro lugar, a parábola do samaritano foi resultado de uma maldosa provocação feita a Jesus por quem tinha pleno conhecimento da lei e sabia o que era preciso fazer para se salvar. Em outras palavras, o doutor da lei intencionalmente agiu de modo dissimulado. Procurou esconder-se atrás da hipocrisia, mas foi “desmascarado” por Jesus enquanto teve ele mesmo de responder ao que não queria responder. De tão preconceituoso, ele não foi capaz de dizer o samaritano tinha sido aquele que se fez próximo do necessitado. Revestiu sua resposta de roupagem religiosa para camuflar sua discriminação. E Jesus, ao dizer a ele que devia ir e fazer a mesma coisa, apresenta categoricamente o samaritano como modelo a ser seguido, rompendo com toda dissimulação da verdade e toda forma de discriminação e, portanto, de exclusão.
Voltemos, por fim, a atenção às afirmações propostas na introdução dessa reflexão. Todas elas sugerem que o poder revela o caráter ou a falta de caráter da pessoa. Heleno Saña confirma isso ao afirmar: “os tiranos da humanidade não começaram a ser tiranos ao assumir o poder, mas já eram potencialmente tiranos, pois, caso contrário, nunca teriam conseguido sê-lo” (SAÑA, 2016, p. 214-215). O poder tem, “em sua raiz, um caráter ontológico” e é “a expressão imediata do ser” (BOFF, 2003, p. 1). No entanto, tem razão Boff quando afirma: “é no nível do uso e não do ser que se pode falar na ambiguidade do poder. (...) Não é, pois, no nível de sua natureza, mas de sua função que o poder pode ser mal, injusto ou opressor. (...) Mas essa qualificação é de caráter ético e não ontológico. É a pessoa, só ou associada, que imprime ao poder esse sentido negativo. No fundo, não é o poder que é mau, mas sim o poderoso, que sendo mau, faz mau uso do poder” (BOFF, 2003, p. 3).
Ora, reconhecer que o poder é expressão imediata do ser não nos permite apelar simplesmente para a imperfeição moral para justificar os recursos antiéticos usados por muitos agentes políticos. Tais recursos fazem parte de jogos políticos – e, socialmente, o poder é um jogo de influências mútuas na ordem da convivência social –, produzidos por um sistema que supõe e produz poder. Graças a esse sistema o poder é assegurado e ampliado. Se, por um lado, o poder revela o caráter ou a falta de caráter da pessoa, por outro, ele também expressa a ausência de moralidade de sistemas para os quais o ser humano é apenas um meio para que eles funcionem e alcancem suas metas.
Para Achille Mbembe, estamos vivendo num período histórico que nos permite testemunhar um jogo longo e mortal: “O choque entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo. (...) Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes. (...) Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política. (...) Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas” (MBEMBE, 2017).
Não é à toa que o artigo de Mbembe se intitula “A era do humanismo está terminando”. O realismo é tão chocante que sugere, à primeira vista, um pessimismo insuperável. No entanto, ele mesmo sugere que terão sucesso os que se colocarem no caminho dos perdedores. Numa linguagem evangélica, poderíamos dizer que serão significativos aqueles que se fizerem samaritanos. Aqui abre-se a oportunidade para que a fé sustente a luta, a esperança infunda coragem e a caridade anime o serviço. Se o que nos “sobrar” forem os perdedores da história, diante deles devemos nos ajoelhar para lavar seus pés, curar suas feridas, alimentar seus corpos, renovar suas mentes. Temos nas mãos um poder que pode ser, sim, libertador; um poder que pode, sim, ser profecia de “um novo céu e uma nova terra” (Ap 1,1).
Simples assim! Complexo demais!
ALBADO, Omar César. La evangelización bajo el paradigma de la kénosis de Jesús. Esbozo de una acción y relfexión desde el magistero de Francisco. In: GONZALO, Luis Aranguren; PALAZZI, Félix (Eds.). Desafíos de una teologia iberoamericana inculturada en tiempos de globlización, interculturalidad y exclusión social. Actas del Primer Encuentro Iberoamericano de Teología (Boston College, 6-10.02.2017). Miami: Convivium Press, 2017, p. 496-502.
BOFF, Clodovis. Teologia do poder. In: Revista Inclusividade 2/4 (2003): 1-9. Disponível aqui. Acesso em: 07.09.2022.
BRUM, Elaine. Bolsonaro e a autoverdade. Como a valorização do ato de dizer, mais do que o conteúdo do que se diz, vai impactar a eleição no Brasil. In: El País (10.07.2018). Disponível aqui. Acesso em: 07.09.2022.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.
GAMELEIRA, Sebastião A. Somos poder. In: Revista Inclusividade 2/4 (2003): 1-13. Disponível aqui. Acesso em: 07.09.2022.
GREENE, Robert. As 48 leis do poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GUTIÉRREZ, Gustavo. El espíritu y la autoridad de los pobres. In: GONZALO, Luis Aranguren; PALAZZI, Félix (Eds.). Desafíos de una teologia iberoamericana inculturada en tiempos de globlización, interculturalidad y exclusión social. Actas del Primer Encuentro Iberoamericano de Teología (Boston College, 6-10.02.2017). Miami: Convivium Press, 2017, p. 122-137.
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